Com os uniformes cobertos de barro, eles estão por todos os lados no mar de lama e detritos que arrasou Brumadinho (MG). Sob o olhar aflito de familiares de desaparecidos na tragédia, três centenas de socorristas de diferentes regiões — que nesta segunda-feira (28) receberam o reforço de 136 especialistas em catástrofes vindos de Israel — dedicam seus dias a procurar vítimas. Vivas ou mortas.
O zunido dos helicópteros começou antes do sol raiar, nesta segunda, nos arredores da Mina Córrego do Feijão, onde três barragens ruíram na última sexta-feira. O objetivo dos voos é a inspeção visual em busca de sinais humanos e o transporte dos profissionais responsáveis pelos resgates por terra.
Pouco antes das 10h, uma das 16 aeronaves envolvidas na operação despejou 10 integrantes do 1º Batalhão do Corpo de Bombeiros Militares de Minas Gerais, sediado em Belo Horizonte, em uma zona de plantações, à margem do barral — que naquele ponto cobre uma área semelhante a 15 estádios de futebol. Assim que saltou do aparelho, o aspirante Sandro Júnior, 23 anos, chamou um morador para conversar.
— Existiam casas aqui? — questionou.
O homem relatou que no local havia um grande bambuzal e lavouras. Casas, só mais adiante.
— Lá atrás — apontou.
A pergunta é padrão. Segundo Júnior, responsável pelo grupo, é importante saber o que havia no local a ser esquadrinhado para avaliar as chances de localizar pessoas.
— Se tem casas, sabemos que a possibilidade de encontrar alguém é maior. Mas inspecionamos tudo, porque muita gente foi arrastada pela lama — explicou Júnior.
Com cordas, capacetes, óculos de proteção, luvas, roupas de neoprene, botinas impermeáveis, faca, lanternas e pá o grupo caminhou cerca de 200 metros pela beirada do lodo. No caminho, o cabo Lauro Garcia, 30 anos, cortou galhos de árvores que serviriam de cajado. Um voluntário apareceu e entregou mais paus, fundamentais no trabalho a ser executado.
— Os paus servem para nos dar maior segurança na hora de andar na lama. A gente vai espetando no chão e, assim, consegue saber se dá para pisar sem correr o risco de afundar. Em alguns pontos, a lama ainda está muito mole — disse Garcia.
Antes de enfiar os pés no barro, a equipe teve de passar por baixo de uma cerca de arame farpado. Marimbondos atacaram a soldado Emília Couto, 26 anos. Foram seis picadas:
— Doeu pra caramba, mas não dá para parar.
A soldado Emília é a única mulher no grupo. Está há cinco anos na corporação e já fez curso de salvamento em soterramento, enchentes e inundações.
— Viemos para ficar três dias, depois vem outra equipe nos substituir. Estou satisfeita por estar aqui. Nunca havia participado de uma operação como essa — ressaltou.
— Por mim, ficava aqui até o fim. É para isso que a gente treina tanto — complementou Garcia.
Preparados para encarar os rejeitos da mina, os 10 seguiram pelo lamaçal, junto à vegetação que sobrou em pé, formada por mata fechada, arbustos e bambus. A ação se desenrola aos poucos, medindo cada passo, em um trabalho que exige paciência, cuidado e força —física e psicológica.
Quando é necessário avançar sobre locais instáveis, uma das alternativas é deitar no chão e se arrastar. Aí, os paus viram bastões — empunhados com as duas mãos, eles ajudam na locomoção, penosa e cansativa. Outra forma de seguir é espalhar painéis de madeira leve sobre o solo, mas isso nem sempre é possível, porque depende de material.
No trajeto, o grupo encontrou uma casa em ruínas, que teve a estrutura avariada pelo barral. Restaram fissuras de cinco centímetros de espessura nas paredes brancas recém-pintadas. A morada havia sido construída há um ano por Pedro de Jesus Rocha, 50 anos, e a mulher, Isamara de Araújo, 49. Eles saíram de Belo Horizonte em busca de paz e decidiram arrendar terras na região, conhecida como Parque da Cachoeira. Perderam quase tudo: essa habitação, oito cabras, 50 galinhas caipiras, 20 da Angola, um hectare de cana e uma porca com oito filhotes. Um leitão se salvou (ninguém sabe como) e ganhou o nome de “Guerreiro”.
Quando os bombeiros chegaram lá e viram o casal e alguns conhecidos dentro da casa, orientaram todos a sair, porque a edificação poderia cair a qualquer momento.
— Fazer o quê? Só espero que a Vale pague por todo esse prejuízo — desabafou Isamara.
O trabalho dos bombeiros prosseguiu por mais duas horas. De repente, um cheiro forte chamou a atenção dos mineiros. Não tardou até que localizassem a perna de uma vítima, que mais tarde seria encaminhada para o Instituto Médico Legal, para exame de DNA. Tem sido comum, nas vistorias, a localização de membros avulsos, dada a força da enxurrada marrom que engoliu a região. Muitos voluntários, que se dedicam a observar a área para auxiliar os bombeiros, também têm localizado partes de pessoas.
— Geralmente estão presas à vegetação. Meu trabalho é observar e avisar o pessoal. É como um garimpo, só que, infelizmente, de corpos — relatou o comerciante Fabio Noronha, 34 anos.
Depois de encontrar a perna e animais mortos (uma capivara e um cachorro), os bombeiros caminharam até um galpão, antes usado por agricultores. O local se transformou em base de apoio. Ali, voluntários levaram mantimentos (bananas e maçãs) e água fresca para os socorristas, tudo resultado de doações.
O grupo então se espalhou pelo chão, exausto e com lama até as orelhas. Alguns tinham o corpo inteiro sujo, inclusive o rosto. Perguntado se tinha receio de entrar em contato com o rejeito, que pode conter elementos químicos cancerígenos, Garcia respondeu, enquanto devorava uma maçã:
— Não sabemos o que tem aqui. Deve ser arriscado, sim. Mas recebemos treinamento para isso.
Antes de partir para uma nova empreitada, dessa vez em direção a um caminhão atolado na lama, o cabo José Carlos Heringer, 38 anos, um dos veteranos da equipe, resumiu o sentido da missão em Brumadinho.
— Não é um serviço fácil. É perigoso e desafiador. Mas estamos aqui para ajudar — concluiu.