A peregrinação em busca de justiça por parte dos familiares de vítimas do incêndio na boate Kiss, que matou 242 pessoas em 2013, ganha mais uma etapa na próxima semana. Passados mais de 10 anos da tragédia, a maior já registrada no Rio Grande do Sul, parentes dos mortos e sobreviventes irão a Brasília para acompanhar de perto o julgamento do júri dos acusados pelo desastre, que ocorre na terça-feira (13). Magistrados do Superior Tribunal de Justiça (STJ) vão julgar se a condenação dos quatro réus, ocorrida em dezembro de 2021, deve ser mantida.
Naquele júri, o mais longo da história gaúcha (10 dias), os quatro acusados (dois donos da boate e dois integrantes da banda que se apresentava na hora do incêndio) foram condenados a penas que variam de 18 a 22 anos de reclusão. Os jurados interpretaram que tanto os empresários como os músicos tinham consciência de que o uso de artefato pirotécnico que provocou o incêndio poderia ter sido evitado, mas mesmo assim a prática foi mantida. A sentença foi por homicídio qualificado de 242 pessoas e tentativa de homicídio contra 636 pessoas, que resultaram feridas ou com saúde abalada.
Mas o júri foi anulado em 2 de agosto de 2022 pela 1ª Câmara do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ-RS), por desembargadores que apontaram uma série de irregularidades formais, anteriores ao julgamento: três sorteios para escolha de jurados (e não apenas um, como é o usual), ocorrência de uma reunião reservada dos jurados com o magistrado que julgaria o caso (sem a presença de defensores dos réus), formulação supostamente equivocada de perguntas a que os jurados teriam de responder e também o acesso por parte do Ministério Público (MP) ao banco de dados Consultas Integradas, o que permitiu que a acusação impugnasse possíveis jurados que já tinham visitado parentes ou amigos no sistema prisional (sendo que o banco de dados não é acessado pela defesa dos réus). A anulação atendeu a pedido dos defensores dos acusados.
Após a anulação, o TJ determinou a libertação dos quatro réus — os empresários Elissandro “Kiko” Spohr e Mauro Hoffmann e os integrantes da banda Gurizada Fandangueira Marcelo de Jesus e Luciano Bonilha. Isso abriu a possibilidade de realização de um novo júri, algo desejado pela defesa dos réus. Mas o MP considera que a sentença deve ser mantida. A subprocuradora-geral da República, Raquel Dodge, considera que as supostas irregularidades anuladas “não trouxeram prejuízo aos réus”. E salienta que, conforme o artigo 563 do Código de Processo Penal, nenhum ato será declarado nulo, se da nulidade não resultar prejuízo para a acusação ou a defesa.
O Recurso Especial 2.062.459, movido por Raquel em nome do MP, será julgado pela 6ª Turma do STJ e está sob a relatoria do ministro Rogério Schietti. Ele determinou que o caso, que estava em sigilo, seja tornado público.
Se houver o entendimento de que a anulação foi inválida, o Tribunal de Justiça deve restabelecer a sentença com a condenação dos quatro réus e determinar a prisão deles. Se o STJ mantiver a anulação, os réus continuam esperando um novo júri em liberdade.
Além de Schietti, compõem a 6ª Turma do STJ a ministra Laurita Vaz (presidente do colegiado), os ministros Sebastião Reis Júnior e Antonio Saldanha Palheiro, além do desembargador convocado Jesuíno Rissato.
O julgamento
- O julgamento começa quando o processo é apregoado (chamado) para apreciação.
- Poderá haver sustentação oral, caso tenha sido solicitado pelo MP ou pela defesa.
- Após, o ministro relator apresenta o seu voto e, na sequência, é possível haver debates entre os ministros.
- Em sequência, os demais ministros apresentam os seus votos, com a proclamação do resultado ao final do julgamento.
- A sessão tem previsão de início às 14h do dia 13 e será transmitida pelo canal do STJ no YouTube.
Pais devem acompanhar em Brasília
Pelo menos 20 grupos de familiares e amigos de vítimas da Kiss devem desembarcar na capital federal para assistir ao julgamento do recurso contra a anulação do júri dos acusados pela tragédia de Santa Maria. Usarão parte dos recursos arrecadados numa vaquinha online para custeio de transporte, alimentação e estadia. A iniciativa surgiu assim que o júri foi anulado, no ano passado. A meta era arrecadar R$ 200 mil, mas o site informa que foram obtidos R$ 31 mil.
Desde que se soube que o recurso contra a anulação do julgamento seria julgado, um grupo de pais fez vigília em frente ao prédio do STJ, em Brasília. Alguns foram recebidos em abril pela presidente do órgão, ministra Maria Thereza de Assis Moura, que prometeu atenção especial à análise dos recursos pela manutenção da condenação.
Um dos que pretende voltar a Brasília para pressionar pela manutenção da sentença condenatória é o diretor jurídico da Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM), Paulo Carvalho, 72 anos. Ele é pai de Rafael Carvalho, uma das 242 vítimas do incêndio da Kiss.
Carvalho considera que a atuação da entidade, nas vigílias realizadas em Porto Alegre e em Brasília, surtiu efeito:
— O sentimento, apesar da longa espera, é que teremos um fim a esse longo e inesgotável processo. O retorno dessa luta servirá a todos pelo receio da punição e o respeito às normas de segurança. Que vidas não sejam mais perdidas como também em outras tragédias que poderiam e deveriam ser evitadas. Que o assumir o risco tenha a precedência do caso Kiss.
O que dizem as defesas
A reportagem ouviu os advogados de defesa dos quatro réus sobre suas expectativas em relação ao julgamento da próxima terça-feira. Veja o que eles dizem.
Jean Severo, advogado de Luciano Bonilha:
— O que considero mais grave é o momento em que o juiz interrompe o argumento da defesa e se reúne, em separado, com os jurados, sem presença de defensores dos réus ou do Ministério Público. Provavelmente nesse momento o magistrado deve ter recomendado que os jurados não levassem em conta o que foi dito pela defesa. Só que os acusados têm direito à plenitude de defesa. Ele também errou ao ter excesso de linguagem nos quesitos, o que confundiu os jurados. Queremos um novo júri e em Santa Maria, onde o meu cliente é benquisto.
Tatiana Borsa, advogada de Marcelo de Jesus:
— Todas as nulidades são graves. Elas contaminaram o processo. O que mais quero é essa anulação em definitivo e que seja realizado novo júri, o mais rápido possível. Que se faça justiça e não vingança.
Mário Cipriani, advogado de Mauro Hoffmann:
— Temos convicção na necessidade da manutenção da decisão que anulou o júri. Os vícios do julgamento foram gravíssimos e somente um novo julgamento permitirá apreciação sem condicionamentos. Todas as nulidades reconhecidas foram erros severos, que contaminaram a transparência e a imparcialidade do julgamento. Esperamos a decisão do STJ seja por não prover o recurso do MP, descendo o processo para o RS para que seja marcado novo júri da forma mais expedita.
Jader Marques, advogado de Elissandro Spohr:
— O que está em julgamento no STJ, neste momento, não é propriamente a opinião da defesa ou da acusação, mas sim o acerto do julgamento proferido pela 1ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça, quando decretou a nulidade da sessão de julgamento da Boate Kiss. O desembargador Jayme Weingartner Neto, que é o autor do voto vencedor, determinou que todas as nulidades foram arguidas no prazo previsto em lei e na forma determinada pelo Código de Processo Penal. O desembargador José Conrado Kurtz de Souza também reconheceu as nulidades apontadas pelas defesas. O que os ministros farão é dizer se o TJ acertou ou errou ao anular o júri.
O que diz o Ministério Público
Em nome do Ministério Público, a subprocuradora-geral da República, Raquel Dodge, salienta que os defensores de dois dos quatro réus do Caso Kiss jamais demonstraram contrariedade com o sorteio de jurados, tendo alegado isso somente após a realização do júri.
Ou seja, na época do julgamento isso não teria causado prejuízo ou sequer estranheza aos acusados. “A defesa preferiu silenciar, e somente suscitar nulidade após o desfecho condenatório favorável”, argumenta a subprocuradora-geral, em seu recurso ao STJ.
Os réus e as acusações contra eles
As defesas dos quatro réus não negam que eles têm alguma responsabilidade em relação ao incêndio, mas dizem que os acusados jamais tiveram noção de que poderia ocorrer uma tragédia na boate Kiss. Por isso, pediram julgamento por homicídio culposo (não-intencional). Não levaram. A Justiça entendeu que eles deveriam ser julgados por dolo eventual — quando correram o risco consciente de provocar uma tragédia, mesmo sem intenção de que ela acontecesse.
Confira qual a principal acusação contra cada um deles.
Elissandro Spohr, conhecido por Kiko, sócio da boate — Conforme o Ministério Público, contratou empresas para improvisar revestimentos acústicos na boate, sem os devidos cuidados, sem adequado responsável técnico e com material inflamável. Teria, assim, corrido risco consciente de incêndio. Em sua defesa, Kiko alega que jamais teve noção do risco, tanto que estava na boate com sua mulher (grávida), na hora em que o fogo começou.
- Foi condenado a 22 anos e seis meses de prisão, no júri que foi anulado.
Mauro Londero Hoffmann, sócio da boate — conforme o Ministério Público, estava ciente das obras realizadas na boate por seu sócio, Kiko. Tendo incorrido, portanto, em dolo eventual (quando se tem consciência do risco de uma morte acontecer, mesmo sem vontade que ela ocorra). Em sua defesa, Hoffmann alega que cuidava de outra boate e não participava do cotidiano da Kiss, além de não estar presente na noite do incêndio.
- Foi condenado a 19 anos e seis meses de prisão, no júri anulado.
Luciano Bonilha, produtor da banda Gurizada Fandangueira — Conforme o Ministério Publico, ele adquiriu numa loja artefato pirotécnico capaz de provocar incêndio na boate, mesmo tendo sido alertado pelo vendedor de que aquele tipo de equipamento só poderia ser utilizado ao ar livre e era inadequado para ambientes internos, por ter potencial inflamável. Em sua defesa, Bonilha nega que tivesse consciência do risco de atear fogo no revestimento do teto da boate.
- Foi condenado a 18 anos de prisão, no júri anulado.
Marcelo de Jesus, vocalista da banda Gurizada Fandangueira — Conforme o Ministério Público, foi quem colocou fogo na boate, ao apontar o artefato pirotécnico para o teto de espuma. Ele teria feito isso em outras ocasiões. Em sua defesa, Jesus alega que não tinha noção de que o equipamento poderia causar incêndio, tanto que ele mesmo correu risco de vida e se intoxicou com a fumaça.
- Foi condenado a 18 anos de prisão, no júri anulado.