A série DNArquibancada apresenta 12 matérias, uma para cada equipe que disputa o Gauchão 2024, e a relação visceral de pessoas com os clubes do coração. Nelas, aparecerão personagens do passado e do presente. Gente muito conhecida e outros que são anônimos para muitos, mas que resumem em sua personalidade a identificação máxima com o seu time de coração. A oitava reportagem conta a história do Seu Bica, torcedor do São José antes mesmo ter visto uma partida do clube da Capital.
Em tempos em que quase todos os jogos são transmitidos com imagens vistas em qualquer lugar, aumentam as chances de que alguém torça para um clube fisicamente distante. Nos anos 1950, a realidade era outra. A distância era um problema do tamanho de um Maracanã lotado. O mundo era regional. Sem televisão e internet, o futebol da Capital era uma lonjura para quem vivia no Interior. Em termos futebolísticos, pontos afastados eram conectados pelas ondas do rádio e pelas imagens criadas pela imaginação. Mais não foi necessário para que Seu Bica se torna-se torcedor do São José.
Nada de Inter ou Grêmio. A paixão que arrebatou o coração dele foi o São José. Os anais da medicina não apresentam relatos, mas é provável que ele seja o primeiro caso não autóctone picado pelo Zeca Vírus. Naquela época, Seu Bica era interno do Colégio Duque de Caxias, em Lagoa Vermelha. No refeitório dos padres, um rádio bradava partidas de futebol. Um fio levava o som até um alto-falante no pavilhão dos internos. Assim, o São José chegou aos seus ouvidos.
— Eu tinha, 10, 12 anos de idade. Ficávamos ouvindo as jornadas esportivas, e começamos a acompanhar o São José. Ganhávamos do Renner, do Grêmio, mas perdíamos para o Colorado. Assim, me apaixonei pelo São José — relata.
Assim, o clube da Zona Norte de Porto Alegre ganhou um improvável torcedor. Sem nunca ter ido ao Passo D’Areia, sem nunca ter visto qualquer jogo do São José, virou torcedor zequinha a quase três centenas de quilômetros da Avenida Assis Brasil.
O amor resistiu ao tempo e a distância. Demoraram alguns anos para que ele pegasse a estrada e viesse a Porto Alegre. Era 1965. O seu destino foi direto e reto o Passo D’Areia. A primeira missão foi virar sócio do São José. Ano que vem serão 60 anos de vínculo formal com o clube. O fanatismo se exacerba a ponto de ele ter o estatuto social do clube impresso.
— No primeiro jogo que eu vim aqui no Passo, foi o meu casamento com o Zeca. Casamento eterno. Amor outro nenhum se meteu no meio, nem tricolor, nem vermelho, só o Zeca. Casamento indissolúvel, nem o papa pode cancelar — assegura.
Era um casamento à distância. Sem internet. Nada fez a relação arrefecer. Manteve-se sólida. Seu Bica foi morar “em casa” somente nos anos 1980. Desde então, se esgoela nas sociais do Passo, grudadinho no alambrado.
— Zeca vírus, joga, ataca e mata — grita nas arquibancadas.
Tão alto a ponto de os jogadores escutarem em campo os berros do bancário aposentado. Seus gritos são quase um teste de audição. Quem não os ouve, só pode ter algum tipo de problema auditivo.
— É gratificante. Abro a minha voz. Os jogadores conseguem me ouvir no campo. Eles falam que ouvem a minha voz. Isso me enche, não de orgulho, mas de saúde, de alegria, de viver mais e mais torcendo para o Zeca — destaca.
Aos 80 anos, os pulmões mostram que a saúde de Seu Bica está tinindo.
— Enquanto o Zeca não for campeão de um Gauchão, o velho Bica aqui não morre — assegura.