Com o tema “Desafios para a valorização da herança africana no Brasil”, a redação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) de 2024 trouxe à tona um debate que deve ser permanente, especialmente no que tange à educação. Pesquisa do Projeto SETA e do Instituto de Referência Negra Peregum, realizada em 2023, revelou que a maior parte das pessoas negras teve a primeira experiência com o racismo no ambiente escolar.
Além de trazer prejuízos à autoestima das crianças e jovens pretos e pardos, a violência racial contribui para aprofundar as desigualdades na trajetória escolar de pessoas negras e não negras. Conforme o Anuário Brasileiro da Educação Básica de 2024, elaborado pelo Todos pela Educação, a taxa de conclusão do Ensino Médio até os 19 anos no ano passado foi de 68% entre os pretos, 66% entre os pardos e apenas 59% entre os indígenas.
Entre os alunos brancos, esse índice é de 78%. O estudo também constatou que apenas metade (50,1%) das escolas públicas brasileiras possuía, em 2021, alguma abordagem do tema étnico-racial e projetos pedagógicos para combater o racismo. Segundo a analista de políticas públicas do Instituto Alana, Beatriz Benedito, é fundamental que as escolas trabalhem estes temas constantemente, e não somente no mês da consciência negra.
— Promover políticas nesse sentido é reparação histórica e a principal forma de combate ao racismo nas escolas. Para além dos ganhos sociais, da justiça curricular e da construção de uma sociedade mais justa e igualitária, a valorização da história africana e afro-brasileira é direito de todas as crianças e adolescentes e deve ser garantida — destaca.
A valorização da herança africana está prevista na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira, que foi alterada pela Lei 10.639/03, que inclui “o estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil”.
Conforme Beatriz, é necessário pensar em práticas pedagógicas que permitam a ampliação do repertório de profissionais da educação e estudantes, por meio de atividades de literatura, história, artes, mas também de matemática, química e educação física. Projetos com olhar crítico, promoção de leituras de autores negros, exposições e brincadeiras podem contribuir nesse sentido.
Representatividade
Após ganhar sua primeira diretora negra nos 93 anos de história da escola, o Colégio Estadual Protásio Alves promoveu uma gincana com o tema “Africanizar-se”. A atividade contribuiu para trabalhar questões de autoestima, reconhecimento e empoderamento dos alunos negros, que representam quase metade dos 500 estudantes matriculados na instituição, segundo a diretora da instituição em Porto Alegre, Mariett Luiza Martins Cabral.
— Estamos trabalhando muito com o tema da identidade. Temos muitos alunos negros e dialogamos constantemente com eles a questão do racismo e do bullying por meio de projetos interdisciplinares. Abordamos muito a questão da religiosidade, por exemplo, da tolerância com as diversas religiões. E ter uma diretora negra é importante para que eles tenham essa referência — afirma a pedagoga.
Trajada em homenagem a Oxum, Mariett conta que os alunos se engajam muito nas atividades coletivas, que contam com momentos de interação e manifestações culturais. Um deles é Samuel Luz de Souza, 17 anos, que preparou um slam para declamar aos colegas na Semana da Consciência Negra. O aluno da 1ª série do Ensino Médio diz que encontrou na poesia falada uma forma de se expressar e traduzir sentimentos e situações de violência racial que sofreu, inclusive em uma escola onde estudou.
— A maioria dos alunos negros aqui são parecidos comigo. São pessoas que se reconhecem como negras, se identificam, agem como eu, se vestem como eu, têm gosto musical parecido comigo, ouvem as mesmas coisas. Aqui me sinto mais pertencente — relata.
Uma exposição estampa nesta semana nas paredes da escola imagens de personalidades como a ginasta Simone Biles, a deputada federal Erika Hilton, a filósofa Djamila Ribeiro e o jogador de futebol Vinicius Junior, bem como figuras históricas, como Antonieta de Barros, a escritora Carolina Maria de Jesus e a ativista Rosa Parks.
— A gente também já teve situações de racismo aqui, mas a escola é um lugar para aprender. Se tu foi racista em algum momento, precisa aprender que aquilo não está certo. Somos alunos, mas também ensinamos isso aos colegas no dia a dia — ressalta Hendriw Rauã, 18 anos, estudante da terceira série do Ensino Médio.
Conscientização na infância
No Colégio João XXIII, na zona sul de Porto Alegre, as relações étnico-raciais são abordadas de forma transversal junto aos alunos e à equipe pedagógica, tanto no currículo escolar, em sala de aula, quanto por meio de projetos e atividades lúdicas.
— Nós entendemos a escola como um espaço para falar dessas questões e valorizar diferentes contribuições, como a riqueza do povo africano, a ancestralidade. Temos crianças brancas e negras em sala de aula, e é importante que todas se sintam representadas pelo conhecimento que chega aqui. O conteúdo não pode ser centrado na cultura povos europeus — afirma a coordenadora pedagógica da Educação Infantil, Márcia Valiati.
Ela diz que, desde a infância, as concepções racistas vão surgindo, e o colégio busca justamente desconstruir esse preconceito ao longo de todos os anos da trajetória escolar. Com isso, para além de olhar crítico que atravessa o currículo, diversas práticas vêm sendo conduzidas, inclusive com as turmas da Educação Infantil. Um dos projetos que ganharam destaque foi o “Pequeno Príncipe Preto - Conexões entre África e Porto Alegre”.
Recentemente, a iniciativa recebeu o Prêmio Destaque por Práticas Educacionais Antirracistas, da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul. Conduzido pela professora Clara Coelho ao longo de um semestre, o projeto buscou instigar os pequenos de 4 a 6 anos para compreenderem a importância da valorização e do respeito às diferenças e da diversidade étnica, além de pesquisarem sobre a cultura africana e afro-brasileira.
— Trouxemos várias histórias e personagens, como o pequeno príncipe negro. Aí, eles mesmos perceberam que tinham dificuldade de desenhar esse personagem, por conta do tom de pele. Eles começaram a olhar para si mesmos e questionar, e começamos a trabalhar essas questões de identidade e representatividade. O respeito pelo outro, a construção de um olhar mais empático — explica Clara.
Desde 2023, a escola conta com o projeto “João de Todas as Cores”, que oferece bolsas parciais para estudantes negros e indígenas. Além disso, nos processos seletivos para contratação de profissionais no colégio, um dos critérios é a preferência por pessoas pretas, pardas e indígenas.