Os dias se amontoam no confinamento. Uma terça-feira pode ter cara de sábado, um feriado pode passar despercebido. Os papéis também se misturam: na mesma hora, alguém precisa atuar como pai e empregado, como mãe e empresária. Para quem está em teletrabalho a fim de evitar os riscos de contágio pelo coronavírus, é como se vivêssemos a sina do protagonista do filme Feitiço do Tempo (1993), aquela deliciosa comédia em que Bill Murray interpreta um meteorologista condenado a reviver, sabe-se lá até quando, o mesmo dia.
Só que não.
Na quarentena, como as pessoas chamam o período de distanciamento social, cada dia pode até ser igual ao outro na forma, digamos, física. Mas costuma ser totalmente diferente em relação ao estado de espírito.
— Esse convívio 24 horas forçado nos tira do prumo. A gente precisa se reinventar a cada dia — comenta Jeanine de Paula Pedroso, 48 anos, que administra com o marido, Adriano, 52, uma microempresa de venda de cortinas e persianas e é mãe de Maithê, 13, e Anthônia, seis. — Tem dias em que tu acorda animada para fazer ginástica online, em outros, não quer nem sair da cama.
É uma mudança e tanto no ritmo de Jeanine, que costumava acordar à 6h. O despertar passou para as 9h – “Isso é como meio-dia para mim!”, ri a microempresária, que deu cara de férias à primeira semana de confinamento.
— Na segunda, vi aquele monte de mãe fazendo post como se fosse comercial de margarina, gente produtiva... Daí falei: “Gurias, vamos estudar!”. Quem disse? Durou 20 minutos. Não sou professora, não fui preparada para ensinar alguém a ler e escrever. Me senti mal, mas daí vi que várias mães estão na mesma. Todos estamos vendo que professor merece valorização. Tem de ter um altar para eles. Coisa de Yoda!
Como já trabalhava em casa, a rotina profissional de Jeanine não chegou a ser muito alterada – mas adaptações foram inevitáveis. Antes, ela cumpria sua agenda pela manhã, quando estava sozinha. Agora, esse turno é ocupado pelo marido, enquanto a esposa cuida de afazeres domésticos e das filhas.
— Mas ele pega junto — afirma Jeanine. — Meu marido faz até mais do que eu, graças a Deus! Faz almoço, limpamos a casa juntos. Se não, a gente estaria vivendo na sujeira, porque eu sou muito desligada — ri.
Desligada, mas não desatenta. Jeanine cumpre à risca as medidas protetivas. Ainda mais que já houve registros de coronavírus no bairro onde mora, em São Leopoldo. O supermercado onde a família fazia as compras chegou a ser interditado pela prefeitura porque dois empregados testaram positivo.
— Quando saio de casa, é para ir comprar frutas e verduras no mercadinho. É necessário ter esses momentos, sozinha, mas ao mesmo tempo assusta, porque a gente fica encolhida, de máscara e com álcool gel, cuidando para não tocar nada — relata.
No trabalho, em que é responsável pelo marketing da empresa, Jeanine diz que tem se sentido “mais empenhada”. Pelo menos uma vez por semana, posta no Instagram. Os anúncios estão antenados ao tempo em que vivemos:
— Procuro deixar o cliente tranquilo, informando como vou instalar com segurança na casa dele.
As rotinas profissionais e escolares terminam por volta das 18h. É quando todo mundo se olha e “deu”. Aí, vem o banho, a janta, a maratona de uma série – no quarto do casal.
— Montamos um acampamento no quarto. Elas escolheram, nesse momento, ficar mais perto da gente.
Aline aceitou a bagunça da casa
Mais do que o quarto, a cama compartilhada virou uma realidade inesperada na casa de Aline Silveira, 35 anos. Desde que estão confinados, ela e o marido, Gustavo, 42, dormem na companhia do filho, Gael, de um ano e nove meses.
— Não era algo que eu queria. Mas a vida não está nem aí para nossos planos — diz Aline, que, no trabalho, está lidando com uma porção de gente que viu seus planos mudarem.
É que ela é gerente de marketing para a América Latina de uma empresa internacional de turismo. Envolve-se com demandas por reembolso de clientes de viagem, faz atualização diária de dados, monitora as queixas no site Reclame Aqui, precisa se reportar para a matriz, na Polônia, e participar de conferências online, não raro em inglês.
O marido, jogador e treinador de pôquer online, já estava bem habituado ao home office. Aline tinha experiência e se considerava ágil e produtiva. Agora, passou a lidar com problemas técnicos (quem está do outro lado da conferência não tem a conexão tão eficiente, ou está com a câmera desligada, o que atrapalha a comunicação) e com problemas caseiros: Gael, que sempre dormiu bem, das 20h às 7h, graças ao dia a dia na escolinha, vem acordando pelo menos duas vezes por noite.
— Sou uma pessoa muito regrada. Antes da pandemia, tudo fluía bem. O Gael ia para a escola, eu tinha a divisão clara entre trabalho, família e lazer. Agora, tudo se misturou. Sou mãe, sou gestora, sou dona de casa, sou esposa, tudo ao mesmo tempo — desabafa.
No início do confinamento, o casal quis manter a rotina de Gael, por exemplo, com horários para acordar e para brincar. Tentar continuar no modus operandi da normalidade revelou-se “enlouquecedor”.
— No começo da terceira semana, percebi que precisava me jogar na correnteza. Aceitei que as coisas mudaram, que a casa vai ficar bagunçada e está tudo bem. Foi um ensinamento.
Ana Paula se cobra demais
Não ter filhos – nem ter com quem dividir a casa – faz diferença para Ana Paula Papa, 40 anos, que atua no departamento de recursos humanos de uma instituição da Capital. Ela reconhece o privilégio do silêncio com o qual está acostumada, por já morar sozinha há muito tempo.
A transposição do escritório para o seu apartamento foi tranquila do ponto de vista prático. Mas, emocionalmente, adaptar-se não foi uma barbada.
— Eu tinha um ritmo e uma rotina fora de casa. Ficava das 8h às 14h no trabalho, depois ia para a (Escola de Administração da) UFRGS, para produzir minha dissertação. Saía de lá às 20h e continuava mais um pouco em casa. Afinal, para pós-graduando não existe madrugada! — brinca Ana Paula, antes de assumir um tom mais sério: – Moro em um apartamento pequeno, não consigo fazer uma distinção física entre os ambientes, e isso atrapalha a cabeça. Tu não consegue te colocar no local.
Daí que as seis horas de trabalho “se transformaram no dia inteiro”:
— Não estava acostumada a estabelecer um horário específico para sair do quarto, tomar café. Além disso, minha carga aumentou. Montamos um grupo que oferece apoio psicológico para os colegas, estou cuidando da captação de voluntários, termos de consentimento, saber quais são os colegas que precisamos atender. Os relatórios a fazer, que eram trimestrais, hoje são semanais.
À demanda, Ana Paula acrescentou a autocobrança.
— Exemplo prático: hoje, acordei super tarde. Eram quase 9h e recém estava tomando café. Tenho tomado muito café, daí não durmo e, no dia seguinte, acabo acordando tarde.
Pressão, bloqueio e até desespero são palavras que surgem na conversa.
— Tu está fazendo um trabalho, entre aspas, mecânico. São planilhas. Mas tu está parada na frente do computador e não consegue processar aquilo.
Às vezes não dá, gera ansiedade e culpa. Tu olha para a cama, fica louca por uma Netflix, e não pode.
Quando pode, tipo no horário de almoço ou à noite, Ana Paula assiste a uma série. São coisas para “esvaziar a cabeça”: maratonou Lúcifer e The Last Kingdom, terminou a mais recente temporada de La Casa de Papel e já está na última de Vikings.
— Mas quando realmente quero desestressar, aí é Jornada nas Estrelas: A Nova Geração. (O comandante) Picard me ajuda, me leva para locais onde consigo realmente esvaziar minha cabeça, mesmo já tendo assistido umas duas vezes todas as temporadas.
Andrielle sofre para se concentrar
Moradora de Viamão, a estudante de Jornalismo Andrielle Prates da Silva Machado, 24 anos, montou um planejamento no começo do período de isolamento. Pretendia ocupar com livros e séries o enorme tempo que gastava nos deslocamentos para a faculdade, em Porto Alegre, e para o estágio, na Câmara dos Vereadores de seu município. A casa era só para dormir, ela diz.
— Pensei: não vou deixar isso acabar comigo. Mas a única coisa que consigo fazer de fato é trabalhar, que é minha obrigação. Ficar em casa está me estressando, mesmo rodeada pelas pessoas que amo (a avó, a mãe e duas irmãs) — confessa.
Por falta de concentração, Andrielle não conseguiu concluir dois cursos em que se inscreveu – um de inglês e um de desenho. Tentou ler três livros e não terminou nenhum: A Vida que Ninguém Vê, da jornalista Eliane Brum, No seu Pescoço, da escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie, e um terceiro do qual nem recorda o título. Também procurou assistir às séries Cara Gente Branca, Vis a Vis e Jane, a Virgem – mas nada prendeu sua atenção.
— Sou uma pessoa estressada normalmente, mas a situação atual está pesando muito. Tanto pelo distanciamento da rua quanto pelas notícias mesmo, que acabam me maltratando. As questões sociais mexem muito comigo. Tenho evitado a TV, prefiro ler, para não ficar por fora. E uma coisa que tem me ajudado bastante é ouvir música. Antes de dormir, coloco uma música que me acalma.
Andrei se encontra consigo mesmo
Em Taquara, o estudante de Publicidade Andrei Krummenauer Silvestrin, 23 anos, curtia os últimos dias de férias antecipadas do estágio na Agexcom, o laboratório de comunicação da Unisinos – agora em maio, deve retornar às atividades em regime de teletrabalho. Sua agenda não ficou vazia. Além das aulas a distância, no turno da noite, procurou ocupar a faixa do estágio, das 14h às 18h, com projetos freelancers. Também sobrou tempo para tocar um teclado que estava abandonado em casa, fazer pintura e até brincar de salão de beleza com a cachorrinha da família, a Fitinha.
— Também fiz com um amigo um projeto de desenharmos um tema a cada dia – conta Andrei. — Recriar o pôster de um filme, abstrações, letra de música, o pessoal da faculdade.
O pessoal da faculdade é o que está fazendo bastante falta ao estudante:
— Acho que minha geração se preocupa mais com saúde mental. Daí, bate a necessidade de encontrar mais os amigos, apreciamos mais o contato. Sinto muito esse isolamento. A saudade é forte. E fico pensando em alguns amigos que moram sozinhos em apartamentos.
Andrei estava com a vida afetiva “parada” antes da pandemia e diz que tem recusado qualquer hipótese de furar a quarentena em nome de um encontro. O encontro dele tem sido consigo mesmo:
— Nessa falta de convívio, a gente pode analisar do que sente falta, de quem sente falta, por que sente falta. Carências gritam, e acabamos descobrindo coisas sobre nossas relações com as pessoas.
Albo já estava habituado à solidão
O músico e produtor musical Luciano Albo, 52 anos, considera-se uma das pessoas menos afetadas pelo distanciamento social.
— Eu já era meio solitário, apesar de ter tido minhas relações, e já vinha fazendo trabalhos no estúdio que montei em casa — explica. — O outro espaço, na Zona Norte, com o Gustavo “Prego” Telles e o Maurício Nader, parou. Mas tenho faixas e discos nos quais trabalhar, clientes já haviam pago boa parte do serviço. Acabei de mixar seis canções do Chico Saratt, por exemplo. Mas não tenho 500 mil clientes, então, como quem atua com arte está sempre plantando, vou procurando colocar uma sementinha em algum lugar para mais trabalhos remotos.
Albo intercala sua atividade profissional com leituras para o mestrado – “Que mal começou, parou”, por causa da pandemia –, filmes, seriados e exercícios físicos via tutoriais. Também vem tentando retomar a disciplina da meditação diária, “nem que seja de 10, 15 minutos”. A reflexão é uma aliada da tecnologia para o bem-estar:
— Com toda essa comunicação que há com todo mundo, não consigo me sentir sozinho. Alguns laços ficaram até mais fortes. Tenho dois irmãos por parte de pai com os quais, agora, falo diariamente por WhatsApp.
Nelson valoriza o ócio criativo
Quando as restrições sociais começaram, o publicitário Nelson São Bento, 52 anos, já estava bem preparado. Home office é uma realidade para ele desde 2013.
— Optei por abdicar de uma carreira corporativa e usar meu networking. Para abraçar projetos em uma grande empresa, você precisa ser muito dedicado a ela. Uma das questões que me levaram a sair é que sou filho único, e minha mãe, viúva — explica Nelson.
É com a mãe, Adejanira, 88 anos, que ele mora. Separado, tem um filho, Rafael, que completou 22 anos em 4 de maio (“Como um bom nerd”, brinca o publicitário, em alusão ao chamado Dia Star Wars).
— Perdi financeiramente quando decidi (pelo teletrabalho), mas, no momento em que minha mãe precisou, eu estava disponível: no final de 2019, ela teve uma crise de saúde. Desde então, estou mais responsável por ela, que sempre foi muito independente.
Com sete anos de experiência, Nelson se arrisca a dar alguns conselhos para os marinheiros de primeira viagem. A autodisciplina é o básico: por exemplo, procurar manter, nos dias úteis, os horários com os quais estava acostumado. Mas é importante também disciplinar as pessoas ao seu redor:
— Família, vizinho e até o cachorro começam a te perceber ali e acham que tu está disponível o tempo todo. Não dá. Precisamos ter tempo para desenvolver as ideias, atender os clientes, botar a mão na massa. O negócio é abrir o diálogo e, sem ser agressivo, avisar: pessoal, não posso agora, vou fechar a porta.
Essa porta tem dois lados: Nelson sabe identificar a hora de parar e de separar o trabalho dos outros afazeres – e até dos lazeres.
— A palavrinha mágica é prioridade — diz. — De acordo com os prazos que os clientes dão, posso me programar para sair no meio do expediente e ir no súper ou comprar remédios para a mãe. Já tirei até sesta! É uma das vantagens do home office.
O descanso, aliás, é sagrado. O ócio, assegura Nelson, renova sua capacidade de criação e de produção. Quando ele enxerga que terá de usar o final de semana para concluir um projeto, reserva o sábado para si próprio. Faz algum serviço doméstico, joga videogame, tenta se desligar totalmente.
— A cabeça é como um computador: ao longo do dia, vai ficando lotada de coisas. Preciso deixá-la zerada. Já percebi que os textos que escrevo nas primeiras horas da manhã têm mais qualidade do que os da tarde ou da noite.
Duas coisas que ajudam Nelson a relaxar estão fazendo falta. Uma delas é o cinema, o ritual de cada sessão, a tela grande. A outra, mais importante, são os encontros quinzenais para disputa de jogos de tabuleiro – cenário para a formação e a preservação de amizades.
— O coronavírus mudou o jeito de se relacionar. Tenho um grupo de WhatsApp com amigos do tempo de colégio, coisa de 30, 40 anos de convivência. Tem médico, funcionário público, advogado, gente da educação física. A tônica era fazer troça um com o outro, mas, de uns tempos para cá, incluímos uma live na rotina. Foi a forma de olhar na cara do outro, para dar risada ou falar de assunto sério.