Julho começou com parte dos principais fiadores do distanciamento social imposto pela pandemia de coronavírus de braços cruzados. Em protesto pela falta de condições adequadas para trabalhar, entregadores que prestam serviço a aplicativos de delivery paralisaram suas atividades no primeiro dia do mês em diversas capitais do país.
A mobilização serviu para chamar a atenção das autoridades, mas também de donos de restaurantes e clientes que, muitas vezes, ignoram os rostos por trás dos capacetes de quem os poupa de se expor ao vírus, colocando em risco a própria saúde. Um novo protesto está marcado para a próxima terça-feira (14).
— Os governantes pediram que as pessoas ficassem em casa e chamassem delivery, mas não disseram como seria protegido esse delivery. Se tivéssemos assistência, não faríamos mobilização. Estamos buscando o mínimo necessário. Nos tornamos essenciais, mas não temos nada — argumenta o presidente do Sindicato dos Motociclistas Profissionais do Rio Grande do Sul (Sindimoto), Valter Ferreira.
Motoboys nunca trabalharam tanto. Representantes da categoria estimam que a pandemia provocou um acréscimo de até 40% na demanda diária dos entregadores. Ao mesmo tempo, a concorrência cresceu. Diante da escassez de vagas de empregos formais em razão da crise econômica, as plataformas digitais viraram o último recurso de alguns dos milhões lançados ao desemprego nos últimos meses.
Somente na Região Metropolitana, passam de 75 mil os motoboys e motogirls — na Capital, eles são mais de 15 mil. Com mais mão de obra disponível, o valor das viagens diminuiu. Na tentativa de manter os rendimentos, os trabalhadores começaram a passar mais horas na rua: segundo o sindicato, jornadas de 14 até 18 horas diárias tornaram-se comuns para quem atua com apps.
Antes mesmo da pandemia, a rotina estressante já apresentava reflexos na vida dos trabalhadores. Uma pesquisa da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) divulgada em março constatou que, de 101 motoboys entrevistados, 75% tinham ao menos um diagnóstico de doença psiquiátrica, como crises de ansiedade, mudanças bruscas de humor e até transtornos de personalidade, incluindo uso abusivo de álcool e drogas.
A sobrecarga de trabalho, combinada com o ingresso de motociclistas menos experientes no mercado, fez com que, diferentemente do que ocorreu com outros modais, os acidentes de motos aumentassem, mesmo com menos gente nas ruas. Somente em Porto Alegre, em março, foram 268 acidentes envolvendo motociclistas, 2% a mais do que no ano passado. As quedas no número de acidentes registradas em abril e maio, de 38% e 16%, foram bem menos expressivas do que as de outros tipos de acidente de trânsito, de 64% e 48%. Sete pessoas morreram.
Sem vínculo empregatício, entregadores de aplicativos que se acidentaram durante as entregas dizem não terem recebido suporte das empresas. A falta de assistência foi apenas um dos eixos que motivaram a ida dos entregadores à rua. Em 1º de julho, eles reivindicaram, além de licença remunerada em caso de acidentes, direito à alimentação durante as jornadas, acesso a equipamentos de proteção individual (EPIs), melhores taxas de entrega e o fim do sistema de pontos e dos bloqueios.
Dos cinco motoboys ouvidos pela reportagem, todos disseram apoiar a mobilização da categoria — apenas um, porém, compareceu aos protestos. Pelo menos um confirmou ter sido bloqueado por apps por rejeitar ou cancelar viagens. Todos disseram ter medo de contrair o coronavírus durante o trabalho.
Uberização é tendência
Serviços intermitentes contratados por demanda, como o dos motoboys, são parte do que estudiosos do assunto chamam de uberização do trabalho — o nome é inspirado no modelo de atuação da plataforma Uber, de transporte de passageiros. O modelo que trata os colaboradores como “parceiros”, não funcionários, permite que as empresas desviem da legislação trabalhista, se eximindo de pagar os direitos e garantias previstas quando há vínculo empregatício.
A modalidade, que ganhou força com o advento das plataformas digitais e a intensificação da crise econômica, já se estende a diversos nichos de atuação: hoje há de jornalistas a médicos trabalhando sob esse tipo de regime. No entendimento de especialistas, o formato, que caracteriza uma precarização das relações de trabalho, deve persistir depois da pandemia.
— Essa modalidade se expande nos países neoliberais, onde o mercado de trabalho se tornou selvagem. O emprego que as grandes empresas sonham hoje é o que está à margem da legislação social protetora do trabalho. Se deixarmos as coisas como estão, isso vai se intensificar — diz Ricardo Antunes, professor da Unicamp e autor dos livros O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital e Coronavírus: O trabalho sob fogo cruzado.
Para o pesquisador, que estuda relações de trabalho há mais de 40 anos, a mobilização dos entregadores mostra o despertar de parte dos trabalhadores para os problemas desse modelo. Ele acredita que o apoio da sociedade às reivindicações — diversos clientes e donos de restaurantes boicotaram os apps no dia do protesto — também é instrumento de pressão e pode ajudar a categoria a obter conquistas.
Em nota divulgada após a mobilização do dia 1º, a Associação Brasileira de Mobilidade e Tecnologia (Amobitec) informou que seus associados implementaram ações de apoio aos entregadores, como a distribuição gratuita ou reembolso pela compra de materiais de higiene e limpeza e a criação de fundos para o pagamento de auxílio financeiro para aqueles diagnosticados com covid-19.
A entidade disse ainda que as “plataformas de delivery operam sistemas dinâmicos e flexíveis, que buscam equilibrar as necessidades de entregadores, de restaurantes e de usuários” e que “a flexibilidade dos aplicativos foi essencial para que centenas de milhares de pessoas, entre entregadores, restaurantes, comerciantes e microempresas, tivessem uma alternativa para gerar renda e apoiar o sustento de suas famílias”. Segundo a Amobitec, os entregadores cadastrados nas plataformas estão cobertos por seguro contra acidentes pessoais durante as entregas.
Conheça o dia a dia de três profissionais
Vizinha ajuda com o filho
Logo no começo da pandemia, Marcelo Worm e a esposa, que atua como técnica em segurança do trabalho, perceberam que precisariam de ajuda. Com os dois trabalhando fora e as aulas do filho de sete anos suspensas em razão do distanciamento social, pediram à vizinha que ficasse com o menino durante o dia.
— Ela está trabalhando em home office, e o filho dela estuda com o meu. No começo, foi complicado. Ela sabe que sou motoboy, ficou meio assim porque eu estou na rua — recorda o morador de Canoas, na Região Metropolitana.
Após algumas conversas — em que o casal se comprometeu a redobrar os cuidados dentro e fora de casa —, a mulher aceitou ajudar, recebendo a criança. Desde então, durante a semana, o café da manhã é o único momento do dia em que Marcelo convive com o filho. Depois de deixá-lo, por volta das 8h, ruma para Porto Alegre para uma jornada de que não termina antes das 23h. Quando volta, encontra-o na cama.
Apesar do convívio familiar restrito, a rotina intensa não impressiona o motoboy, que presta serviço para três aplicativos de entrega (dois de materiais e um de comida). Desde que começou a trabalhar com a moto, há 17 anos, acostumou-se a passar o dia em movimento. O que mudou foi o sistema: sob o capacete, agora leva máscara, e o álcool gel virou companheiro inseparável nas viagens pela Capital.
— A gente toma todos os cuidados possíveis. Principalmente eu, que encosto em várias coisas diferentes durante o dia. Mas o vírus é invisível, né — diz.
Sem condições de voltar para casa no meio do expediente, circula com talheres no baú da moto. O almoço geralmente é uma marmita, consumida em algum pequeno intervalo entre corridas, por vezes sentado na calçada.
Embora prefira as entregas de materiais, que costumam pagar melhor, usa um app de delivery de comida para complementar a renda. Para ele, é o que menos compensa — também atende a demandas diretas de clientes. Uma viagem acionada pela plataforma costuma pagar a metade do valor de outras.
Para garantir alguma assistência, contratou por conta seguros de vida e da moto, e paga contribuição previdenciária — que lhe assegurou renda quando, em 2013, sofreu um acidente que o tirou de circulação por mais de um ano. Apesar dos riscos e incertezas, considera a vida sobre duas rodas melhor do que em outros trabalhos:
— Comecei pensando em ganhar dinheiro, mas depois descobri esse sentimento de liberdade que dá estar na rua, não ter ninguém incomodando. E ganho mais do que se fosse assalariado. Não me vejo fazendo outra coisa.
Falta de assistência e categoria desunida
Motoboy há 15 anos, Jorge Flores, 37, sentiu na pele a precariedade do vínculo estabelecido com o app de entrega de comida para o qual presta serviço no ano passado. Precisou ficar de molho depois de a moto cair sobre ele em um acidente ocorrido quando saía de casa para trabalhar, em Viamão. Fraturou o pé e a canela, e o médico recomendou 10 dias em casa. Impossibilitado de trabalhar, passou o período sem receber nenhum centavo.
— Fui numa UPA e tive que ficar parado nesse tempo. O app nunca dá assistência, só bota outro no lugar. Agora mandaram uma mensagem dizendo que se a gente pegar o corona, vão dar — diz o motoboy, que tem trabalhado entre 14 e 16 horas por dia durante a pandemia.
Não à toa, participou da mobilização dos entregadores realizada em 1º de julho. Desligou o app e foi até o local marcado para o protesto. Decepcionou-se ao ver a baixa adesão dos colegas.
— Cheguei lá e tinha mais bicicleta do que moto. Os ciclistas estão mais unidos. Fiquei um pouco e fui embora. Não dá para esperar nada de ninguém — lamenta.
Jorge começou a prestar serviço para a plataforma digital depois que perdeu um emprego com carteira assinada. A empresa em que trabalhava quebrou, e ele saiu sem receber os direitos trabalhistas.
No começo, impressionou-se com a rapidez do retorno financeiro do app. Chegava a tirar R$ 4,5 mil mensais com facilidade. Mas a concorrência chegou e logo o trabalho foi perdendo valor. Atualmente, recebe, em média, R$ 7,50 por viagens de até três quilômetros — para atingir os mesmos R$ 4,5 mil do começo, precisa fazer cerca de 30 viagens diárias. Ele acredita que os apps ajudaram a desmobilizar os protestos: alguns ofereceram bônus aos motoboys que não pararam.
Ainda assim, diz gostar da atividade. Mas, hoje, diz que trocaria o dinheiro “fácil” por um trabalho com garantias, ainda que o salário não atingisse o valor atual.
— Pros apps, quanto mais tu trabalha, mais tu ganha. Essa é a vantagem. Mas hoje eu preferia trabalhar de carteira assinada, mesmo que fosse por menos.
Vida longe dos apps
No fim da noite de terça-feira (7), um dos dias mais chuvosos dos últimos meses em Porto Alegre, Thiago Pereira Oliveira, 31 anos, chegou em casa mais pesado do que saiu. Depois de passar a noite circulando pela Capital para entregar pedidos de um restaurante de comida japonesa, não havia parte de sua roupa que não estivesse encharcada.
— Cheguei em casa todo molhado, com as botas cheias de água. Achei que ia sair um peixe de dentro — conta.
Não se resfriou — está com a imunidade alta, diz. Apesar disso, os dias chuvosos o deixam mais vulnerável durante a pandemia. Segundo ele, é impossível manter a máscara de proteção seca, motivo pelo qual deixou de usá-la quando o tempo está ruim. Acaba fazendo as mais de 20 entregas diárias desprotegido.
Diferentemente de outros colegas, no entanto, não está rodando mais, em razão do distanciamento social. Nos dois restaurantes para os quais presta serviço, um a partir da manhã e outro à noite, observou o movimento se retrair nos últimos meses. O volume dos pedidos também encolheu:
— Antes, o pessoal pedia R$ 200, R$ 300, agora são uns combinados menores, de R$ 70, R$ 80. Acho que está todo mundo segurando dinheiro — diz.
Com o trabalho em dois turnos — geralmente emendados, das 11h às 23h —, tem conseguido manter os rendimentos mensais. Ganha cerca de R$ 3,5 mil, dos quais pelo menos um terço gasta com a manutenção da moto. Os equipamentos de proteção, como máscaras e álcool em gel, têm de ser adquiridos por conta própria.
No ramo há cinco anos, resiste aos aplicativos de entrega de comida. Além de considerar a remuneração baixa, acha que o trabalho pela plataforma traz mais insegurança aos motoboys:
— Tenho instalado, mas nunca usei. Eles não têm filtro, te largam em qualquer lugar. Acho mais seguro fazer com o restaurante direto.