Das ruas de terra do distrito de Carrefour, no subúrbio de Porto Príncipe, capital do Haiti, saiu o novo reforço da base do Grêmio. Se antes ele jogava com os pés na areia e o futebol era apenas um sonho distante, agora Ganael Gay, que também usa o sobrenome Gary, 15 anos, terá a chance de provar que há espaço para imigrantes em clubes grandes do Brasil.
Em Porto Alegre há um ano e cinco meses, Gana assinou contrato de formação com o Grêmio na semana passada. Ele passará por um período de adaptação de três meses no Centro de Formação e Treinamento Presidente Hélio Dourado, em Eldorado do Sul, junto à equipe sub-16, a partir de março de 2021. Nos gramados que revelaram nomes como Douglas Costa, do Bayern de Munique, e Arthur, da Juventus, ele poderá mostrar que a qualidade que chamou atenção de empresários e observadores pode transformá-lo no primeiro jogador haitiano da história tricolor.
— Estou realizando um sonho. Sempre me falaram que eu jogava muito bem, e meu sonho é ser jogador de futebol — conta Ganael.
Na infância, qualquer latinha ou papel amassado virava uma bola. Não tinha condições de comprar uma de verdade. Também não tinha acesso na escola, que contava com pouco material e acabava fomentando mais o atletismo do que outros esportes. Jogava apenas quando lhe chamavam, e até recebia um troco por isso.
— Ele jogava futebol na rua. Não tínhamos dinheiro para colocá-lo nas escolas de futebol. As pessoas chamavam ele para jogar, até pagavam para ele, porque sabiam que ele era muito bom — explica o pai, Jean Jacques, 46 anos.
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Aliás, foi por causa dele que Ganael veio parar aqui. Sem emprego e em situação de vulnerabilidade social no Haiti, Jean Jacques viu na migração para o Brasil a chance de mudar de vida. O cunhado já havia se mudado para Porto Alegre e feito elogios à cidade. Assim, conseguiu dinheiro emprestado com o irmão e veio para o país, em 2016. Ficou um tempo na casa do cunhado e logo conseguiu emprego na limpeza de uma igreja. Era o que ele precisava para arrumar um lugar para morar e trazer o restante da família.
Primeiro, vieram a esposa Rosebertha Baselais (madrasta de Gana) e os três filhos mais novos, Nyelmaga, de sete anos, Gamael, três, e Roberta, um ano. O último a chegar foi Ganael, em julho do ano passado. O período de quatro anos em Porto Alegre foi o suficiente para mudar a vida dele, da família e, agora, da nova promessa da base gremista.
— A vida lá no Haiti estava muito difícil. Não conseguia emprego, era difícil para as crianças estudarem. Gosto muito aqui do Brasil. Consegui dois empregos, trouxe a minha família e encontramos pessoas que estão nos ajudando muito — relata Jean Jacques, que também trabalha na Cooperativa de Trabalhadores Autônomos das Vilas de Porto Alegre (Cootravipa).
Uma dessas pessoas às quais Jacques se refere é Pablo Bueno, empresário de jogadores como Tetê, do Shakhtar Donetsk, da Ucrânia, e Ferreira, do Grêmio. Por meio de amigos em comum, Pablo soube da história de Ganael e sua família. Ouviu falar que o garoto tinha muita qualidade e resolveu conferir.
— Ele é talento puro. O futebol do guri é um fenômeno. Driblador, corre muito, tem aquele futebol alegre. É canhoto, joga na ponta-direita, lembra um pouco o Tetê — afirma o empresário, que agora gerencia a carreira do garoto.
Inicialmente, Ganael conseguiu um teste no Inter. Foi aprovado, mas com a chegada da pandemia, em março, acabou não sendo chamado para ingressar na base do clube. Depois, o analista de mercado da base gremista Gustavo Marrone recebeu a indicação do jovem haitiano por meio de um árbitro que apita jogos de refugiados em uma igreja, em Canoas.
— Fiquei sabendo da história e fui assistir. Era um sábado de manhã. O menino, no meio de adultos, acabou chamando muita atenção pela técnica. É um ponta com característica de drible, canhoto. Mesmo contra adversário com mais força física do que ele, foi muito bem — ressalta o observador.
Ganael ainda terá de aprender fundamentos e, até mesmo, as regras do jogo. Como nunca jogou futebol valendo, nem mesmo aprendeu na escola, o período de três meses de adaptação no Grêmio será importante para o menino.
— Ele não tinha muito conhecimento da regra. Me contou um pouco da história dele, e a Educação Física no Haiti tem mais atletismo. Então ele aprendeu futebol mesmo vendo pela TV e jogando na rua, e acabou que achei um perfil interessante para se trabalhar e acreditar — explica Marrone.
Se pouco conseguia assistir futebol quando morava na ilha caribenha, que é o país mais pobre das Américas, conforme o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), conheceu Grêmio e Inter quando chegou a Porto Alegre. Passou em frente ao Beira-Rio e à Arena, aos quais ainda não teve a chance de conhecer, e se encantou com a grandeza dos clubes. Agora, terá a chance de viver o sonho de muitos meninos e jogar em um gigante do futebol brasileiro.
— Sempre que o Grêmio joga, eu olho. Conheci o CT em Eldorado do Sul, fiz os exames e gostei muito. Estou feliz. Minha vida mudou muito nesse último ano. Para melhor, graças a Deus — agradece Ganael.
O menino e sua família, que antes moravam em uma casa humilde na Ilha do Pavão, agora vivem em um apartamento na Lomba do Pinheiro, zona leste da Capital, cedido por Pablo Bueno. O empresário ajuda com comida, roupas e até mesmo no treinamento complementar do jovem haitiano, que passou por um trabalho de fortalecimento muscular antes de fazer os testes no Grêmio.
Por meio do futebol, Ganael Gay também poderá ter uma educação melhor. Apesar dos 15 anos, está apenas no sexto ano do Ensino Fundamental e terá de estudar para seguir como atleta da base tricolor. Com português ainda enrolado, a palavra que mais repetiu na entrevista para GZH foi "obrigado". É o sentimento de um imigrante que chegou ao país e, pouco mais de um ano depois, vê a vida mudar da terra para o gramado.