É 3 de julho de 2023, uma segunda-feira. São 7h30min da manhã. Roselaine Ayres da Conceição, 48 anos, está de pé. Ela arruma o neto, dois anos, para levá-lo à creche. Um ônibus passa na porta de casa para fazer o trajeto entre a residência e a instituição. O mesmo acontece para as quatro filhas de Roselaine. São as trigêmeas Amanda, Aline e Yasmim, de 13 anos, e Vanessa, de 14. Na porta de casa, elas embarcam na condução para ir ao colégio onde, respectivamente, cursam o 7º e 8º anos do Ensino Fundamental.
O filho Henrique, 16 anos, ainda dorme no chão da sala. Ele estuda, mas durante a noite. Está no 1° ano do Ensino Médio. O garoto também pega uma condução escolar para o deslocamento até a aula. A residência ainda tem a presença de Pedro Rogério Telles da Cruz, 54 anos, esposo de Roselaine e pai das quatro meninas e de Henrique. A família Conceição da Cruz vive na Ilha Grande dos Marinheiros, uma das 16 ilhas que compõem o bairro Arquipélago, em Porto Alegre.
Como fizemos esta reportagem?
GZH buscou demonstrar como sobreviver no Brasil com a média de renda que metade da população teve em 2022, segundo o IBGE. Para isso, o repórter Alberi Neto e o fotógrafo André Ávila acompanharam por um mês uma família de Porto Alegre. O grupo foi escolhido por ter a mesma média de renda apontada pelo estudo do IBGE. Foram sete visitas durante o mês, focando no acompanhamento de pontos essenciais na rotina, como o trabalho, a educação, o jantar, a hora de dormir e a única vez em que parte da família vai ao centro de Porto Alegre. Além disso, conversas diárias eram mantida entre os repórteres e a família através de mensagens e ligações, na tentativa de tornar o material mais próximo da realidade do grupo acompanhado.
Este grupo de oito pessoas vive a realidade de metade da população brasileira, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Segundo dados divulgados em maio deste ano, 107 milhões de brasileiros sobreviveram com uma média de R$ 17,90 por dia em 2022. São R$ 537 mensais por pessoa. A família Conceição da Cruz embarca neste coletivo. Eles fazem parte dos mais de 100 milhões de brasileiros que compõem os 50% da camada mais pobre da população.
Estar no meio do caminho, como é de se esperar, tem prós e contras. A fome não é um um problema, todos comem ao menos três vezes no dia, seja em casa ou na escola. Por outro lado, qualquer gasto que fuja dos centavos contados mês a mês prejudica o orçamento. Com isso, mesmo que haja comida na mesa, roupa para vestir e tênis para calçar, não há passeio no final de semana nem presente fora de ocasião, somente em datas especiais. E muito menos qualquer produto que não esteja estampado num cartaz de oferta no supermercado mais próximo.
Como vivem os milhões de brasileiros nesta fatia do estrato social? É o que esta reportagem busca traduzir, ao menos em parte, depois de acompanhar por um mês os Conceição da Cruz. O texto mostra como a família obtém a subsistência através do trabalho com a reciclagem, passando pela batalha semanal para fechar o orçamento, construindo o sonho da casa própria, até a busca para interromper um ciclo de pobreza entre gerações. É o retrato de um Brasil que, mesmo estando presente numa fatia tão grande da população, por vezes, se sente esquecido.
Mesmo que não vivam com sobras, os Conceição da Cruz estão relativamente distantes da classe mais baixa considerada pelo IBGE, que reúne os 5% mais pobres da população, cuja renda média ficou em R$ 87 por pessoa ao mês. E mais longe ainda dos 1% mais ricos, onde esse valor é de R$ 17.447 mensais per capita.
O sustento através da reciclagem
Ainda é segunda-feira, e pouco passa das 8h, as filhas e o neto estão nos ambientes educacionais. Henrique acordou e saiu para um novo trabalho informal que conseguiu em outro ponto da Ilha dos Marinheiros. Começa, então, o expediente diário de Roselaine, no pátio da residência onde vive.
É ali que, acompanhada de Elisângela dos Santos Salvato, 49 anos, ela separa os resíduos recicláveis recolhidos no continente. Elisângela recebe R$ 250 semanais pelo trabalho prestado. Em outros tempos, o valor não afetava tanto o orçamento. Mas o preço dos materiais tem caído severamente. Ainda assim, a família sabe como a renda gerada para Elisângela é importante.
O que é separado durante a semana é vendido na sexta-feira. Os materiais são pesados em grandes sacos, chamados de bags. Dentro dos bags, eles são separados por seus tipos e valores. Boas semanas podem render mais de R$ 700 na venda em resíduos, mas as semanas não têm sido boas. Durante este ano, a média de arrecadação semanal com os recicláveis fica entorno de R$ 500, sendo que metade vai para Elisângela.
É uma cena comum na Ilha dos Marinheiros a separação dos resíduos feita em casa. Sem um espaço adequado para trabalhar, os recicladores transformam as próprias residências em um centro de triagem. Nem todos conseguem tocar a própria reciclagem, como é o caso de Elisângela, que trabalha com Roselaine. Isso porque alguém precisa "puxar o lixo". Na casa dos Conceição da Cruz, este papel é de Pedro Rogério.
Cabe a ele a missão diária de desbravar o continente. Na condução de uma valente e mutante Volkswagen Kombi ano 1986, ele cruza a Capital por condomínios onde recolhe os resíduos recicláveis. Valente e mutante também é o motorista, que já migrou por diversas profissões para sustentar a casa, muito por causa da falta de qualificação profissional. As mudanças duraram até se estabelecer na Ilha dos Marinheiros com Roselaine, em 2016.
Com pontos certos de coleta, o caminho é mais tranquilo. Mas não foi sempre assim. Antes, o lixo era recolhido na rua, onde Rogério encontrasse recicláveis. A questão chegou a gerar confrontos entre catadores da Capital e o Departamento Municipal de Limpeza Urbana (DMLU), que multava os trabalhadores por recolherem o que, em tese, só pode ser recolhido pela coleta seletiva.
— Tenho meus condomínios certinho. Os porteiros e síndicos me conhecem, chego com a Kombi, carrego e vou pro próximo. É corrido, mas faz parte. O lixo ajuda bastante, não se pode negar — garante Rogério.
As multas do DMLU, claro, nunca foram pagas. Os valores das infrações chegavam a R$ 7 mil em alguns casos. Certamente, se tivesse dinheiro sobrando para pagar multas exorbitantes, Rogério não perderia tempo garimpando na internet pneus usados e baratos para a Kombi. Os problemas do veículo, aliás, são sempre surpresas desagradáveis no orçamento do mês. O motor já foi refeito três vezes, recorda Roselaine.
Entretanto, sem a Kombi fica impossível laborar. Até há outro caminho, que é ser membro da cooperativa de recicladores da Ilha dos Marinheiros. Os membros recebem cargas da coleta seletiva e podem fazer a separação destes resíduos. Só que, para ser cooperado, é necessário desembolsar cerca de R$ 40 mensais. Quantia que os Conceição da Cruz preferem aplicar em outro investimento: comida.
A Kombi ainda tem outro papel, prover moradia. A casa onde a família vive pertence à mãe de Roselaine, que mora em outra residência no mesmo pátio. E, assim como a filha, também vive da reciclagem. O aluguel dos Conceição da Cruz não é pago em dinheiro, mas sim com resíduo reciclável. Toda semana, umas das cargas que Rogério busca no continente vai para a sogra.
— A gente se ajuda, no fim. Ela precisa alugar a casa, eu preciso ter onde morar — diz Roselaine.
Aniversário sem festa
Seguimos na primeira semana do mês, mas agora é dia 5 de julho. Dia do aniversário do neto e data em que uma parcela assalariada dos brasileiros está feliz, pois recebeu. Entretanto, nem o festejo da idade ou do salário estão presentes na residência dos Conceição da Cruz. Como o pagamento pelos resíduos vem às sextas-feiras, ainda há de se esperar mais dois dias até receber.
O que foi pago pela semana anterior de trabalho não existe mais, ficou no supermercado em Eldorado do Sul, cidade próxima da Ilha dos Marinheiros, onde Roselaine costuma fazer as compras semanais. Porém, se os preços estiverem mais baixos em outro supermercado, na entrada da Capital, é lá que ela vai.
— Fico sempre conferindo as ofertas, onde tiver mais barato, é onde eu vou — conta ela.
O aniversariante está na creche. Ele fica entre a manhã e o final da tarde no local. As meninas também não perdem tempo, passam em casa ao meio-dia apenas para trocar de roupa e colocar o uniforme do centro social que frequentam no contraturno, onde recebem alimentação, aulas de dança, futebol e outras atividades.
O Centro Social Marista Aparecida das Águas atende 206 crianças na Ilha dos Marinheiros. A família já deixou claro que não haverá festa de aniversário. Ao menos, não no dia certo, "só depois que chegar o Bolsa Família", comenta Roselaine.
Os Conceição da Cruz recebem cerca de R$ 700 mensais do governo federal através do benefício. O dinheiro tem uma prioridade: atender as crianças. Seja com roupas, calçados, material escolar e, em raras ocasiões, festas de aniversário. O pagamento só vem na última semana do mês. Até lá, nada de festa.
Nem para as trigêmeas Aline, Amanda e Yasmim, que também comemoraram mais um ano de vida, no dia 13 de junho. Elas não tiveram comemoração no mês de nascimento, apenas ganharam um tênis novo cada uma. Yasmim, entretanto, não conseguiu calçar o presente, por isso o tênis foi para outra irmã. Agora, só quando o novo benefício vier é que ela conseguirá ter o regalo que encaixe no seu pé.
— Vamos fazer uma única festa para as meninas e meu neto. E dividir os custos entre mim e a Graziele — diz Roselaine.
Graziele, 29 anos, é filha mais velha de Roselaine e Rogério a mãe do neto que eles criam. Ela não vive com a família, mas sim em Gravataí, na Região Metropolitana. Mas, o conjunto de problemas de saúde e os efeitos do ciclone que atingiu o Estado no fim de maio, fizeram a mulher buscar abrigo materno por uns dias. Com ela, veio apenas o aparelho de televisão da casa.
Deficiente auditiva e de fala, é por meio de sinais que Graziele se comunica com a família, onde passou os primeiros dias do mês. Ela comprou alguns carrinhos plásticos e um pequenino chocolate para presentear o menino. Logo que Roselaine viu os regalos, questionou a filha por meio de sinais se os itens não tinha sido muito caros.
A conversa é durante uma pequena pausa na separação nos resíduos no meio da tarde. Roselaine e Elisângela vão tomar café. Além da bebida, há pães, margarina e doce de leite. Elas conversam sobre a qualidade do doce de leite disponível na refeição, mas Roselaine logo se defende:
— Peguei o mais barato.
Enquanto saboreiam o produto, as duas divagam sobre o sabor dos deuses de outro doce, um famoso creme de avelã, considerado inacessível.
— É mais de R$ 11 um potinho minúsculo — critica Roselaine.
Por volta das 16h30min, Roselaine encerra o expediente e começa a se preparar para o segundo trabalho, organizar a casa para a chegada do resto da família. Graziele vai buscar o menino na creche, função que Roselaine costuma cumprir.
A creche e o colégio onde as meninas estudam ficam próximos, na parte mais central da Ilha dos Marinheiros, às margens da BR-290. Já o centro social que as irmãs frequentam no contraturno fica no lado oposto, encravado na ponta sul da ilha. E assim como há coletivos para a creche e o colégio, também há para o centro. Por volta das 17h esses ônibus se cruzam, desembarcando a turma ao longo da Rua Nossa Senhora Aparecida, que corta todo o sul da ilha.
Amanda, Aline, Yasmim e Vanessa disputam para dar abraços e carinhos ao sobrinho aniversariante. E também disputam o controle remoto. A TV trazida pela irmã tem sido o grande entretenimento do mês. Pela primeira vez, elas têm acesso a um aparelho com conexão à internet e podem assistir vídeos na tela grande da sala, não apenas no celular da mãe ou de Vanessa, a única das irmãs que têm um aparelho funcionando. A família não tem internet em casa, mas conseguiu emprestado um sinal de wi-fi próximo para a TV.
Enquanto disputam o próximo vídeo que entrará na lista de reprodução do aparelho, as irmãs contemplam Graziele entregando o presente. O garoto, agora com três anos, está feliz da vida. O chocolate entregue pela mãe é o seu preferido, os carrinhos também lhe atraem. A reportagem pergunta se apesar de não haver festa, haverá algo especial na janta para o aniversário do neto.
— Ainda tem alguns pés de galinha ainda no congelador. Vou fazer uma sopa com eles — projeta a avó do aniversariante.
Estudar para sair do barro
Porto Alegre orgulha-se de ser uma cidade arborizada, recheada de praças e parques. São, especificamente, 688 praças e 11 parques. Mas nenhum destes espaços está no lado sul da Ilha dos Marinheiros. E isso gera inquietude entre as filhas de Roselaine e Rogério. Quando a TV da sala volta para o controle da progenitora, logo as meninas se agitam. Querem brincar em algum lugar, mas não há este espaço. Pedem então para ir até a Rua do Beco, uma via próxima onde as crianças da região costumam se reunir para brincar.
Roselaine, entretanto, não deixa as meninas saírem, pois começa a escurecer na ilha. Sem a permissão da mãe para explorar o exterior, Aline e Amanda começam a jogar bola no meio da sala. Uma chuta, outra defende, depois se revezam. Vanessa assiste do sofá enquanto toma suco de laranja, preparado com pó para diluir na água. Ela oferece também a bebida para a reportagem com um gentil "querem suco?".
— É ruim não ter um lugar para elas irem brincar. No Pavão (ilha próxima) tem praça e tudo, mas aqui não temos nada — reclama Roselaine.
Estar longe do centro da cidade, numa área considerada periférica, não é por si só um critério de desigualdade. Segundo o professor economista e professor da Escola de Negócios da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do sul (PUCRS), Ely José de Mattos, apontar a periferia apenas como problema "é uma confusão entre sintoma e doença".
— Achamos que a periferia parece um sintoma da desigualdade. Só que esse sintoma vira pedaço da doença, porque quanto mais longe colocamos aquelas pessoas, menos enxergamos e menos fazemos por elas. Então, é preciso deixar esses locais onde elas vivem habitáveis — explica o professor, que faz uma comparação:
Por que toda hora tem reforma na Nilo Peçanha (avenida de Porto Alegre), mas é tão difícil reformar a Lomba do Sabão? Por que é tão difícil asfaltar a vila? Porque a concentração de poder econômico está nestes locais centrais, mas precisamos olhar para o outro lado também.
ELY JOSÉ DE MATTOS
Economista e professor
Como Amanda e Aline não podem ir para a Rua do Beco, aproveitam o terreno na frente de casa, na margem do Guaíba, para ter conversas de irmãs. Empoleiradas no que já foi uma carroceria de caminhão, elas veem o movimento da água enquanto se equilibram. O que elas têm de mais próximo de uma área de lazer na Ilha dos Marinheiros é o centro social frequentado no contraturno escolar.
Campo e quadra de futebol, pracinha e salas amplas para atividades diversas fazem parte do lugar. Como é um Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos (SCFV), o espaço mantido pela Rede Marista sob contrato com a prefeitura funciona durante o ano todo, mesmo em período de férias escolares.
Durante o mês que passou com os Conceição da Cruz, a reportagem acompanhou uma tarde das meninas no local. A chegada, perto das 13h, é agitada. Diferentemente da escola, no centro social as irmãs são todas da mesma turma. Logo que desembarcam, a primeira parada é no refeitório, para o almoço. A refeição é importante na rotina da família, pois gera economia.
Normalmente, apenas Roselaine, Rogério e Henrique almoçam em casa durante a semana. E a refeição costuma ser singela, incluindo macarrão instantâneo, bife empanado (steak) de frango e ovo frito. O momento em que quase toda família está junta é a janta. Henrique se alimenta depois, quando chega do colégio.
No almoço do centro social, as crianças da comunidade têm acesso a frutas, verduras, legumes, carboidratos e proteínas. Atendimento integral, alimentação e espaço para conviver com outras crianças são ferramentas importantes na longa jornada contra a desigualdade. Lizandro Lui, sociólogo, professor e pesquisador da Escola de Políticas Públicas e Governo da Fundação Getúlio Vargas (FGV) de Brasília, observa que prestar assistência às crianças e idosos é uma maneira de dar também espaço para que os demais integrantes da família consigam prover o sustento.
— Políticas voltadas à juventude são essenciais na erradicação da extrema pobreza. Porque você tanto contribui na formação desse jovem, quanto permite que ele tenha uma realidade diferente da geração anterior à dele.
Roselaine é clara ao dizer que a única exigência que faz aos filhos é que estudem. Henrique também frequentou o centro social até os 15 anos, idade máxima atendida no espaço. Agora, enquanto se ocupa de trabalhos provisórios na ilha, espera encontrar uma oportunidade como Jovem Aprendiz em breve, trilhando um caminho diferente dos pais, que estudaram até a 4ª série, equivalente hoje ao 3º ano do Ensino Fundamental.
— Quero que eles estudem para não viver no barro, como eu vivo — compara Roselaine, fazendo referência ao terreno alagadiço do Arquipélago.
Uma casa construída com latinhas
As duas primeiras semanas do mês foram razoáveis na renda com a reciclagem. O primeiro pagamento, no dia 8 de julho, rendeu R$ 720, algo que não acontecia há tempos. Com isso, chegou a sobrar R$ 50 para usar durante a semana. Sobrar é raridade no orçamento da família. Esta verba restante Roselaine usou para comprar o frango que acompanhou a janta naqueles dias. O frango é comprado numa venda perto de casa, não exatamente a mais próxima, mas a mais barata, explicou a recicladora.
Na segunda semana, paga no dia 14 de julho, o valor foi para mais perto da média que a família vinha conseguindo obter: R$ 543. Estes são os recebimentos integrais, é preciso lembrar que R$ 250 são repassados semanalmente a Elisângela. Roselaine vai se mostrando mais inconformada com a queda no preço dos resíduos.
— A quantidade de resíduo recolhida segue alta, mas o valor só cai. As garrafas PET, que já chegaram a ser R$ 3,50 o quilo, hoje está em R$ 2. O papelão que foi R$ 1, hoje é R$ 0,30. Não dão incentivo para recicladores — lamenta ela, enquanto habilmente vai lançando os resíduos nas bags.
Nem tudo que vem pela Kombi de Rogério é separado por Roselaine e Elisângela. E nem tudo é vendido toda sexta-feira. O papelão, por exemplo, é o próprio motorista da família que separa. Assim como os galões plásticos de cinco litros.
Outros itens que também não entram na cota semanal de vendas são as latinhas e panelas de alumínio. Estas têm um destino especial. Quando há quantidade suficiente "para ganhar um dinheirinho", como diz Rogério, a carga de alumínio é colocada na Kombi e transportada até a Zona Norte de Porto Alegre, onde é vendida. O cobre tinha o mesmo destino, mas com a proibição da compra e venda deste material nos ferros-velhos por parte de prefeitura, os Conceição da Cruz perderam uma fonte de renda.
— Proibiram porque estavam roubando muito fio de cobre. O problema é que sobrou até para a gente que não rouba nada — lamenta Roselaine.
O sonho que a venda do alumínio — e antes, do cobre também — deve realizar é a casa própria da família. Um terreno adquirido na Rua do Beco é onde a obra está sendo tocada. Quem constrói é Rogério e o irmão de Roselaine, apenas aos domingos, quando o tempo está bom. O tempo não esteve muito bom em julho, mas ainda assim, está sendo possível avançar.
O foco agora é na cobertura, com a colocação das chamadas tesouras, estruturas de madeira que receberão o telhado. A casa de madeira deve ter quatro quartos, projeta Rogério. É uma mudança e tanto. Na residência atual, todos dormem juntos em um só cômodo, em duas camas. Apenas Henrique dorme na sala.
Rogério é um pouco avesso a fotografias. Henrique puxou o pai neste quesito. Durante o mês em que a reportagem acompanhou a família, os dois costumavam se esquivar das lentes do fotógrafo André Ávila. Mas, ao menos no canteiro de obras, o pai, motorista, reciclador e também construtor, se sentiu mais à vontade.
Entre marteladas e muito esforço, é ali que ele projeta a independência da família. Ter o próprio espaço não só como um todo, mas também para as meninas, para Henrique e para o casal. E ali que ele também planeja reduzir seu flerte com a acumulação. Na casa onde a família vive hoje, uma parte do pátio é ocupada com itens que poderiam ter sido descartados. Mas de onde Rogério ainda espera conseguir extrair algo.
Ele confessa que poderia ter mais cuidado, e pretende fazer isso na casa nova. Menos com relógios, esses são itens que ele não abre mão. A casa dos Conceição da Cruz é recheada de relógios de parede, todos funcionam, garante Rogério. E uma boa parte veio através dos resíduos recolhidos na cidade.
— Dá para ver a hora em qualquer lugar. E se chega alguém precisando de um relógio, sempre tenho para dar — diverte-se ele.
A casa própria na Rua do Beco é fruto do último elo com a fase anterior dos Conceição da Cruz. O terreno da casa foi comprado com um automóvel que Pedro ainda tinha, um Fiat Uno. O veículo foi dado como entrada para pagar a propriedade. Depois, o restante foi quitado com a venda das latinhas de alumínio.
O carro veio com a família de Novo Hamburgo, onde viviam até 2016. Lá, tinham casa própria e emprego fixo. Roselaine trabalhava para a indústria calçadista, cortando solados num ateliê em casa. Pedro Rogério era mecânico no setor de metalurgia. Mas, sem qualificação formal, acabou sendo substituído. Migrou por diferentes áreas, até se estabelecer atuando também como eletricista.
Nesta última ocupação, costumava viajar pelo Estado para fazer instalações em residências. Certo dia, longe de casa, um sol danado lhe aquecia a moleira. Foi quando recebeu uma ligação de Roselaine, avisando que diferentemente do cenário onde estava, em Novo Hamburgo a casa da família havia sido completamente destelhada por um temporal.
Sem chão, deu um jeito para voltar ao lar e ajudar a família. A ação não agradou muito ao chefe, a relação acabou complicada e Pedro Rogério deixou o serviço. Passou, então, a atuar junto de Roselaine no corte de solados em casa. Mas, com a crise no setor calçadista, o dinheiro sumiu e só restou a opção de buscar abrigo na Ilha dos Marinheiros, onde a família de Roselaine sempre viveu.
— Eu era a única que tinha saído da ilha, mas, no fim, voltei — recorda ela.
Na fatia inferior do Brasil, ter casa é uma garantia de segurança habitacional, como define o professor da FGV Brasília, Lizandro. Para ele, a moradia é parte da "caixa de ferramentas" que a sociedade precisa ter em mãos na hora de trabalhar contra a desigualdade:
— Nas classes mais ricas, a segurança de uma casa não é tão importante. Mas, numa família onde não a renda não é garantida, não pagar um aluguel, por exemplo, pode deixar esse grupo à mercê de morar na rua.
Um "passeio" no Centro
Roselaine está feliz na terceira semana do mês. A reciclagem rendeu R$ 549, incluindo o que ainda será pago a Elisângela. Assim como o papelão, os galões de cinco litros e os itens de alumínio, ela também vende óleo de cozinha usado como renda extra. Na semana anterior em específico, ela conseguiu R$ 18 com o produto.
Além disso, Henrique firmou no trabalho que procurou, recebendo R$ 150 por semana. Esta não é única renda do menino, ele também é beneficiado por um auxílio do governo estadual para estudantes do Ensino Médio, chamado de Todo Jovem na Escola. A bolsa é de R$ 150 mensais, mas é preciso atingir a frequência mínima de 75% na presença no mês anterior ao pagamento.
— É melhor do que nada, né. Ele pelo menos ganha para gastar com as coisas dele. Até arranjou uma namorada — conta a mãe, rindo.
Além das idas ao supermercado nas sextas-feiras ou sábados (depende do dia em que o valor dos resíduos é pago à família), são raras outras saídas de casa. Apenas para levar o neto ao médico e sacar o Bolsa Família. E é dia de sacar o benefício. Não apenas isso, também é dia de Yasmim enfim receber o tênis de aniversário, que não coube no pé no mês anterior. E de Vanessa ganhar o seu calçado, será o único presente.
A irmã mais velha da casa brinca que nunca tem festa de aniversário para ela porque não sobra dinheiro, ela nasceu num 3 de agosto. Apenas as trigêmeas e o neto festejam. Durante todo mês em que a reportagem acompanhou os Conceição da Cruz, a ida à agência da Caixa Econômica Federal (CEF), no centro de Porto Alegre, foi a única vez que alguma das meninas saiu da Ilha dos Marinheiros. É o que mais próximo elas têm de um passeio durante o mês.
O caminho até o Centro Histórico é de ônibus. A caminhada da casa da família até a beira da BR-290 é feita em passos rápidos. A sorte de Yasmim e Vanessa é que já passou do dia 18 de julho, então, elas estão em férias escolares e podem acompanhar a mãe ao Centro.
A chegada até o ônibus é de difícil acesso, passando por um caminho irregular ao lado da BR-290 até atingir a borda da pista. Às 8h34min, quando alcançam a estrada, um ônibus está saindo em direção à região central. Resta esperar o próximo. Yasmim brinca nas linhas que marcam a borda da pista, numa demonstração que ela sempre dá de sentir falta de espaços para se divertir.
Fazia 13ºC, mas pelo menos o sol amenizava o frio. Às 8h53min, um novo ônibus passou e a família embarca, agora em direção ao Centro Histórico. Às 9h15min, enfim desembarcam no terminal de ônibus embaixo do Pop Center.
O primeiro ponto de parada é a agência da Caixa. Sacados os R$ 700 que a família recebe por mês, a caminhada pelo Centro Histórico se inicia. Depois de uma breve parada na farmácia para comprar remédios para dor de cabeça e gastrite, logo as três trilham pela Rua Voluntários da Pátria em busca de um lugar para comprar os tão aguardados pares de tênis. Uma pequena loja no segundo andar de um prédio é o ponto encontrado. Logo que entra no local, Roselaine já indaga para a lojista:
— Cadê os tênis da promoção?
A promoção é a ponta de estoque, os tênis que sobraram. Não há tamanho para escolher e os valores são de R$ 39,90 e R$ 49,90 por cada par. Vanessa chega a experimentar alguns, mas conta a mãe que gostaria de um tênis sem cadarço, semelhante ao que já possui. Brinca que é o presente de aniversário e como não ganhará nada além do tênis, poderia escolher um melhor.
O coração de Roselaine não resiste ao pedido da filha, que é permitida a gastar R$ 20 além do limite da promoção, que era R$ 49,90. Assim, Vanessa conseguiu um item mais caro, de R$ 70. Yasmim ficou com um R$ 49,90 da ponta de estoque, que coube no seu pé e ela gostou. Já se foram R$ 120 do recém sacado Bolsa Família.
Saindo da loja, a família parte para o Mercado Público. Roselaine compra um pacote de espinheira santa, que segundo ela ouviu sob recomendação médica, ajuda no combate a gastrite. A próxima parada não estava no roteiro. Na saída do Mercado, um açougue onde há promoção de carnes chama atenção. O quilo da costela está por R$ 19,99. Rose entra no estabelecimento e logo pergunta pela promoção. Recebe um pedaço de costela, que lhe custam mais R$ 35,90.
Retornando para o Pop Center, é hora de passar no mercado antes de voltar para a ilha. Logo que entram num supermercado no Centro, as meninas pegam um carrinho de compras e começam a brincar, Yasmim embarca e Vanessa conduz. Enquanto isso, Roselaine pega o primeiro item de uma lista rabiscada que leva nas mãos, um desodorante roll-on de R$ 7. As meninas estão no carrinho, Rose alcança o desodorante a uma delas e logo avisa:
— Coloca embaixo ali do carrinho, se não vão achar que a gente está roubando.
Um dos produtos é devolvido para a prateleira porque não está incluso no clube que dá descontos em compras naquela rede de supermercados. Saindo do local, a família está a poucos metros da parada onde embarcará para retornar. A reportagem questiona Roselaine se a costela é para um churrasco do próximo domingo, quando enfim seria comemorado o aniversário do neto e das meninas após a chegada do Bolsa Família. Ela solta uma risada.
— Que nada, vamos na panelinha mesmo. É que estava barato, quase mesmo preço da carne moída. Churrasco é só em Natal, Ano-Novo, Páscoa e as vezes algum aniversário, mas não nesse — enumera Roselaine.
— No Dia dos Pais e das Mães também fazemos — completa Vanessa.
Dentro da média, longe do necessário
Tempo e organização fazem parte das habilidades dos Conceição da Cruz. Todos sabem a hora dos seus compromissos — os vários relógios pela casa ajudam nisso. E também sabem quando é hora de ajudar. Mesmo que exija um pouco de jogo de cintura por parte da mãe, as meninas ajudam em casa, cada uma em um dia da semana, seja dobrando roupas ou lavando a louça.
Henrique também entra na fila dos serviços, mas as irmãs deduram que ele costuma dar um jeito de escapar das obrigações domésticas. A habilidade organizacional parece estar ligada à sabedoria de viver no limite, controlando cada real que entra em casa e buscando a melhor maneira de adaptá-lo. Mas, mesmo com tudo tão contado, há espaço para sonhar. Assim como Roselaine e Rogério estimulam os filhos a estudar, eles respondem com planos para o futuro. Vanessa, a mais velha que ainda mora com os pais, quer ser professora. Yasmim sonha em cuidar de animais, sendo médica veterinária, enquanto Aline pensa em ser advogada.
Amanda e Henrique têm um sonho mais brasileiro: jogar bola. O menino chegou a fazer escolinha num clube da Capital em épocas de vacas mais gordas, mas hoje não consegue mais custear o sonho. Amanda flerta com o esporte apenas no centro social, onde joga entre os meninos. E de vez enquanto, também na sala de casa.
A conversa foi durante a última visita aos Conceição da Cruz, na primeira semana de agosto. Enquanto jantavam, as meninas projetaram o seu futuro. Na cozinha, Roselaine tinha caprichado: arroz, feijão, frango ao molho de tomate e cebola, e batatas cozidas. O verdureiro havia passado pelo bairro no dia. Roselaine compra cerca de R$ 60 em verduras por semana, tudo anotado no caderninho do comerciante e pago no final da semana, quando a renda da reciclagem chega.
Amanda ainda estava com desejo de comer enroladinhos de salsicha, dos quais a mãe, então, ajudou na confecção. A menina pegou cinco salsichas e enrolou no mesmo número de pastelinas.
— Agora, corta eles ao meio, vai render o dobro — indicou Roselaine.
Enquanto preparava a janta, Roselaine debatia com a reportagem sobre o acompanhamento feito durante o mês. Recordou que além da renda, conta com algumas doações pontuais de entidades sociais ou religiosas da Ilha dos Marinheiros. Uma cesta básica aqui, um quilo de alimento ali, um pacote de massa acolá. De pouco em pouco, estes alimentos são essenciais para que a fome não seja algo que assola os Conceição da Cruz.
Não sobra dinheiro, é tudo contado. Mas a gente vive bem dentro do possível, tem comida, tem trabalho. Outras pessoas estão em uma situação pior, mais difícil, né.
ROSELAINE CONCEIÇÃO
Recicladora
A última semana do mês foi a pior na reciclagem. Os resíduos rendaram apenas R$ 450. Com a parte de Elisângela paga, restou apenas R$ 200 para as compras da semana.
Somada só à venda da reciclagem durante o mês, a família recebeu R$ 2.262. Dividido pelos sete membros da família — como o neto recebe ajuda de Graziele, não entrará na conta —, foram cerca R$ 10,77 por pessoa ao dia. Ainda distante dos R$ 17,90 que o documento do IBGE mostrou. Isso colocaria os Conceição da Cruz na camada dos 10% a 20% mais pobres do país.
O cenário muda com as demais rendas. São os R$ 700 do Bolsa Família, os R$ 150 recebidos por Henrique do Todo Jovem na Escola e os R$ 600 mensais que o novo trabalho informal do garoto trouxe. Tudo isso coloca a renda do mês dos Conceição da Cruz em R$ 3.715, o que deu R$ 17,69 por pessoa ao dia. Alguns centavos ainda distantes, mas bem perto da média com que a metade mais pobre da população viveu diariamente no ano passado. Porém, mais distante ainda do mínimo necessário para viver com mais tranquilidade.
— Espero que o preço do resíduo volte a crescer. Hoje, está muito difícil, chega a desanimar a gente do trabalho — deseja Roselaine.
A expectativa dos Conceição da Cruz pode virar realidade nos próximos meses. É que o governo federal aprovou o aumento da alíquota de importação para plásticos, vidros e papel. O plástico, que tinha taxa de 11,2%, passou a ter a importação taxada em 18%. Vidros e papel passam a ter uma taxa de importação de 18% — até o final de julho, essa taxa era de 0%.
As alíquotas eram uma grande reclamação dos catadores. Isso porque as importações estavam tomando espaço do mercado interno, fazendo os preços caírem e prejudicando os trabalhadores. Só entre 2019 e 2022, por exemplo, as compras externas de resíduos de papel e vidro subiram respectivamente 109,4% e 73,3%. As novas alíquotas estão valendo desde o dia 1º de agosto.
Antes da despedida da última visita, a reportagem foi convidada para compartilhar o jantar com a família. Acompanhamos o preparo da refeição, mas agradecido o convite, nos despedimos.
Desigualdade menor, mas ainda incômoda
Apesar de não estar no pior cenário, esta metade menos desfavorecida onde os Conceição da Cruz está recebe, em média, 32,5 vezes menos do que os 1% mais ricos. É um distanciamento grande, sinal da desigualdade que ainda incomoda no país. Ao menos, no documento divulgado pelo IBGE, o índice de Gini, usado para medir a desigualdade (entre 0 e 1, quanto mais próximo de zero, melhor, quanto mais perto de 1, mais desigual) ficou no patamar mais baixo da série histórica: 0,518, ante 0,540 em 2012.
— A formação da desigualdade vem desde a República Nova. É um processo de formação social longa, não começou por causa da inflação alta nos anos 1980 nem de outras crises recentes. É desde a formação do Brasil, das origens colonialistas, da distribuição das terras para famílias que compunham a elite — exemplifica Ely de Mattos, da PUCRS, que completa:
— O Brasil não fez duas coisas relevantes. Primeiro, claro, a educação: nunca conseguimos avançar de maneira consistente nisso. E isso nos leva à segunda coisa, incrementar a produtividade. Temos uma massa de trabalhadores grande, distribuída num território igualmente grande, mas são pouquíssimo produtivos por várias razões, entre elas, a falta de qualificação.
— Começamos a melhorar esse caminho ao longo das últimas décadas, tentando construir estratégias do acesso à renda. A Constituição de 1988, por exemplo, criou a vinculação do salário mínimo à aposentadoria, pensões e outros benefícios. Começamos a ter um sistema em que há um início do ideal de distribuir melhor a renda — acrescenta o sociólogo Lizandro Lui, da FGV de Brasília.
Soluções vão além de transferência de renda
Mesmo que programas sociais de transferência de renda sejam uma medida necessária e apontada por economistas e pesquisadores ouvidos nesta reportagem, todos citam que também é preciso ir além. Hoje, a principal dificuldade do Brasil é alinhar a transferência de renda com a mudança de patamar das famílias que recebem estes benefícios.
— A gente consegue pegar quem está muito vulnerável e aproximar mais do meio. Só que esse meio já é muito baixo. Temos que melhorar a renda dessas pessoas também — acredita o professor Ely Mattos, da PUCRS.
Para Ely, aperfeiçoar os programas de renda para incluir elementos de capacitação, facilitar o acesso dos beneficiados ao mercado, a empregos de maior qualidade, são pontos necessários.
— É preciso qualificar as pessoas para que consigam chegar ao nível técnico, por exemplo, e conseguir rendas maiores pelas próprias pernas. E hoje não temos isso de maneira sistemática.
Mas, como se avança, então? O economista exemplifica: se um morador da Capital que vive em situação de baixa renda resolve fazer um curso técnico, como ele consegue? Onde ele vai? Com quem ele fala? Na visão do professor, é preciso sistematizar isso e pensar também em como bonificar esse cidadão, afinal de contas ele precisa abdicar de parte da renda enquanto estuda:
— As pessoas podem se perguntar: "Mas, então, vocês querem que as pessoas ganhem para receber treinamento?". É evidente que sim, é um estímulo positivo. Tem que facilitar a vida das pessoas que precisam.
Essa facilitação vai além, segundo o professor da Escola de Negócio da PUCRS. Quando o poder público lança um programa ou iniciativa que exige das pessoas faltar ao trabalho, passar um dia numa fila ou horas ao telefone, tudo fica mais difícil para quem tem necessidades mais urgentes.
Será que não conseguimos fazer ações sem submeter as pessoas a essas situações? Empresário nenhum fica dois dias indo numa fila no sol para receber um financiamento de fluxo de caixa.
ELY JOSÉ DE MATTOS
Economista e professor
Mesmo que a maior parte do problema da desigualdade tenha que ser abraçado pelo Estado, com os investimentos em áreas de saúde, educação e habitação, por exemplo, também há espaço e necessidade de outros parceiros nesta caminhada, aponta o sociólogo Lizandro Lui.
Para ele, a sociedade civil precisa fazer parte dessa capacitação da massa de trabalho, apoiando organizações da sociedade civil, dando assistência às crianças e idosos, e contribuindo para uma mobilidade urbana eficiente, facilitando o deslocamento e busca por emprego destas pessoas.
— Você não pode depender de uma ferramenta só, mas de um mix. Quem vai dar apoio? Quem vai qualificar? De que forma pode se inserir melhor essas pessoas em posições melhores? Dada a complexidade, ainda há muito chão pela frente, mas muitas coisas podem ser melhoradas na janela de uma década, por exemplo.
O professor da PUCRS amplia um pouco mais o tempo de trabalho. Para ele, a redução da desigualdade e erradicação da pobreza extrema são questões geracionais, que exigem duas ou três décadas de trabalho, desde que haja realmente foco e interesse na mudança.
— Essas políticas de vamos mudar tudo da noite para o dia, não tem como. Exige tempo e investimentos — pontua Ely.
Encerrar o ciclo exige esforço desde cedo
A desigualdade pode começar durante a gestação para uma criança que ainda vai nascer. É o que pontua Luciano Nakabashi, professor da Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária do campus Ribeirão Preto (FEA/RP) da Universidade de São Paulo (USP). Segundo ele, interromper a pobreza geracional — aquela de pais para filhos — pede investimentos de saúde, até mesmo focando em saúde mental, acompanhamento psicológico para as famílias. É necessário que as crianças e jovens tenham segurança de nascer, mas também crescer num ambiente seguro.
— Temos que melhorar a qualidade do acesso à escola. As pessoas têm mais acesso hoje, as diferentes classes têm, mas a qualidade para as pessoas que vão pra escola pública ainda é fraca, quando comparada às escolas particulares. Ainda, a universalização da educação, o maior acesso à saúde e os programas de transferência vão no sentido de tentar quebrar essa questão da distribuição de renda, que ainda é muito ruim no Brasil — acredita Nakabashi.
O conjunto de segurança alimentar, habitacional de educação também é apontado pelo professor da USP. Com o desenvolvimento destas crianças, vem o segundo passo, aumentar a oportunidade de qualificação desde cedo. Aumentar a oferta de oportunidades de estágio e jovem aprendiz ainda no Ensino Médio, permitindo um ingresso no mercado de trabalho ainda na adolescência. E também um trabalho com chance de renda maior e menos insalubre ou inseguro do que o enfrentado pelas gerações anteriores àquelas crianças.
— Programas sociais de incentivo à permanência dos jovens no Ensino Médio, aliados a uma política de jovem aprendiz são um caminho. Porque às vezes esse jovem quer ajudar em casa, mas precisa estudar. Se ele, durante o Ensino Médio, recebe recurso, qualificação, ele termina esse período vendo outros caminhos na vida. Além de contribuir na formação desse jovem, o que ele ganharia trabalhando, ganha estudando, se qualificando. É benefício para a sociedade como um todo. E a partir disso, opta por entrar numa universidade, ser alguém qualificado. Dentro de três a cinco anos, muda-se o patamar dessa pessoa, saindo de uma realidade onde, por exemplo, onde a profissão é vulnerável, para ter mais acesso a diferentes opções de trabalho — projeta Lizandro, da FGV Brasília.