A rotina de Marina dos Santos Ferreira, 18 anos, é puxada. A estudante da 3ª série do Ensino Médio frequenta o Colégio Estadual Piratini em tempo integral. Depois da aula, vai para o cursinho pré-vestibular, onde estuda por mais três horas. Nos intervalos e aos finais de semana, revisa os conteúdos. A jovem realizará o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) em novembro e sonha em fazer Direito. O esforço, segundo ela, é porque se sente abandonada com o Novo Ensino Médio.
— As eletivas do Novo Ensino Médio eram para ser algo que aproximasse a gente das matérias que a gente gosta. Mas eu vejo que a gente está sendo muito prejudicado porque não tem matérias que a gente precisa, que vão cair no Enem, como química, física e biologia. A gente tem que estudar em casa, por conta — conta.
Localizado no bairro Auxiliadora, em Porto Alegre, o Colégio Piratini conta com 240 alunos e foi uma das escolas piloto do Novo Ensino Médio. Disciplinas como Projeto de Vida e Estudos Orientados, já faziam parte do currículo da instituição. O que mudou nos últimos anos foi a carga horária de cada uma e dos componentes da formação geral básica. Além disso, o diretor da escola, Daniel Castro, conta que a disponibilidade de algumas eletivas foi alterada a cada ano letivo.
Na 3ª série, por exemplo, os alunos têm quatro períodos semanais de língua portuguesa, quatro de matemática, um de língua estrangeira, um de história e um de geografia. O resto da grade curricular é dividida em componentes dos itinerários formativos. Sociologia, filosofia, biologia, física e química não fazem parte da rotina dos estudantes que se preparam para o Enem.
— Tentamos suprir algumas dessas lacunas com os nossos projetos, como a mostra científica e a disciplina de Práticas Experimentais. As áreas de linguagens e de matemática estão bem contempladas, mas está bem complicado. Ciências da natureza e ciências humanas, a meu ver, foram as áreas mais prejudicadas nesse Novo Ensino Médio — explica o diretor.
Composto por 180 questões objetivas e uma produção textual, o Enem é dividido em cinco partes. No dia 3 de novembro, os participantes farão as provas de Linguagens, Ciências Humanas e Redação. No dia 10 de novembro, será a vez das provas de Matemática e Ciências da Natureza.
A coordenadora do Grupo de Estudos em Políticas Públicas para o Ensino Médio (Geppem) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Mariângela Bairros, também percebe a insuficiência de carga horária nas disciplinas que compõe duas dessas áreas de conhecimento:
— Por exemplo, em história e geografia, biologia, química e física, 50% do conteúdo não foi trabalhado nos três anos. Assim como 70% da carga horária de filosofia e sociologia não foi trabalhada nos anos de Ensino Médio. O que significa isso? Que houve uma precariedade. Então, neste momento, de novembro de 2024, quando os alunos farão a prova, eles estarão, sim, com déficit na construção do seu conhecimento.
A lei que instituiu a reforma do Ensino Médio foi sancionada pelo presidente Michel Temer em 2017. Segundo calendário fixado pelo Ministério da Educação (MEC), a reforma deveria começar a ser implementada em 2022 para a 1ª série do Ensino Médio; em 2023 para a 1ª e 2ª série; e em 2024 para a 1ª, 2ª e 3ª série. Após o projeto sofrer críticas, neste ano, o presidente Lula sancionou uma lei que altera as Diretrizes e Bases da Educação Nacional e reformula o Novo Ensino Médio, que valerá a partir de 2025.
Desigualdade no ensino
Faltando pouco menos de um mês para a prova, Marina olha com ansiedade para a possibilidade de não tirar uma nota boa. Ela conta que a rotina é cansativa e que, constantemente, se sente atrasada no conteúdo. A jovem ressalta que entende que a culpa não é da escola ou dos professores, mas sim da reforma no formato de ensino:
— Eu penso em fazer Direito, e me sinto tão prejudicada que eu não sei se eu vou conseguir. A gente se sente tão sobrecarregado, tão abandonado, que a gente não se vê fazendo uma faculdade, não se vê passando numa federal, por conta do Novo Ensino Médio e de não ter estrutura.
Desde o início dos debates sobre o Novo Ensino Médio, a desigualdade entre as redes pública e privada de ensino era uma preocupação dos especialistas. Para Mariângela, o déficit na carga horária dos componentes da formação geral básica pode fazer com que os alunos da rede pública cheguem ao Enem já em desvantagem, em relação aos alunos da rede particular.
— O Ensino Médio, na verdade, já vinha numa situação de déficit. E a reforma aprofundou essa diferença entre um segmento de alunos que segue sendo preparado para ocupar cargos de destaque na sociedade, como CEO de grandes empresas, juízes e advogados, e um segmento das classes populares, economicamente falando, que seguirão em trabalhos subalternos. E no Enem essa dificuldade se coloca. Mas, ainda assim, eu acredito muito no ensino público — pontua a especialista.
Pontos positivos
Com um sorriso no rosto, Marina conta sobre as aulas de teatro. Para ela, produzir peças na escola ajudou a construir um senso crítico mais apurado e a desestressar, o que ela considera importante para o período de preparação para o Enem. Castro pontua que, além disso, alguns dos novos componentes ajudam os alunos a estudar ou aprofundar alguns conteúdos que poderão cair na prova.
— Nós temos um componente chamado Aprofundamento Enem, que é para as áreas de matemática, ciências da natureza e linguagens. Utilizamos esse componente para trabalhar muito a questão da redação e para exercitar bastante física e matemática. Estudos Orientados é um componente em que os alunos aprendem a se organizar para estudar e para fazer os trabalhos. Acho que foram maneiras de tentar suprir esse déficit — avalia o diretor.