Nesta quinta-feira (25), quando a tragédia de Brumadinho completa seis meses, GaúchaZH relembra reportagem publicada cerca de um mês após o rompimento da barragem da Vale, ocorrido em 25 de janeiro de 2019. Segundo o balanço mais recente, 248 pessoas morreram e 22 seguem desaparecidas.
Quando saltou do helicóptero na zona devastada pelo rompimento da barragem da Vale, em Brumadinho (MG), o cabo José Carlos Heringer Vieira, 38 anos, fitou o horizonte em silêncio. Diante dele, o mar de lama cobria tudo: casas, plantações, currais, lagoas, árvores, estradas. Treinado para enfrentar situações extremas e acostumado a correr riscos, o homem de 1m83cm teve de respirar fundo para não chorar. Era preciso seguir em frente.
Um mês após a tragédia, a imagem permanece gravada nas retinas de Heringer e dos companheiros do 1º Batalhão de Bombeiros Militar de Minas Gerais, que observavam, incrédulos, o tamanho da mancha ocre a percorrer na tentativa de resgatar vítimas. A catástrofe completava 68 horas. E era só o começo.
Desde então, as chances de localizar sobreviventes se esvaíram, mas a procura por corpos prossegue. O lamaçal, que em determinados pontos chega a atingir 15 metros de profundidade, continua lá, como um imenso cemitério a céu aberto, marca indelével do horror vivido no município de 39,5 mil habitantes.
Eram 12h28min de sexta-feira, 25 de janeiro, quando a barragem na Mina do Córrego do Feijão ruiu. Com a violência de um tsunami, a onda de barro avançou sobre as estruturas da Vale. Em segundos, engoliu prédios, vagões de trem, veículos e vidas. Em minutos, arrasou comunidades rurais inteiras.
Uma área de 290 hectares – equivalente a 290 campos de futebol – foi tomada pela avalanche, segundo estimativas oficiais. O material desceu a serra até encontrar o Rio Paraopeba, cerca de 10 quilômetros depois, tingindo de vermelho o afluente do São Francisco. A injeção de rejeitos sufocou e afugentou surubins, tambaquis, curimbas e dourados e passou a ameaçar o abastecimento d’água de cidades próximas. Agora, a lama que transforma a paisagem resiste ao açoite de máquinas pesadas.
Dia após dia, nas últimas semanas, quatro dezenas de escavadeiras revolvem a terra na zona de risco atrás de corpos soterrados, em uma nova fase das buscas. Pais, mães, filhos, tios e avós ainda aguardam notícias, rezam por aqueles que sumiram e exigem respostas da Vale.
A lama aquosa é difícil. Você cava e ela volta. Dependendo do movimento que faz com o corpo, você afunda.
CABO HERINGER
38 anos
Até sexta-feira (22), as autoridades contavam 176 mortos e 134 desaparecidos. Em 30 dias de operação, completos neste sábado (23), mais de mil agentes terão se revezado nos trabalhos de resgate, entre eles Heringer e cinco parceiros: os aspirantes a oficial Sandro Matilde Júnior, 24 anos, e Tárcio Salles da Silva, 23, o cabo Lauro Garcia, 30, e os soldados Adriano Antunes de Souza, 22, e Emília Couto Viana e Sousa, 26 anos. Zero Hora acompanhou de perto o trabalho dos seis bombeiros, na lama de Brumadinho, e voltou a encontrá-los na sede do batalhão, em Belo Horizonte, onde rememoraram dificuldades, angústias e momentos de superação.
O primeiro resgate
Cabo Heringer soube do desastre pelo WhatsApp, na hora do almoço. Tinha acabado de chegar em casa, após o plantão. De imediato, se ofereceu ao comando para ir a Brumadinho. Queria ajudar. Em algumas horas, diante do olhar apreensivo da mulher, a bióloga Márcia Carneiro Heringer, 34 anos, partiria de ônibus com 29 colegas para o epicentro da catástrofe.
— Chegamos e ficamos em QAP (“na escuta”) — conta o militar.
O chamado chegou antes das 8h do dia 28 de janeiro, segunda-feira. Com trajes de neoprene, capacetes, luvas, bandanas e botinas, Heringer e parte do grupo embarcaram em um helicóptero da Marinha rumo à lama. Muitos já haviam atuado no caso de Mariana, três anos antes, mas a visão do estrago não passaria incólume.
— Só vendo de perto para ter a real dimensão da tragédia. Pela TV, não é a mesma coisa — sintetiza o soldado Antunes.
Para quem tinha ligações com Brumadinho, o efeito foi ainda mais avassalador. Heringer saltou da aeronave com os colegas e, por segundos, lembrou das pescarias na região, da água límpida, do verde dos morros, do ambiente de silêncio e paz. Naquele momento, ouvia apenas o zunido de hélices cortando o céu e sentia o peito apertar.
— Eu gostava daquele lugar. Fiquei muito triste, mas pensei: estou aqui para cumprir uma missão. Era preciso ter foco — diz.
Tinha uma mulher que ficava sempre lá, perto da lama, no mesmo lugar, rezando, chorando. nunca saía de lá.
SOLDADO ANTUNES
22 anos
O helicóptero pousou na encosta de uma colina, a menos de 50 metros do lamaçal. Os bombeiros deixaram o veículo e perscrutaram a área em busca de um ponto de acesso seguro até os rejeitos.
— Era tanta lama, mas tanta lama, que a gente não sabia nem por onde começar — recorda a soldado Emília, única mulher da equipe.
Um morador local ofereceu auxílio. Era um mateiro. Conhecia a floresta – e o que sobrou dela – como poucos. A partir dali, se transformaria em voluntário, como tantos outros que fariam a diferença naquele ambiente hostil, oferecendo orientações e palavras de incentivo.
Pela margem, entre arbustos e escombros, o nativo passou a acompanhar o grupo, que avançava no barro. Primeiro, pelas bordas, depois para dentro, com os bombeiros lado a lado, esquadrinhando o território desconhecido.
Da beirada, o homem caminhava com um facão em punho. Cortava paus e jogava em direção aos profissionais. Os galhos seriam, a partir dali, o prolongamento dos braços de cada um, tornando menos árdua a locomoção no lodo. Qualquer passo em falso significaria um mergulho no desconhecido. A maior parte do terreno era mole como areia movediça e repleta de armadilhas. Sob a lama, havia tocos, raízes, espinhos...
— Tinha de tudo: botijão de gás, roda de caminhão, trilhos. Era algo totalmente incomum — detalha o cabo Garcia.
A varredura era na base do rastejo. Só se levantava e caminhava quando havia troncos ou pontos mais secos de lama. Sem tocar nos rejeitos, o mateiro indicou aos socorristas um local onde o barro fazia a curva. Dali, emanava o cheiro forte que se tornaria presença constante nos dias seguintes e que, até hoje, predomina na região: odor de terra úmida associada a restos de mineração, misturado a material orgânico em decomposição, agressivo ao olfato.
Em suas andanças, o grupo encontrou cadáveres de cachorros, capivaras, porcos, peixes, ratos e até uma cobra de cerca dois metros de comprimento. O primeiro achado humano foi uma perna, no espaço indicado pelo mateiro, sob toras de madeira. O membro foi ensacado e transportado por uma aeronave.
Cabeça, braços, espinha dorsal
Em quatro dias de serviço intenso, os seis bombeiros estimam ter localizado dois corpos (um deles sem cabeça e o outro sem o braço esquerdo), dois torsos, dois braços, uma cabeça masculina, uma mão, três pernas, uma espinha dorsal.
— Localizamos mutilados. Por onde passou, a lama quebrou tudo — esclarece Heringer.
Como integraram outras equipes ao longo da missão, dividindo-se quando necessário, ele e os companheiros não sabem dizer com exatidão quantos e quais segmentos corporais encontraram e quantas famílias ajudaram – o que dependia de análise de DNA, a cargo de peritos. A única certeza é dolorosa: não acharam ninguém vivo.
— A gente tinha a esperança de localizar sobreviventes. Eu rezava muito por isso, todos os dias. Infelizmente, não aconteceu — lamenta Garcia.
À medida que o trabalho evoluía, os militares aprimoraram as técnicas de busca. Alguns deles tinham cursos de especialização (de salvamento em soterramentos, enchentes e inundações e de busca e resgate em estruturas colapsadas). A qualificação permitiu definir estratégias e manter a mente sã, mas foi preciso ir além.
— A gente estava preparado para lidar com água e com terra, a questão é que a lama não era totalmente líquida nem totalmente sólida — explica o aspirante Sandro Júnior.
A gente esfregava muito e, ainda assim, acordava com a marca do corpo no lençol. As toalhas ficavam escuras.
ASPIRANTE SANDRO JÚNIOR
24 anos
Trezentos metros rastejando, conforme o militar, equivaliam ao esforço de 10 quilômetros de corrida. Cansaço, sede e calor foram sensações constantes. Para não deixar nada para trás, o grupo passou a redobrar a atenção para certos indícios em campo, como mau cheiro, moscas, urubus, marcas de gordura e espuma na lama.
— Onde o barro estava mais liso, com a presença de bolhas, havia maior chance de encontrar vítimas — descreve Heringer.
Com os bastões de madeira, eles perfuravam o solo e faziam movimentos cônicos para forçar a liberação de odores. Para cavar, era preciso paciência e força. No início, todo o expediente era manual, porque ainda podiam aparecer pessoas com vida. As escavadeiras chegaram depois.
— A lama aquosa é difícil. Você cava e ela volta. Dependendo do movimento que faz com o corpo, você afunda. Muitas vezes, era preciso trabalhar deitado — revela Heringer.
Além do cuidado nas escavações, foi necessário adotar medidas de precaução contra contaminações. No começo, quando um helicóptero descia para pegar corpos, o vento lançava o chorume nos rostos dos bombeiros. Com as lufadas, o odor podia causar náuseas. Muitos passaram a usar bandanas sobre nariz e boca e óculos de proteção.
Um susto na tempestade
Às 17h de 30 de janeiro, quarta-feira, o céu escureceu. Nuvens carregadas anunciaram a chegada de uma tormenta. Garcia rememora:
— Aquele tinha sido um dia importante. Encontramos dois corpos e cinco partes desmembradas, mas, no fim da tarde, começaram a chegar alertas de tempestade pelo rádio. Era perigoso continuar lá.
As equipes, então, começaram a deixar a “zona quente”, como é chamada a área de risco. O vento já soprava forte. Uma saraivada de granizo desabou sobre a região.
Em meio à correria, bombeiros de São Paulo ficaram presos no lamaçal. Haviam encontrado uma perna quando o tempo virou. Um deles pediu apoio.
— Enquanto todos saíam, eu respirei fundo, mantive a calma e voltei — lembra Garcia.
Quando voltei para casa, passei dias sonhando que estava na lama de novo. acordava em sobressalto.
ASPIRANTE TÁRCIO
23 anos
Perto dali, o aspirante Tárcio também retornou:
— O tenente disse que não iria abandonar a equipe dele lá. Então eu fiquei também.
Longe dali, Emília e o resto do grupo decidiram deitar em um descampado para se proteger dos raios, mas a chuva forte impedia de permanecer no chão. Correram a um curral desativado.
— Quando chegou a informação de que o pessoal de São Paulo estava em perigo, ficamos assustados — ressalta a militar.
Foram cerca de 20 minutos de pavor até que Garcia, Tárcio e os colegas conseguissem sair da área crítica em segurança. Árvores inteiras desabaram à frente das caminhonetes, e os bombeiros ainda tiveram de retirar a vegetação da estrada.
Enquanto isso, na estrebaria abandonada, Sandro Júnior revelou aos parceiros: estava de aniversário. Não havia clima para o “parabéns a você”, mas o aspirante foi abraçado por todos. Ali, eles eram uma família.
Aplausos, lanches e banho
Ao final de cada dia, o retorno ao posto de comando ocorria por volta das 19h, sempre de helicóptero. Da primeira vez em que chegaram, os bombeiros foram surpreendidos por uma salva de palmas dos voluntários, o que virou um ritual.
— Aquilo me marcou muito, sabe? Era um momento especial — afirma Garcia.
Os profissionais recebiam lanches (sanduíches, frutas e isotônicos) e eram examinados, um a um, por médicos militares. No segundo dia, ganharam pílulas de prevenção à leptospirose. Na volta da missão, fariam exames de sangue e de urina.
No começo, depois de comer, pegavam a mangueira e limpavam as roupas cobertas de lama ali mesmo, no heliponto. Depois, voluntários passaram a cuidar das vestes dos bombeiros. Chegavam à pousada tarde da noite. Na hora do banho, era necessário esfregar a pele com vigor para tirar o barro.
A gente tinha a esperança de localizar sobreviventes. Eu rezava muito, todos os dias. Infelizmente, não aconteceu.
CABO GARCIA
30 anos
— A gente esfregava muito e, ainda assim, acordava com a marca do corpo no lençol. As toalhas ficavam escuras. Lembro de ver a minha mão brilhando por causa dos minérios — conta Sandro Júnior.
A que tipo de substâncias eram expostos? Eles não sabem.
— É bom nem pensar muito nisso — diz Antunes (na última terça-feira, o governo de Minas Gerais informou que exames de quatro bombeiros apresentaram excesso de metais no sangue).
Sandro complementa:
— A missão era maior do que o medo. Ser bombeiro é sacerdócio.
Banho tomado, era hora de dormir. Nos ouvidos, o zumbido das aeronaves persistia, assim como o aroma da lama nas narinas. O sono era pesado e sem sonhos. Às 6h, estavam todos de pé outra vez.
Dor e missão interrompida
Ao meio-dia de 29 de janeiro, terça-feira, o cabo Heringer avistou uma cabeça. Na ânsia de chegar logo ao local, correu, saltando de tora em tora. Acabou ferido.
— Minha perna direita agarrou na lama e a outra escorregou de um tronco. Sofri um estiramento grau 3 na virilha. Naquela hora, pensei: eles vão me tirar da operação. Meus amigos então seguiram o protocolo e começaram a fazer uma cruz no chão, para o helicóptero me resgatar, mas eu não podia aceitar aquilo e desfiz o sinal. Quebrei um galho, fiz de bengala e continuei até o fim do dia — conta Heringer.
Às 23h, depois de ser atendido por um médico, ele recebeu a ligação da mulher. Grávida de sete meses da primeira filha do casal (que se chamará Lavínia), Márcia foi direta:
— Eu vou aí te buscar.
— Amor, eu vou ficar mais um dia — respondeu o marido.
— Então olha no bolso esquerdo da sua mochila e me liga — apelou a gestante.
Na pousada, Heringer fez o que Márcia pediu. Na bolsa, encontrou um par de sapatinhos de croché, junto de um bilhete escrito à mão. No papel, lia-se: “Papai, volta logo para cuidar da mamãe e de mim”. Heringer desabou:
— Chorei. Não adiantava estar ali, tentando ajudar, se na minha casa estavam precisando de mim.
No dia seguinte, ele voltou a Belo Horizonte. Hoje, ainda se culpa pela saída abrupta, mas é exemplo entre os colegas.
— Um dia, ainda vou poder falar para a Lavínia sobre o pai dela, com quem tive a honra de trabalhar — diz o tenente Fabrício Dalfior, que responde pelo comando da 1ª Companhia Operacional do 1º Batalhão.
O que fica da tragédia
Os seis bombeiros voltaram para casa. Heringer se recupera, e os demais não sofreram lesões. Dois deles, Sandro e Tárcio, retornaram outras vezes às trincheiras de Brumadinho, em funções de gestão.
— Algo dessa proporção mexe com a gente, porque é um crime. Dezenas de famílias vão ficar desestruturadas, e a cidade vai ficar marcada para sempre. Mas o que vimos lá, depois de tudo isso, foi união. Em um momento de divisão do país, ali não tinha direita, esquerda, homem, mulher. Tinha gente querendo ajudar — afirma Emília.
A militar conta que vivia “um dia depois do outro”, sem tempo para pensar. Só chorou quando chegou em casa e viu o cachorro. Lembrou-se dos mortos e abraçou Luke, um maltês de dois anos. Desde então, quase todos os dias, sonha com o barulho dos helicópteros e se vê arrumando a mochila outra vez, para voltar.
Em um momento de divisão do país, ali não tinha direita, esquerda, homem, mulher. Tinha gente querendo ajudar.
SOLDADO EMÍLIA
26 anos
Sandro Júnior sentiu o mesmo quando viu os pais, Sandro e Simone, cuja foto carregou durante toda a missão:
— Quando você chega em casa e abraça as pessoas que ama, é aquela sensação de alívio. Ao mesmo tempo, a gente lembra de quem perdeu tudo e sente tristeza por isso.
Antunes não consegue apagar da memória o sofrimento de uma família que viu e reviu todos os dias em que esteve em ação:
— Tinha uma mulher que ficava sempre lá, perto da lama, no mesmo lugar, rezando, chorando. Ela nunca saía de lá.
Garcia acrescenta:
— A gente saía do centro de operações, e as mesmas pessoas perguntavam, todos os dias: bombeiro, quantos vocês acharam hoje? Bombeiro, traz meu filho de volta?