A três semanas da abertura da Olimpíada, Zero Hora segue com a série especial que retrata grandes atletas do Brasil e do Exterior. Depois da ginasta Rebeca Andrade, a nadadora Katie Ledecky e a skatista Rayssa Leal, conheça nesta sexta (5) a trajetória da ginasta Simone Biles.
…Ready For It? (Pronto(a) para isso?) é a introdução da colagem de músicas que Simone Biles utilizou na sua apresentação no solo na seletiva americana para os Jogos Olímpicos, em maio. A chance da montagem tocar nos alto falantes da Arena Bercy é tão volumosa quanto a possibilidade de a ginasta americana subir ao pódio. A escolha da trilha sonora da apresentação contém uma série de mensagens subliminares, a começar pela reticências.
Biles chega a Paris tão simbólica quanto o Arco do Triunfo. Tão visível quanto a Sacre Coeur no topo do Montmartre . De um jeito ou de outro, sua participação será tão histórica quanto as 35 mil obras expostas no Louvre. Ela será tão a cara dos Jogos quanto a Torre Eiffel. Carregará nos ombros tanto peso quanto as 10 mil toneladas do maior ícone parisiense. Uma reprise do vivenciado em Tóquio, há três anos.
Na Ásia, aquele corpo de joqueta envolto por uma armadura de músculos falseou. Os twisties incorporados no vocabulário brasileiro nos tempos de Daiane dos Santos também têm outra conotação. Utiliza-se a expressão para explicar a sensação da perda de referência no ar. O corpo e o cérebro deixam de ser um só. Durante a apresentação por equipes, foi o que Biles sentiu, um twistie mental. Foi retirada da competição em grupo. Das cinco finais individuais que estava classificada, disputou somente na trave, a última do programa olímpico.
O esporte é um campo em que desistir é visto como um sinal de fraqueza, tão incogitável quanto ser o último colocado. Biles desistiu. Simples e complexo ao mesmo tempo, como o antagonismo vivido em uma modalidade que alia ações que misturam flexibilidade e força, movimentos que exigem a robustez de grandes grupos musculares e também a delicadeza da motricidade final.
O que poderia ser visto como fragilidade, no fundo, era força. Ao abdicar de competir no maior dos palcos, a americana mostrou toda sua relevância. O que poderia ser uma decepção para os fãs, surgiu como um momento de reflexão para o mundo.
O ato mostrou que desistir, pelas razões certas, é, sim, uma opção. A razão dela era o cuidado com a saúde mental. Desnudou a exacerbada pressão sofrida pelos atletas de elite, aquela que todos sabem, mas optam por varrer para baixo do tapete e continuam intimidando os astros do esporte. Biles saiu de Tóquio maior do que chegou.
Uma olhada no retrovisor da vida da americana criada no Texas explicita o peso que a sua bagagem recebeu ao longo dos anos. Olhar a retrospectiva dos 27 anos de vida de Biles reforça que ela é tudo, menos uma desistente.
Filha biológica de uma mãe usuária de drogas, a maior estrela da ginástica mundial foi criada pelos avós. Sem dinheiro, o café da manhã dela consistia de uma tigela de cereal com água. Não havia dólares suficientes para o leite.
Assédio sexual
A inspiração para a decisão de Biles foi a japonesa Naomi Osaka. Meses antes, a tenista abandonou a disputa de Roland Garros antes da segunda rodada por problemas psicológicos. Dois dos maiores nomes do esporte. Duas negras em esportes praticados majoritariamente por brancos. Não é pouco.
Biles saiu dos Jogos do Rio em 2016 com quatro medalhas de ouro e uma de bronze, em um período que eclodiu o caso de assédio sistemático do médico da federação de ginástica americana Larry Nassar. Demorou algum tempo para ela processar que, assim como suas colegas, era uma sobrevivente.
Em Tóquio, ainda que tenha competido pouco, conquistou a prata na disputa por equipes e o bronze na trave. Um mês depois, em uma comissão do senado americano que investigava negligência do FBI no caso Nasser, Biles foi explicita ao abrir seu depoimento.
— Ganhei 25 medalhas em mundiais, sete em Olimpíadas, e sou uma sobrevivente de abuso sexual — sentenciou com lágrimas nos olhos.
Depois de todo o furor em Tóquio, foram dois anos fora das competições. Em Paris, as expectativas são as mesmas do ciclo passado. Todos querem ver ela executar o Yurchenko, considerado o salto mais difícil da ginástica, em que a atleta salta de costas em direção ao trampolim, se apoia sobre ele com os braços estendidos e as pernas eretas. A fração de segundo que toca no aparelho tem de ser suficiente para sustentar dois mortais.
O frenesi em torno dos shows de Taylor Swift, autora de …Ready For it?, causa pequenos, mas literais, abalos sísmicos por onde passa. Em Paris, quem tem a chance de proporcionar um novo terremoto olímpico é Simone Biles. Pronto(a) para isso?