A série DNArquibancada apresenta 12 matérias, uma para cada equipe que disputa o Gauchão 2024, e a relação visceral de pessoas com os clubes do coração. Nelas, aparecerão personagens do passado e do presente. Gente muito conhecida e outros que são anônimos para muitos, mas que resumem em sua personalidade a identificação máxima com o seu time de coração. A nona reportagem conta a história de Salim Nigri, torcedor gremista morto em 2010 e que era considerado uma enciclopédia da história do Grêmio.
Muito da personalidade tricolor foi cunhada em 26 de maio de 1946. Naquele dia surgiu uma das frases que norteia os torcedores gremistas. O adversário era o Renner. Nas arquibancadas do extinto Estádio Tiradentes, foi desfraldada uma faixa com uma frase que marca a vida do Grêmio. A epígrafe azul dizia “com o Grêmio onde estiver o Grêmio”.
Sete anos depois, Lupicínio Rodrigues, ao compor o hino do clube, realizou uma adaptação do termo cunhado por Salim Nigri, morto em 2010, aos 82 anos. Na segunda metade dos anos 1940, Salim era o responsável pelo departamento do torcedor gremista, considerado o berço da primeira torcida organizada do clube. Foi ele quem confeccionou a frase e a faixa — o dia também marcou a estreia do Mosqueteiro como mascote tricolor.
— O Lupicínio mudou a métrica. Virou “com o Grêmio, onde o Grêmio estiver. Ele (Salim) foi muito protagonista. Foi muito importante — enfatiza Léo Gerchmann, autor de A Fonte, a incrível história de Salim Nigri.
A faixa, pode-se dizer, foi a segunda façanha das muitas da relação entre Salim e o Grêmio. Um ano antes, recebeu a missão de encher um vagão de trem para levar gremistas para a partida diante do Floriano, em Novo Hamburgo. O jogo marcava a estreia do atacante argentino Moisés Beresi. Comunicativo, ele superou as expectativas. Foram 18 vagões abarrotados de torcedores. Não coube todo mundo sentado. Eram para ser 60 torcedores por vagão. Ao todo foi uma multidão de 2 mil gremistas.
— Foi uma das maiores excursões de trem da América do Sul. O Grêmio venceu por 2 a 1. O árbitro era o Foguinho. O Salim estava preocupado como seria a volta se o Grêmio perdesse. Todo mundo ia querer ir sentado — relembra o historiador Daison Santana.
Salim virou uma espécie de relações públicas tricolor. Vendia a imagem gremista pelas ruas da cidade. Naquela época, as sedes sociais do Grêmio e do Inter ficavam lado a lado na Rua da Praia, centro de Porto Alegre.
Salim cuidava dos assuntos azuis. Vicente Rao, dos vermelhos. A convivência era saudável. Mas Salim tinha suas desconfianças. Certa feita, Rao precisava pregar um cartaz, mas estava desprovido de martelo. Bateu na porta do rival. Sempre pronto para ajudar, pegou o seu equipamento e foi ele mesmo realizar o serviço.
— Ele foi lá e pregou o cartaz. Ele tinha medo que fizessem uma macumba com o martelo dele — conta, às gargalhadas, Vera Nigri, filha de Salim.
As histórias são um naco da relação dele com o Grêmio. Extrapolam tudo aquilo que Salim conseguiu ver em azul, preto e branco, refletem tudo aquilo que ele sentiu como torcedor do Grêmio.
A partir dos 19 anos, uma doença genética deu início à perda da visão. Uma limitação que eriçou todos os outros sentidos de Salim. Vera não conheceu o pai com visão. Cresceu ouvindo as histórias do adolescente de habilidade limitada para vestir a camisa das três cores e começou a vida no clube como bibliotecário. Passou pelo departamento de torcidas. Virou conselheiro. Sobretudo, transformou-se em uma referência.
Não apenas pelo gremismo, mas como uma marca de conhecimento. Eis a razão para Gerchmann intitular o livro sobre Salim como "A Fonte". Sabia tudo da história gremista. Não raro, durante o Sala de Redação, um dos integrantes entrava em contato com ele durante o programa para tirar dúvidas. Do outro lado da linha sempre vinha uma resposta precisa.
— Por um tempo, ele ainda foi no estádio. Depois, preferiu ficar em casa para acompanhar os jogos. Ficava com dois ou três rádios ligados com narrações diferentes. O Grêmio foi os olhos dele — relata Vera.
Durante a Copa da França, em 1998, Salim pediu para uma professora de francês traduzir hino gremista para a língua de Napoleão. Enviou para Paulo Sant’Ana, exaltando que o Tricolor atravessa fronteiras, assim como os laços firmados por Salim Nigri e o Grêmio.