Uma das queixas que as pessoas têm feito durante a pandemia de coronavírus é a de que não conseguem se concentrar – seja no trabalho ou até em uma atividade de lazer. O distanciamento social parece ter afetado a produtividade. Mas será que precisamos sertão produtivos, e o tempo todo, ainda mais agora? É o que pergunta o psicanalista e jornalista Paulo Gleich na entrevista a seguir, concedida por e-mail.
Como dividir o tempo entre trabalho, família/casa e lazer, uma vez que a pessoa está praticamente 24 horas no mesmo ambiente e com as mesmas pessoas?
No meu caso, que estou sozinho no confinamento, esse não tem sido problema. Tenho minha agenda, faço meu trabalho e o restante do tempo dedico ao lazer, ao contato com familiares e amigos e às tarefas domésticas. No caso de quem convive com outros, me parece que é preciso fazer o que qualquer convivência demanda: conversar, negociar, tolerar, buscar consensos. Também conversar consigo, no sentido de reconhecer as próprias demandas – de tempo livre, de tempo sozinho. A receita para o convívio é a mesma – e não há receita certa, é algo sempre em construção –, mas talvez seja preciso mais trabalho nesse sentido por esse convívio ser muito mais intenso do que naqueles tempos que chamávamos de “normalidade”.
Muitas pessoas estão tendo dificuldades de se concentrar durante o confinamento, seja no trabalho, seja em um passatempo, seja na própria família. Quando que isso se torna um problema? Ou é inevitável, dadas as circunstâncias?
Embora o confinamento afete a todos coletivamente – inclusive aqueles que se recusam a segui-lo –, a forma como afeta cada um é muito singular. Há quem tenha sentido pouco impacto em sua rotina e esteja conseguindo trabalhar e se concentrar de forma semelhante a como fazia antes. E há também muitos que têm apresentado essa dificuldade, em maior ou menor grau. Que esse impacto configure ou não um problema é também muito singular: algumas pessoas podem sofrer muito com uma pequena mudança em sua capacidade de concentração, outras podem estar tendo uma dificuldade maior, mas lidando bem com isso por reconhecer o caráter do momento que atravessam. Que isso configure um problema, então, é algo muito singular: mais do que uma menor ou maior diminuição da capacidade de concentração, é se isso causa sofrimento na pessoa e/ou em suas relações.
Há meios de a pessoa aprimorar sua concentração? De ser mais produtivo com seu tempo?
Essa questão traduz um problema que é anterior à pandemia, e que nesse momento, em circunstâncias excepcionais – mas que aos poucos vão se normalizando –, muitas vezes emerge com maior força. É uma queixa recorrente no consultório a sensação das pessoas de não serem produtivas o suficiente, de terem de ser mais produtivas, de sentirem cada momento de ócio – não o tal do ócio criativo, que acaba ficando sob a égide da produtividade, mas ócio inútil mesmo, apenas pelo prazer de não fazer nada ou algo que se goste – como um tempo jogado fora, sobre o qual recai uma grande culpa. Isso é efeito da lógica em que vivemos, a do time is money, mas também do money is everything. Isso contribui para o incremento de sintomatologias tão contemporâneas como as depressões e ansiedades, pois há essa ideia de que é preciso aproveitar o tempo ao máximo, torná-lo o mais produtivo possível. No cenário atual, onde precisam se reconfigurar hábitos, onde é preciso lidar com novas preocupações e questões, a obrigação de “ser mais produtivo” segue firme, como se fosse preciso superar logo os efeitos subjetivos e coletivos da pandemia – como se fosse apenas um “resfriadinho” – para voltar à eficácia máxima. Talvez o que precise ser questionado é: por que precisamos ser tão produtivos, e o tempo todo? É a cobrança que orienta nosso tempo, e não é diferente em tempos de pandemia. Ela é personificada nos empresários que saíram no início da pandemia exigindo a reabertura do comércio, mas essa lógica está presente, em alguma medida, em todos nós: quando vai passar essa epidemia para eu voltar a ser tão eficiente quanto deveria? E por que, no final das contas, nunca acabo sendo o suficiente? Nesse sentido, todo mundo tem um careca da Havan dentro de si.
Algumas pessoas lidam melhor com o distanciamento social do que outras. Entre elas, pessoas que, antes da pandemia, poderiam ser alvo de críticas ou deboche ou pena por serem mais solitárias, reclusas, antissociais etc. O que podemos aprender com eles e elas?
Não sei se se pode aprender com eles e elas a lidar melhor com o isolamento, já que isso é uma experiência singular que cada um tem que atravessar. Quem aprendeu a conviver melhor consigo mesmo – o que não exclui necessariamente o convívio com outros – terá menos dificuldades do que aqueles que suportam mal a solidão. O aprendizado possível é sobre a relatividade das coisas: algo que antes talvez era socialmente menos valorizado, como pessoas mais introspectivas e reclusas, passam a ser alguém que teria um valor nesse novo cenário. Ou seja, os valores não são tão absolutos como se julga, eles têm uma íntima relação com o contexto. Como ensina a velha máxima: em terra de cego, quem tem um olho é rei.