A entrevista começou com uma brincadeira. Avisamos a Renato Portaluppi que não havíamos deixado o ar-condicionado da redação do site GaúchaZH para ouvir respostas comuns. Queríamos tirar do treinador todos os segredos que o fizeram transformar seu time na mais afinada orquestra do futebol brasileiro. Renato sorriu, sorveu um pequeno gole de café sem açúcar e devolveu:
— Vocês querem que eu conte meu segredo para o inimigo?
Foi, talvez, o único momento em que se manteve na defensiva. De resto, o homem que é reconhecido como o melhor técnico brasileiro da atualidade expôs com minúcias os bastidores do clube. Em uma das respostas, deixou aberta a possibilidade de permanecer no Grêmio em 2019, certamente o maior desejo de 10 entre 10 gremistas. Renato é tão importante para o Grêmio que a entrevista foi concedida na sala do presidente Romildo Bolzan Júnior no CT Luiz Carvalho.
Qual o seu segredo para fazer este time jogar o melhor futebol do Brasil?
Lembra de uma entrevista que dei para vocês no ano passado, que vocês colocaram uma frase minha no título: "Não sou bom, sou muito bom"? Exatamente. Falei isso depois de perdermos o campeonato estadual, em um momento não tão bom. E eu falei: "Não sou bom, sou muito bom". Tem coisas que não vou ficar falando em público para não ensinar ou alertar os outros treinadores de como trabalhar. Cada um tem sua forma. Quando falei aquilo, não era um bom momento. E eu banquei aquela matéria. O resultado está aí. Eu me garanto em todos os sentidos. Não pensem que quando eu entro de sala em sala, em todas as áreas do clube, é para dar bom dia ou boa tarde. Eu entro porque me garanto em todas as áreas, não só lá na beira do campo. Tenho 19 anos de carreira, aprendi muito. E tenho muita coisa dentro de mim, que tiro de mim, e procuro passar para o meu grupo. Ensinar e falar muitas coisas. Falo e mostro dentro de campo, teoria e prática. Não adianta ficar só na teoria. Tenho que mostrar também, por isso mostro o vídeo também. Ali é um dos nossos grandes segredos, ali dou liberdade total para os jogadores. Sou eu contra os 30, praticamente, e os desafio no que estou mostrando. Se me provarem que estou errado em alguma coisa, mudo na hora. Não vou ensinar ninguém a trabalhar, tenho meu método e tem coisas que ficam só entre mim e meu grupo.
Confio muito naquilo que sei e penso
RENATO PORTALUPPI
Sobre as suas influências como treinador de futebol
Qual é o treinador ou a pessoa que te inspirou no futebol?
Eu mesmo. Não é desmerecer ninguém ou achar que eu sou o f****. Não sou o f****. Eu tenho grandes ideias dentro de mim, coisas que coloco em prática e procuro passar para o meu grupo e eles fazem dar certo. Confio muito naquilo que sei e penso. Passo isso para eles.
Nenhum técnico mesmo te influenciou?
Trabalhei com os melhores treinadores, lógico que tirei uma coisa ou outra de um ou de outro. Mas não abro mão das minhas ideias. Um dos meus segredos com o grupo é que sou muito chato com eles nos mínimos detalhes. É isso que faz diferença, e em todas as profissões. Mostro algumas coisas que acontecem nos nossos jogos e nos outros jogos. Mostro um detalhe que ninguém percebe e quanto de estrago ele faz. Sou muito chato neste ponto de cobrar, cobro muito deles. Meu time sabe o que fazer dentro de campo porque sou muito chato durante a semana, na hora do vídeo. Mostro o caminho para eles. Aí, não tem razão para não fazer. Fazemos poucas faltas. Não quero que façam faltas. Faltas desnecessárias proporcionam perigo de gol.
Tem muita troca de ideias nestas conversas?
A gente conversa, mas sempre mostro o melhor caminho para eles. Se alguém achar que estou errado, levantar a mão e me provar que não estou certo, vou mudar na hora. Eles precisam dar a ideia e provar que estou errado.
Antes de um jogo, você falou que chegava a perder o sono pensando. Seu tempo é ocupado por projeções?
Não é que eu queria, às vezes eu quero dormir, mas não consigo. Aí acordo e fico pensando. Eu não esqueço, amadureço ainda mais as ideias. Não anoto nada. Vida de treinador é f***. Depois do jogo, para dormir, então... os jogadores não dormem pelo cansaço e dor no corpo. Mas, no caso do treinador, o cansaço é mental, a parte psicológica desgasta mais. Preciso pensar em tudo.
Mas e durante o dia, quando não tem jogo?
Hoje eu dormi, ontem (depois do jogo contra o Cerro Porteño-PAR) fui dormir depois das cinco da manhã. Quando apago, apago legal. É muita pressão, tudo passa pela cabeça do treinador. Preciso me preocupar em tudo, nos mínimos detalhes.
Já começou a pensar no Santos (a entrevista foi feita na quarta)?
Faz parte. Vencemos o Cerro Porteño, um puta de um resultado, e alcançamos o primeiro lugar do grupo. Mas já está atrás. Temos que pensar no futuro. A gente não para, a cada três dias estamos em campo. Fui embora da Arena na terça para ver o jogo do Santos, fui para o hotel trabalhar. Aí o CDD (Centro Digital de Dados) me passa as informações que eu quero. Até a sexta-feira busco informações de quem vai jogar, quem não pode e vamos para o vídeo. Mostro no vídeo para o meu grupo como o Santos joga, características. Tudo mastigadinho para eles.
E deve ser difícil para o técnico adversário mostrar como o Grêmio joga...
É o que eu falo. Os treinadores sabem tudo do adversário. Mostro tudo do Santos para não sermos surpreendidos. De que maneira o outro técnico vai trabalhar, é problema de cada treinador.
Após estes 20 meses de bom trabalho, o estigma de ser apenas um técnico motivador acabou?
Pode ter alguma dúvida na cabeça de alguns. Na minha, nunca teve. A minha confiança é 100%. Meu time não é aquele que um adversário cuida de um detalhe ou outro e morreu a equipe. Não. Tem muito trabalho. Isso é treinamento. Não podemos ser iguais aos outros, temos que ser diferentes. Para você conquistar resultado na vida, tem que ser diferente. Por isso fico orgulhoso do time. Porque executamos exatamente o que treinamos e eles são elogiados no Brasil todo. O Grêmio joga bonito porque busca o gol o tempo todo. Contra o Cerro, o jogo estava definido e eu botei mais um atacante. Óbvio, tem horas que eu vou fechar. Mas não vou dar chance ao adversário. O Atlético-PR às vezes tem a posse de bola no campo dele. Nós, no campo do adversário. É isso que eu quero ver. Às vezes, o adversário tem a posse de bola e não te agride. O Grêmio agride.
Te incomoda o fato de, no jogo contra o Real Madrid, o Grêmio não ter conseguido imprimir o seu estilo normal de jogo?
Luan, naquele dia, realmente não esteve bem. Não tínhamos Maicon, Arthur. E estávamos enfrentando o Real Madrid! E era o último jogo da temporada, vínhamos numa pegada violenta. E o Real Madrid tem 11 jogadores em nível de seleção. Mesmo jogando mal, tomamos um gol por falha nossa. Nossa intenção era levar para os pênaltis. E, nos pênaltis, tudo pode acontecer. Outro dia, num papo no vestiário, tínhamos acabado de ver um jogo do Real Madrid, um jogador nosso, que não vou falar o nome, disse: "Esse Real Madrid tá abusado, será que sabe que vão pegar a gente de novo"? (risos).
Tudo se encaminha para isso?
É muito cedo. Não quero nem falar nisso. Tem muito caminho pela frente.
Como administrar o cansaço jogando três competições ao mesmo tempo?
É um desgaste muito grande. Você não consegue colocar a mesma equipe sempre. Se o Grêmio está numa competição só, é outra história. E você tem que brigar nas três. É a maior piada que ouvi dizer que o Grêmio está deixando o Brasileirão de lado. O Campeonato Brasileiro tem 38 rodadas. A Copa do Brasil e Libertadores são mata-mata. A Copa do Brasil dá um lucro de R$ 60 milhões para o clube.
Qual treinador europeu você admira? Klopp, Jupp Heynckes, Zidane?
Guardiola, Mourinho... o mundo inteiro bate palmas para eles, não é? São bons. Mas a única diferença é que eles treinam uma seleção. Me dá uma Ferrari e toma essa Kombi aí. E vamos correr. Gosto do estilo deles. Guardiola, por exemplo, ficou um ano lá no Manchester City e contratou pra caramba. Deram mais de 100 milhões de euros e ele não deu resultado no primeiro ano. E se fosse aqui no Brasil? A grande pergunta que eu faço é: eu queria ver esses grandes treinadores, que eu admiro, treinando num clube médio. Se der resultado, o cara realmente é bom.
Mas o Grêmio não é uma seleção? Tem Grohe, Geromel, Arthur, Luan, todos convocáveis...
Mas a gente fez esse pessoal jogar. Eles estavam aqui quando eu cheguei. Ninguém falava que eles tinham de estar na Seleção. Arthur treinava aqui há dois anos e estava para ser emprestado. Eu não cheguei aqui pedindo. Peguei este grupo e o grupo foi embora. Fez cinco decisões e ganhou quatro. E só perdeu para o Real Madrid.
Você se considera uma pessoa iluminada?
Sim. Me considero. Muito. Eu tenho tudo na vida. Graças ao meu trabalho. Nada caiu de paraquedas. No momento em que comecei a jogar futebol, eu comecei a ganhar as coisas. Tudo que eu tenho hoje foi graças à minha profissão. Foi com meu trabalho. Nada caiu na minha conta. Tudo o que tenho, construí com meu trabalho. Então, sou um cara realizado em todos os sentidos. Agradeço a Deus todas as noites. Agradeço.
Mas há pessoas que também trabalharam muito e não conseguiram sucesso.
Aí é inteligência, é cabeça. Quando eu era jogador, já dava conselhos para os jogadores. Como treinador, muito mais. Mas não vou botar um revólver na cabeça deles e obrigar a fazer as coisas. Quem quer seguir, eu aconselho, mostro o melhor caminho sempre.
Quem te dava conselhos?
Eu era muito sacaneado pelas feras quando comecei a jogar. Jogadores de nível de seleção que o Grêmio tinha. Faziam brincadeiras comigo. Davam conselhos e eu aprendi. Diziam: "Garoto, você tem um futuro enorme. Cabeça, guarde dinheiro, invista". Eu tinha 18 anos e levei muito a sério isso. Por isso que falo. Everton fez um gol contra o Goiás e foi me abraçar. Eu falei no ouvido dele: "Garoto, me escuta porque você vai ganhar muito dinheiro ainda pela vida". Everton é bom garoto, ele escuta. Fico contente com os caras levando a sério meus conselhos. Eu ajudo muito eles.
E o famoso episódio do drone? Alguém realmente trabalhava para você? Ele foi importante naquele momento?
Quanto mais informações você tiver do adversário, melhor. Não falamos assim: "Vai lá e usa o drone". O trabalho dele era buscar informações do adversário. Ele tinha que conseguir da maneira dele. Drone o mundo todo usa. Agora, o drone fará uma equipe jogar mais? As informações que buscamos é saber tudo do adversário. Ele está fazendo o papel dele. O que usava ou deixava de de usar não é problema meu. O que queríamos eram as informações do adversário. Como todo mundo faz. Como a Seleção Brasileira tem. Como todas as seleções têm. Como todos os clubes têm. Eu fiquei puto na época porque a ESPN soltou na véspera de uma decisão, não era necessário fazer aquilo. Por isso, pedi permissão ao presidente para acabar com o assunto na entrevista. Permissão dada, fui lá e falei daquela maneira, firme e forte. Senão, viraria uma bola de neve e todo dia iriam falar. É assim e acabou a história. Morreu ali e fomos campeões.
Você acha que o assunto tomou uma proporção que não deveria ter tomado?
É porque eles tiveram um X-9 (espião) aqui de dentro. Simplesmente isso. E X-9 comigo não trabalha. Simples.
Mas é algo que vocês ainda irão usar? O CDD (Centro Digital de Dados) assumiu esta função?
Ele fazia parte e trocava informações com o CDD. Ele não está mais aqui. Eu trouxe outro lá do Rio, mas não muda em nada. Se amanhã ou depois o que eu trouxe também usar o drone, qual o problema? Eu pergunto: é proibido o drone? Tem tanta coisa que tem de mudar no futebol.
Estamos jogando um futebol mais bonito
RENATO PORTALUPPI
Sobre a comparação com o seu período como jogador na década de 1980
Este é ou não o melhor Grêmio da história?
São épocas diferentes. Naquela época que eu jogava, o talento do jogador brasileiro era maior. Tinha mais craques. Era mais difícil, não tinha exame antidoping, por exemplo. Só eu sei o que sofri na Libertadores, naquele jogo contra o Estudiantes na Argentina, e nós fomos campeões do mundo. Mas fico contente pelo que estamos fazendo hoje em dia. Posso falar que estamos jogando um futebol mais bonito. Naquela época era mais competitivo.
Mas, para muitas pessoas, é quase impossível nos dias atuais um clube sul-americano ser campeão do mundo novamente.
É para você ver quem se enfrenta. Qualquer clube daqui que ganhar a Libertadores vai enfrentar uma seleção.
Você tem conseguido superar todos os desafios. Estancou os gols de bola aérea, fez Arthur e Maicon jogarem juntos, transformou Luan de soneca em jogador de seleção. Qual o próximo desafio?
Aí, não sei o que vocês vão falar (risos). Tudo o que vocês falaram, passamos por cima. Não sei o que vem pela frente. Até porque não sei onde este Grêmio pode chegar. Mas, acima de tudo, falo muito para os jogadores ficarem de pezinhos no chão. Hoje, o Grêmio está sendo elogiado por todo o Brasil merecidamente, com jogadores que podem estar na Copa do Mundo, mas, em futebol, hoje você está ganhando, amanhã ou depois pode começar a perder, o que é normal, e vão falar que o time não era nada daquilo, que já mascarou, já está andando diferente. É muito pezinho no chão. Até porque, este ano, temos de ganhar no mínimo mais um título.
Seu ciclo no Grêmio se encerra neste ano?
Tem minha assinatura lá no meu contrato. Mas, se amanhã, ou agora, depois desta entrevista, eu resolver entrar no meu carro, pegar minha mala e ir embora, eu vou e não pago nada ao Grêmio. E vice-versa. Com o clube do meu coração, não tem um real de multa, nem de um lado, nem de outro. Quando fui campeão em 2016, ou agora, neste ano, eu poderia ter colocado uma multa absurda na renovação. E o Grêmio teria de me dar esta multa, pelo momento. Eu nunca fiz isso. Eu tive uma proposta do Flamengo que eram dois caminhões (de dinheiro). Mas não botei o presidente e a diretoria na parede. Pelo contrário. Falei: "Não quero um real de aumento". Não estou aqui para me aproveitar da situação. Estou aqui para trabalhar e agradeço a oportunidade que o Grêmio sempre me deu. O dia em que sair do Grêmio nunca será com briga. Vai ser numa boa. No momento em que os resultados não estiverem aparecendo, o presidente poderá ficar à vontade, conversaremos numa boa. Estou muito satisfeito aqui. Falam que Renato não sai do Rio de Janeiro. E eu fiquei aqui, apesar dessa proposta do Flamengo. Se fala que é só mais este ano. Não gosto de dar prazo. Eu vivo o momento. E ele é maravilhoso, temos três competições. Depois, pode ser que eu continue. Não sei nem o que farei amanhã. Não gosto de me programar para lá na frente. Depois a gente vê o que acontece.
O Renato maduro de hoje é uma pessoa melhor do que o marrento da época de jogador?
Eu nunca fui marrento. E tenho todas as ferramentas para ser. Eu sou é tímido. Só que ninguém acredita. Aquele era meu jeito de ser. Era garoto. As pessoas até hoje falam que sou mascarado. Pelo contrário. Sou tímido, bem tranquilo. Eu tinha 18, 19, 20 anos na época. Eu jogava. E jogava muito. E as pessoas misturavam as coisas. Hoje, só sou mais experiente. Conto até 10. Mas não mudei minha forma de ser.
Como é a cada jogo ser o alvo do adversário, que quer fazer de tudo para bater o Grêmio?
Eu falo para o meu grupo que as dificuldades para a gente aumentam a cada partida. Os adversários se concentram mais, se dedicam mais. Como se o Grêmio fosse uma seleção.
E não é?
Não. O Grêmio é igual aos outros. Joga bonito, tem um diferencial. Mas todos veem como o adversário a ser batido. Todos querem ganhar. Se vai ganhar, é outra história. Aí o caminho é mais longo.
Continuas com dificuldade de sair à noite para se divertir?
Nada mudou. No próprio Rio de Janeiro é difícil. Imagina aqui. Não é que eu não consiga. Claro que vou sair. Mas estou ali tomando um chope e daqui a pouco para e vem uma foto. Você não consegue interagir, conversar, tomar um chope, então prefiro ficar no hotel. Mas é uma coisa normal. Fazer o quê? Sair e não conseguir conversar e tomar um chope? Então, fico no hotel.