Livros, jogos, empreendedorismo, sustentabilidade, culinária e fatos históricos – a educação financeira vai muito além de cálculos e pode ser conectada a quase todo projeto realizado nas escolas. Prevista por lei no Rio Grande do Sul há dois anos, a inclusão do tema nas propostas pedagógicas é discutida também em nível nacional. Projeto que tramita no Senado prevê mudança na Lei de Diretrizes e Bases, para que o assunto seja tratado nos currículos da Educação Básica de forma transversal.
No Colégio La Salle São João, de Porto Alegre, alunos dos Anos Finais do Ensino Fundamental e do Ensino Médio participam de atividades lúdicas e interativas com o objetivo de mostrar a importância de administrar recursos financeiros e materiais e ajudar na preparação para os obstáculos que eles podem enfrentar ao longo da vida.
Uma das formas preferidas da professora de matemática Fabiana Moreno de trabalhar esse tópico é com o uso da literatura. Já foi usada, por exemplo, a obra Estrelas Tortas, de Walcyr Carrasco, que conta a história de uma menina que, após um acidente, perde o movimento das pernas, o que gera um desafio à família sobre como administrar essa realidade em sua vida financeira.
— Os alunos tinham planilhas onde eles tinham que incluir gastos com fisioterapia, o uso de uma cadeira de rodas, a troca por um carro adaptado, como ia ser esse deslocamento se a família não tivesse condição de arcar com esse carro, ligar para instituições para verificar se podem fornecer esses materiais gratuitamente — recorda.
Se alguns projetos focam no planejamento financeiro, juros e impostos, em outros, a administração de recursos é tema transversal. É o caso, por exemplo, da organização da Feira das Religiões ou da montagem de chapas estudantis, que, para além do conteúdo em si dos trabalhos, abrange planilhas de custos para a realização das tarefas almejadas.
Em outras atividades, o foco é na análise dos recursos disponíveis: contando com uma impressora 3D, os alunos do La Salle São João resolveram compartilhar o benefício e produziram peças de xadrez para enviar a uma escola da rede localizada em Moçambique, que não dispunha do jogo.
Foi a partir do senso de que compartilhar suas riquezas também pode ser um bom investimento, que Matheus Soares Garcia, 14 anos, que cursa o 9º ano, decidiu que era hora de parar de guardar as pulseirinhas que produziu com uma amiga para vender em seu condomínio.
— Quando deu a enchente, a gente tinha um estoque de pulseirinhas e a gente foi lá e vendeu tudo de novo. A gente arrecadou mais de R$ 1 mil e usou tudo para doação: compramos cobertas, porque estava chegando o frio, a minha mãe pesquisou onde estavam precisando e fomos lá e doamos — conta Matheus.
Mônica Oliveira Lourenzi, 15 anos, também faz pulseiras para vender desde os 12. A maior parte do dinheiro, guardou – só usou uma pequena quantia, cerca de um décimo, para comprar itens que considera realmente relevantes, como livros que queria ler. Para além da escola, a consciência financeira é desenvolvida em casa: a garota diz que conversa bastante com os pais sobre o assunto, especialmente desde que a turma do 9º ano leu a obra O Homem Mais Rico da Babilônia, de George Samuel Clason.
— Meus pais me disseram que nunca tiveram esse ensino de educação financeira, e a gente percebe o quanto é importante aprender isso logo cedo, desde que começamos a ganhar mesada ou algum outro dinheiro. Quando a gente chegar na faculdade, ou no final do Ensino Médio, a gente já vai saber como administrar nosso dinheiro e como organizar para conseguir ter uma vida melhor — comenta.
Educação financeira em tudo
Em Campo Bom, no Vale do Sinos, a prefeitura oferece, entre os projetos a serem trabalhados na rede municipal, o Educação fiscal e financeira como prática cidadã, no qual os professores definem a forma como trarão as diretrizes do assunto. Uma das instituições de destaque nesse sentido é a Escola Municipal de Ensino Fundamental Adriano Dias, que, apesar de atender alunos mais novos, do 1º ao 5º ano, investem em atividades transversais que incluem a conscientização atrelada ao cotidiano dos pequenos.
Quando a gente pensa em educação financeira vem a ideia do dinheiro, mas trabalhar o assunto não é só trabalhar sistema monetário, mercadinho, essas coisas: é muito mais. Vai desde o momento em que tu acorda, liga a luz. A educação financeira está em tudo.
JESSICA MACHRY
Professora da Escola Adriano Dias
A docente se organiza para dedicar horários para esse conteúdo a cada 15 dias. Além de dar noções sobre tópicos como despesas fixas e variáveis e suas diferenças para cada família, Jessica usa uma jarra d’água para explicar o fluxo do dinheiro, com o “recurso” sendo distribuído em copos que simbolizam cada tipo de gasto existente na vida. Com a turma de 3º ano, usa as atividades ligadas à sustentabilidade para demonstrar que, ao consumir algo, o indivíduo se torna responsável por todo o ciclo que o consumo gera.
— Nessa etapa, fazemos o trabalho da “Casa Gestora” e mostramos para os alunos que eles também fazem parte desse fluxo de dinheiro e da gestão do orçamento familiar. Quando estão usando a TV, saem e deixam o aparelho ligado, aquilo está consumindo energia: é dinheiro invisível que estamos gastando dentro de casa. Foi pensando nessas situações que fizemos um material com dicas de pequenas atitudes que, se cada um fizer, muda a sociedade — ressalta.
Outra atividade foi realizada no início do ano, devido à epidemia de dengue. Após pesquisa de possíveis focos do Aedes aegypti nas casas dos estudantes e no colégio, a turma do 5º ano identificou desperdício de água na escola fruto de um ar-condicionado. Para evitar a proliferação do inseto e o gasto, o grupo decidiu fazer uma cisterna. A primeira tentativa foi construir com materiais reutilizáveis – não deu certo. A segunda, bem-sucedida, contou com a doação de um cano, o aproveitamento de tampinhas, torneiras de plástico e a instalação de uma peneira para evitar a entrada do mosquito.
— Deu supercerto: conseguimos coletar em média 8 a 10 litros de água por dia e vamos fazer, agora, um trabalho sobre os possíveis usos para essa água. Já tivemos entrevista com um técnico, que nos explicou sobre a importância da manutenção e sobre como usar o ar-condicionado de forma econômica, e agora eles vão fazer um folder digital para compartilhar com as famílias o tutorial para fazer o protótipo da cisterna — descreve Jessica.
Depois de todo o trabalho, os alunos ainda fizeram uma pesquisa do preço de uma cisterna nas lojas, o que variou de R$ 35 a R$ 69. A conclusão tirada pelos próprios estudantes foi simples: pesquisar preço é importante porque, ao final, daria para comprar dois reservatórios em um local pelo valor de um só em outro.
Participação dos pais
Mais do que sobre dinheiro, educação financeira é sobre recursos, alerta a professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Wendy Carraro. A pesquisadora, que ministra palestras e formações para escolas nessa área, ressalta a importância de ensinar desde cedo a diferença entre o que é necessário e o que é desejável.
Quando vamos fazer uma compra, precisamos pensar: será que ela é realmente necessária, ou é só vontade, porque o fulano tem, ou porque é moda? Essas decisões financeiras, que envolvem o desembolso de algum recurso, têm a ver com o nosso comportamento. Então, é importante aprender desde cedo o que é necessário, o que é essencial e o que é supérfluo.
WENDY CARRARO
Pesquisadora da UFRGS
Quando realiza atividades com estudantes das escolas que visita, a professora costuma fazer uma pesquisa com eles: lista uma série de ações, como trocar de celular, cuidar da saúde, tomar água, estar com quem ama e comprar roupas novas, e pede para que os jovens as elenquem de acordo com sua prioridade. Se os mais novos geralmente priorizam atividades essenciais como a saúde e estar com entes queridos, os adolescentes às vezes classificam a troca de celular como sua principal prioridade, o que propicia um diálogo sobre o assunto.
A docente apresenta o conceito de “alfabetização financeira”, que envolve, por exemplo, conhecer a lógica das contas. Por exemplo: quando se compra algo à prestação, pode ser que o preço final fique mais alto do que se aquilo for comprado à vista, o que nem sempre o indivíduo sabe. Noções sobre inflação, cálculo de juros e os riscos envolvidos em situações como investimentos também são aspectos que promovem essa alfabetização.
Wendy se diz partidária de uma educação financeira transversal, que envolva outras áreas e disciplinas.
— Vejo que se trabalha muito, principalmente com os alunos menores, o consumo consciente, que não envolve só não gastar muito dinheiro, mas não gastar muito os nossos recursos naturais, que são escassos — pontua a professora.
A docente alerta que é fundamental que as famílias participem da educação financeira, trazendo questões sobre esse assunto para as crianças.
— Muitas vezes, a gente percebe que os pais querem proteger as crianças, ou não sabem como falar com elas sobre a real situação, e é importante ter essa transparência. Dizer: “Bem, neste momento não temos condições e vamos ter que fazer algum ajuste no nosso orçamento, pesquisar mais os preços” — sugere Wendy.
Sobre a oferta de mesada, a pesquisadora recomenda que as famílias tenham um contrato com os filhos, de que não podem gastar esse dinheiro com bobagem.
— O que eu estou dizendo para o meu filho, quando eu falo “ó, quando tu quiser comprar besteira, tu usa o teu dinheiro”? Quando ele crescer, vai comprar algo que é supérfluo, que não é necessário — avalia a professora. Wendy ressalta que educação financeira não é “coisa de rico”: é um tema fundamental para qualquer classe social.
Dicas para ensinar sobre finanças em casa
- Criado pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM) e o Ministério da Educação (MEC), o site Educação Financeira na Escola oferece, de forma gratuita, material para ser utilizado desde o início do Ensino Fundamental com crianças em sala de aula. Na plataforma, há podcasts sobre o assunto, voltados para professores que querem conhecer e aplicar o tema, além de cursos de educação financeira organizados pelo Sebrae para estudantes do 1º ao 5º ano. O portal disponibiliza, ainda, livros específicos para cada série da Educação Básica.
- A revista Tino Econômico fala sobre economia e finanças em uma linguagem voltada para o público adolescente. Em seu portal e nas edições impressas, o periódico conta com jogos, glossário e um texto escrito de uma forma mais simples, que busca trazer reportagens, entrevistas e curiosidades contextualizadas sobre finanças e economia nacional e mundial.
- Estão com inscrições abertas a Olimpíada Brasileira de Educação Financeira e a Olimpíada do Tesouro Direto de Educação Financeira. Ambas com participação gratuita, são voltadas para estudantes dos Anos Finais do Fundamental e do Médio. As questões envolvem principalmente o assunto no cotidiano do aluno.