A poucos dias da abertura das Olimpíadas, Zero Hora segue com a série que retrata grandes atletas do Brasil e do Exterior. Depois da ginasta Rebeca Andrade, a nadadora Katie Ledecky, a skatista Rayssa Leal, a ginasta Simone Biles, o velocista Alison dos Santos e o saltador Armand Duplantis, confira a trajetória das velejadoras Martine Grael e Kahena Kunze.
Separadas por um mês, Martine Grael e Kahena Kunze parecem ser gêmeas, tamanha a afinidade que mostram dentro e fora da água. Ambas nasceram em 1991 e num dia 12. Martine em fevereiro, em Niterói, no Rio de Janeiro, e Kahena, em março, em São Paulo.
Filhas de velejadores, desenvolveram talento desde o berço. O pai de Martine é Torben Grael, dono de cinco medalhas olímpicas — o tio Lars tem outros dois pódios. Já Kahena veio ao mundo 18 anos após o título mundial júnior da classe pinguim conquistado pelo pai Cláudio Kunze.
O destino as uniu em 2004. Foi quando se conheceram e se tornaram rivais na água, mesmo com Martine ganhando os duelos pelo Brasileiro de Optimist daquele ano. Em 2006, a amizade entre elas cresceu e, em 2009, resolveram unir forças para a disputa do Mundial júnior da classe 420.
O resultado foi o primeiro grande título da parceria que viria a entrar para a história do esporte brasileiro. E um outro nome aparece nesta história: Martha Rocha Lobo.
Mas apesar do repentino sucesso, elas ainda se separariam. Martine optou por fazer dupla com Isabel Swan e tentar classificação para os Jogos de Londres 2012, na classe 470. Mas elas não conseguiriam a vaga que ficou com as gaúchas Fernanda Oliveira e Ana Luiza Barbachan.
Com o sonho olímpico adiado por 4 anos, Martine resolveu procurar Kahena para formar equipe em um novo barco, o 49er FX. O convite veio através de um e-mail.
— Velejávamos em clubes diferentes, mas éramos unidas. Meio rivais, cada uma num barco, mas nos encontrávamos sempre nos campeonatos. Tínhamos 13 anos e a amizade foi crescendo. Em 2009, velejamos juntas num campeonato para menores de 18 anos. Foi a química certa e ganhamos. Depois, ela foi para outra classe com a Isabel (Swan). A amizade continuou, sempre nos encontrávamos. No fim de 2012, ela me chamou para treinarmos juntas. Além de amiga, a admiro muito — contou Kahena após o título olímpico que viria no Rio em 2016.
Se a vaga foi perdida para a dupla gaúcha, uma treinadora nascida no Rio Grande do Sul, do clube Veleiros do Sul, de Porto Alegre, voltou à cena. Martha Rocha Lobo foi quem as treinou para o Mundial da classe 420 em 2009. Desde então, a ligação entre elas se fortaleceu.
— Elas foram campeãs mundiais da classe 420 e eu era a treinadora. Ali, nós vimos que era uma parceria de sucesso e, desde lá, estamos ligadas de alguma forma, com bons resultados e muito aprendizado — afirmou Martha em entrevista para a Rádio Gaúcha em 2022.
E para chegar no pódio conquistado em casa, elas fizeram uma campanha olímpica brilhante. Em 2013, venceram os três primeiros campeonatos internacionais que participaram e se sagraram vice-campeãs mundiais.
Em 2014, foram campeãs do mundo, algo inédito na vela feminina do Brasil. Em 2015, vice mundial. Em etapas de Copa do Mundo, vitórias nos principais eventos e a certeza que era possível brigar pelo pódio no Rio de Janeiro.
O título em casa é algo que só quem esteve presente naquela tarde de 18 de agosto de 2016 pode dimensionar. Em uma disputa acirrada com as neo-zelandesas Alex Maloney e Molly Meech, elas levaram ao delírio o público que se encontrava nas areias da Praia do Flamengo e acompanhava a prova na Baía da Guanabara.
Uma prova carregada de emoção e de muita estratégia, onde até mesmo o vento que mudava a direção de uma bandeira do Brasil no Forte (da Urca) serviu de referência para a tomada de decisão que deu outro rumo para a prova. Só elas foram por um lado da raia e as concorrentes por outro. Em final emocionante, conquistaram o ouro e deram início a uma festa coletiva, ali mesmo, na praia.
— É difícil comparar, são pessoas diferentes. Em qualquer time o convívio conta muito, a gente passa meses fora, 24h por dia, sete dias por semana muito próximas uma da outra. O convívio é muito intenso. O segredo para dar tão certo a nossa parceria é que Kahena é muito fácil de lidar. Tem temperamento forte e isso conta na competição, tem muita garra, muita vontade de ganhar. Ela é muito parecida comigo, também não gosta de perder. Então, a gente fica chateadas e felizes juntas. A química é tudo numa dupla e desde 2009 senti essa química com ela. Kahena se propôs a começar com muita garra e isso fez diferença. A gente gosta das mesmas coisas. Em viagens a gente cozinha e é fácil: ela gosta das mesmas comidas que eu, das mesmas músicas — disse Martine após a conquista do ouro no Rio.
Após o inédito ouro olímpico vieram mais dois vices em mundiais (2017 e 2019) e uma medalha de ouro nos Jogos Pan-Americanos de Lima em 2019, quando pela primeira vez duas pessoas carregarem a bandeira de seu país na festa de abertura do evento. Foi também a primeira vez que o Brasil escolheu mulheres como representantes em uma Cerimônia de Abertura.
O bicampeonato olímpico começou a ser construído com o título do Mundial de Classes Olímpicas, na Dinamarca, em 2018, que garantiu a classificação para os Jogos de Tóquio. No evento-teste, vitória com uma regata de antecipação.
Nem mesmo durante o afastamento de Martine para disputar uma temporada Volvo Ocean Race, competição que ocorre a cada três anos e com escalas ao redor do planeta, a dupla perdeu a afinidade. Apesar do adiamento das Olimpíadas de 2020 para 2021, pela pandemia de covid-19, elas chegaram ao Japão favoritas e confirmaram a conquista em mais uma regata final acirrada e com estratégia decisiva.
— É uma sintonia, não precisamos nem falar, uma entende a outra pelo olhar. Às vezes, sei o que ela está pensando e já respondo. Nos conhecemos há muito tempo. É o lado positivo de uma equipe que trabalha junto há muito tempo e isso encurta caminhos — complementa Martine sobre o entrosamento da equipe.
Favoritas, apesar do crescimento das rivais, elas buscarão nas águas de Marselha, onde serão disputadas as regatas da vela nos Jogos de Paris, um inédito tricampeonato para mostrar que são as rainhas dos mares nas Olimpíadas.