- Pela primeira vez na história, Time Brasil terá mais mulheres do que homens;
- Apesar da superioridade no número de atletas, a presença feminina em cargos diretivos ainda é baixa;
- História da mulher gaúcha nos Jogos Olímpicos começou apenas em 1980.
No começo não tinham espaço. Depois, surgiu uma pioneira. Na sequência vieram outras, mas ainda poucas. Então, se multiplicaram. Hoje, são a maioria na delegação, ao menos no número de atletas que representará o Brasil nos Jogos de Paris. Mais do que quantidade, qualidade.
Os nomes mais reluzentes dos 276 atletas brasileiros que estarão em Paris são mulheres como Rebeca Andrade, Bia Ferreira, Martine Grael, Kahena Kunze, Mayra Aguiar… Foi um caminho longo, mais do que centenário, e tortuoso para as brasileiras. Uma escalada lenta que não renderia um lugar no pódio fosse uma prova olímpica.
A história olímpica do país começou em 1920, na Antuérpia. Uma delegação de 19 homens desbravou a Bélgica e os Jogos. Quatro anos depois, mais 12 homens estiveram em Paris. Após a ausência brasileira em 1928, finalmente em 1932, em Los Angeles, a nadadora Maria Lenk ultrapassou o mar revolto do machismo para se tornar a primeira atleta olímpica do Brasil. Se passaram 92 anos e 20 edições para que elas tivessem superioridade numérica na equipe brasileira, mesmo que o Censo aponte que são maioria na população desde 1940.
"O número não diz tanto quanto gostaríamos. Os cargos de gestão e de direção continuam nas mãos dos homens"
KATIA RÚBIO
Professora da USP e coordenadora do grupo de Estudos Olímpicos da universidade.
Em Paris, as mulheres, com 153 representantes, compõem 55% do Time Brasil. O índice supera os 47% de Tóquio. Motivos para comemorar? Até que sim, mas nem tanto. Mulheres ouvidas por Zero Hora e envolvidas no Movimento Olímpico são unânimes em sublinhar que os números não representam o todo. Por todo, entende-se comissão técnica e dirigentes.
— O número não diz tanto quanto gostaríamos. A participação entre atletas não significa uma divisão de poder. Os cargos de gestão e de direção continuam nas mãos dos homens. Vejo um uso de imagem desse número que foi uma conquista, não uma concessão, para camuflar a desigualdade que continua na gestão — avalia Katia Rúbio, professora de educação da USP e coordenadora do grupo de Estudos Olímpicos da universidade.
Katia e seus alunos se debruçam sobre a temática há décadas. Criaram uma métrica que apontou que a superioridade feminina brasileira, em quantidade, seria atingida nos Jogos de 2020. A participação masculina estava estabilizada e a das mulheres crescia aos poucos (ver gráfico abaixo). A covid atrasou a virada em um ciclo olímpico.
O crescimento tem um ponto de virada marcante. A participação das brasileiras se acentua quando as equipes femininas dos esportes coletivos ganham destaque, a começar com o vôlei em 1980.
— É uma estrada, é uma estrada longa. É uma estrada que ainda precisa crescer muito, mas que já é importante, sim. É lógico que quem começou é muito importante. Tudo tem que ter um início, mas é isso, um início. Ainda há muito para ser conquistado. Assim, fico feliz, fico muito feliz com a participação, com o número maior de participantes femininas nessa Olimpíada — destaca Jacqueline Silva, levantadora daquele time e que mais adiante voltará a ter protagonismo.
Recai sobre os esportes coletivos a razão maior para a quantidade de mulheres na delegação do Brasil. No feminino, o país terá equipes no vôlei, rugby 7, futebol e handebol. Os homens buscarão medalhas apenas no vôlei e no basquete. Se modalidades tradicionais como futebol e handebol, a contagem teria maioria masculina.
— Se as mulheres tivessem ido lá atrás (nos esportes coletivos)… Os homens não irem, não significa que as mulheres teriam a mesma igualdade. A participação feminina foi tardia. No momento em que as mulheres começam a participar, a curva da participação dos homens estava estabilizada — pondera Katia.
Condições sócio-históricas que transbordam o limite do esporte emperraram a participação feminina de maneira geral nas Olimpíadas. As mesmas que, agora, empurram a presença delas em outra direção. Paris 2024 era para ser a edição da igualdade total entre atletas homens e mulheres.
Mas, de acordo com levantamento realizado pelo site ge.globo, não será atingida. Situações específicas de algumas modalidades farão com que os homens ainda sejam maioria — os números finais serão divulgados pelo Comitê Olímpico Internacional (COI) na sexta-feira (26).
— O movimento olímpico é suscetível a questões sociais maiores. Mesmo que não seja do prazer deles fazer isso, é uma necessidade da pressão da sociedade — enfatiza Katia.
"(A inclusão) poderia ter sido mais ágil, mas não foi devido à mentalidade extremamente obsoleta e ultrapassada do COI"
ANA MIRAGAYA
Professora da Universidade Estácio de Sá e estudiosa da temática feminina no esporte
A presença feminina nos Jogos teve início em Paris 1900. Na segunda edição do evento, elas competiram no tênis, cróquete (modalidade mista) e golfe.
— (A inclusão) poderia ter sido mais ágil, mas não foi devido à mentalidade extremamente obsoleta e ultrapassada do COI, envolta em preconceito e discriminação contra a mulher-atleta. As mulheres estavam conquistando seus direitos e praticando os mais variados esportes mundo afora. As sociedades estavam vivenciando mudanças com relação ao novo papel e o novo posicionamento social da mulher. No entanto, os dirigentes esportivos pareciam não aceitar os fatos — posiciona-se a professora Ana Miragaya, da Universidade Estácio de Sá e há anos estudiosa da temática feminina no esporte.
Jackie Silva e a primeira medalha
Se todas as mulheres atletas sentiram, em algum nível, a opressão do machismo, poucas reivindicaram e sofreram tanto quanto Jacqueline Silva. Jackie era uma estrela do vôlei brasileiro. Além dos Jogos Olímpicos de 1980, também esteve presente na edição de 1984. No ano seguinte, foi excluída da seleção brasileira. Na prática, foi expulsa do vôlei nacional.
Ela foi vista como uma rebelde por ter se negado a vestir um uniforme que estampava a marca de um patrocinador sem receber nada. O time masculino era pago para realizar a mesma atividade. Aos 23 anos, a atitude a tornou uma persona non grata no vôlei brasileiro.
— Eu tive que sair do Brasil porque não conseguia trabalhar aqui dentro. Aí encontrei um esporte em que os atletas eram os que o criaram e o desenvolviam — relembra, ao falar da sua ida para os Estados Unidos.
Calhou que esse esporte, o vôlei de praia, se tornou modalidade olímpica em 1996. Ao lado de Sandra Pires, Jackie se tornou a primeira medalhista brasileira, em uma final que teve Adriana e Mônica no outro lado da rede.
— Ali eu já era totalmente diferente. Quem dava as cartas eram os atletas. Eu e Sandra escolhíamos tudo, decidimos como fazer aquela preparação olímpica, o ciclo olímpico, quem a gente contratava. Não tínhamos praticamente nenhuma relação com o COB, que praticamente só deu a passagem para ir para as Olimpíadas. Já tinha uma independência muito grande — conta.
"Não tínhamos praticamente nenhuma relação com o COB, que praticamente só deu a passagem para ir para as Olimpíadas"
JACKIE SILVA
Primeira atleta brasileira a conquistar medalha nos Jogos Olímpicos
Aquela edição foi um marco para as atletas mulheres brasileiras. Além da final verde-amarela no vôlei de praia, os times femininos de basquete e de vôlei de quadra foram medalhas de prata e bronze, respectivamente.
A mulher gaúcha nos Jogos
O Rio Grande do Sul se imiscuiu em capítulos adiantados desta história. Somente em 1980, 48 anos das primeiras braçadas de Maria Lenk em Los Angeles, o Estado teve uma representante mulher nos Jogos. O desbravamento foi feito por Arci Kempner, no tiro com arco.
Ela tinha 46 anos quando conseguiu a classificação — também foi a primeira atleta feminina do Brasil a disputar a modalidade em Olimpíadas. Medalha feminina com as cores do RS somente em 2000, quando a goleira Maravilha participou da prata do futebol feminino.
Em Paris, a delegação gaúcha, com atletas nascidos no Estado ou vinculados a clubes gaúchos, terá participação feminina um pouco abaixo da média nacional. Dos 19 atletas classificados, nove são mulheres, o equivalente a 47% da delegação.