Quando vi de perto o mar de lama que arrasou Brumadinho (MG), sob o zunido incessante de helicópteros sobrevoando a localidade de Córrego do Feijão, parei. Respirei fundo. Ali, ao lado do repórter fotográfico André Ávila, compreendi o tamanho da catástrofe que comoveria o país e a responsabilidade que teríamos, como jornalistas, de narrar esse triste capítulo da história brasileira.
Até onde podia enxergar, o lamaçal — que se espalhou por uma área de 290 hectares (equivalente a 290 campos de futebol) — havia arrastado árvores inteiras, revirado raízes, soterrado casas e lavouras, engolido pessoas e animais. Tinha levado vidas.
Das aeronaves que iam e vinham, pendiam corpos inertes, cobertos de lodo. Em solo, homens e mulheres choravam, comovidos. A cena, captada com sensibilidade pelas lentes de André, se repetiria outras vezes e surtiria sobre nós o mesmo impacto brutal.
Foram seis dias em Minas Gerais, em uma das coberturas jornalísticas mais duras de meus 18 anos de profissão. Chegamos a Belo Horizonte na noite de sexta-feira (25), data da catástrofe. Antes do raiar do dia, já estávamos na estrada, com todos os nossos equipamentos (drone, câmera, computadores, celulares, microfone e tudo mais que você puder imaginar). Estávamos ansiosos. Estradas haviam sido interrompidas e ainda não sabíamos se seria possível chegar ao olho do furacão, que é onde um jornalista deve estar.
Com cuidado, fomos até onde era possível ir com segurança. Mesmo na margem, André afundou uma das pernas na lama até a canela e teve de puxar a bota com as duas mãos para conseguir sair. Em alguns pontos, o resíduo parecia areia movediça.
Com a ajuda do colega Sandro Silveira, anjo da guarda dos repórteres de GaúchaZH, capaz de operacionalizar viagens de emergência em minutos, já tínhamos alugado um carro e contratado um motorista. Mineiro de BH, Daniel Fernandes conhecia a região e nos conduziu sem contratempos por atalhos de chão batido, em meio a colinas cobertas de mata, até o epicentro da tragédia.
Às 7h30min de sábado (26), adentramos Córrego do Feijão, vilarejo localizado na zona rural de Brumadinho, lugar mais atingido pelo rompimento das barragens na mina que leva seu nome. Deparamos com a Igreja Nossa Senhora das Dores, uma capela azul singela transformada em QG pelo Corpo de Bombeiros. Visualizamos o campinho de futebol, travestido de pista de pouso e decolagem.
Dali, narrei ao vivo, na Rádio Gaúcha, o desespero de famílias em busca de informações. De repente, um rapaz que havia me procurado minutos antes, pedindo ajuda para localizar o pai, me chamou.
— Moça, moça! Ele está vivo! Vivo! — repetia, emocionado, ao microfone.
Naquele momento, a neutralidade ficou de lado. Por alguns segundos, enquanto concluía minha participação no programa SuperSábado, sorri e comemorei a conquista alheia. Foi a única boa notícia que pude transmitir ao longo de toda a cobertura.
No dia seguinte, o despertador tocou às 6h. Era domingo. Conferi as mensagens no celular e descobri que a população da área atingida havia sido surpreendida pelo ressoar de uma sirene minutos antes. Havia o risco de rompimento de outra barragem, e a região estava sendo evacuada. Saltei da cama e avisei André. Em meia hora, estávamos outra vez na rua, com Daniel ao volante.
Na sequência, acompanhamos e reportamos o drama das pessoas que tiveram de deixar suas moradias para trás, às pressas, levando apenas documentos e a roupa do corpo. Mesmo no momento de desespero, foram gentis conosco.
— É bom que vocês mostrem para todo mundo o que está acontecendo aqui — disse um morador, olhando fundo nos meus olhos.
Para cumprir a missão, André e eu decidimos pisar no barro, literalmente. Foi assim que, na segunda-feira (28), serpenteamos colinas até o outro lado da massa de rejeitos, em um lugar chamado Parque da Cachoeira.
Ao chegar ao que restou da vila, avistamos um helicóptero parado sobre uma plantação. A pé, nos esgueiramos por uma cerca de arame farpado e, de longe, vimos 10 bombeiros saltarem da aeronave. Seguimos o grupo. Com cuidado, fomos até onde era possível ir com segurança. Mesmo na margem, André afundou uma das pernas na lama até a canela e teve de puxar a bota com as duas mãos para conseguir sair. Em alguns pontos, o resíduo parecia areia movediça.
Depois de perder o grupo de vista, voltamos ao ponto de partida, entramos em outra estrada de terra e paramos para pedir ajuda.
— O senhor sabe se os bombeiros estão por ali? — perguntei, apontando para uma viela poeirenta.
— Sim, é só seguir em frente — respondeu um homem.
Caminhamos cerca de 200 metros na encosta da montanha e reencontramos os militares. Estavam comendo frutas e bebendo água. Era a nossa chance. Pedimos licença, nos apresentamos e conversamos por cerca de meia hora, antes que eles afundassem as botinas no lodo outra vez. Dali, nasceu uma reportagem relatando as minúcias do arriscado trabalho de resgate executado por aqueles profissionais.
Com barro até as orelhas, eles tinham uma missão a cumprir.
Nós também. Os últimos dias em Minas se seguiram com textos, vídeos e fotos sobre dois temas: o temor de Brumadinho em relação ao futuro econômico do município, diante da dependência da mineração, e o impacto dos detritos no leito do Rio Paraopeba, afluente do São Francisco.
Atingido por toneladas de lama, o manancial se tornou mais uma vítima do desastre. Com o objetivo de mostrar o impacto ambiental da tragédia, André e eu percorremos parte do curso d'água, que em Brumadinho ficou mais densa e ganhou coloração avermelhada.
Mais uma vez guiados por Daniel, andamos por um emaranhado de rotas vicinais até chegar ao interior de Juatuba, a cerca de 45 quilômetros de distância, em busca de ribeirinhos. Encontramos um homem de bicicleta e perguntamos pelos pescadores. Ele nos levou até a casa da família, onde nos ofereceram cadeiras, e chamou o irmão, conhecido como Beré. Em minutos, de moto, Beré nos conduziu até a beira do rio, junto à Usina Termelétrica de Igarapé, e nos convidou a ver o reflexo dos rejeitos de perto, em sua canoa, guiada com a ajuda de uma taquara.
E ali estávamos nós, em um lugar que jamais imaginaríamos um dia conhecer, navegando com um desconhecido e ouvindo sua história, que ilustraria o site GaúchaZH na mesma noite e as páginas de Zero Hora no dia seguinte. Beré e seus amigos terão de encontrar uma alternativa à pesca até que as condições do rio voltem ao normal, se é que um dia isso será possível. Mas não se deixam abater.
— A gente vai ficar por aqui, encontrar outra coisa para fazer. Voltem sempre que precisarem. É só chegar. Meu irmão é caminhoneiro e anda muito pelas bandas lá do Sul. O vinho lá é bom, né? — brincou o pescador que não pode, por enquanto, lançar sua tarrafa atrás de surubins, dourados e tambaquis.