De repente, Marcieli dos Santos Schmitz, 32 anos, viu a filha de sete anos, Manuela Schmitz de Freitas, se tornar uma enxadrista de mão cheia. A menina aprendeu a jogar xadrez em um projeto no colégio municipal que frequenta, em Alvorada, na Região Metropolitana, e pegou gosto. Sete anos depois, a adolescente se prepara para disputar em maio a etapa nacional dos Jogos Escolares Brasileiros (JEBs), que será em Aracaju, capital do Sergipe – e concorrer a uma vaga no torneio mundial, previsto para outubro, na cidade de Manama, no Bahrein.
Esta não será a primeira vez que o xadrez levará a menina para longe de casa. Sua primeira viagem foi para Brasília, em 2018, aos oito anos. Em 2019, viajou para São Gabriel e, em 2021 e 2022, para São Paulo. Em Brasília, em um torneio nacional, alcançou a segunda colocação. Se tivesse ficado em primeiro, teria garantido uma vaga no campeonato panamericano. Apesar de lamentar a derrota, entende a importância de, eventualmente, perder.
— Eu não gosto de perder, ninguém gosta. Só que, no xadrez, tu perde e tu aprende, porque tu sabe o que tu erra, e tu tem que revisar aquela partida, ver o que errou e não fazer aquilo de novo. Então, perder é uma forma boa de aprender — analisa a adolescente.
Percebendo que o engajamento no xadrez estava fazendo bem para a filha, que era mais introspectiva e melhorou suas habilidades de comunicação, a mãe topou o investimento na trajetória de Manuela.
— Ir para as competições, pagar as inscrições, tudo isso exige um apoio da família. A gente chegou a fazer rifa para vender, e a família apoia bastante, porque é um tipo de orgulho, né? Xadrez não é um esporte tão comum, ainda mais para criança. Já que ela se interessou, não tinha por que não investir. No início foi bem sacrificado, mas, agora, a gente tem mais pessoas para ajudar. Por isso, ela participa mais e está indo bem longe — celebra Marcieli.
A estudante vai para Aracaju mais confiante do que nas outras viagens.
— Eu quero ganhar, mas, se não der, já que vão classificar até o segundo lugar, perdendo uma ou ganhando todas, tá bom — avalia Manuela.
Para alcançar esse resultado, está estudando todos os dias. Estudar significa assistir a partidas transmitidas em um curso online que contratou. Quando algum torneio é realizado na Região Metropolitana, a adolescente costuma participar para treinar, o que ocorre de duas a três vezes por mês. Mesmo com o destaque e o empenho, ela nega ser boa no tabuleiro.
— Eu não acho que eu seja boa, eu acho que eu sou aceitável. Eu ganho, mas eu também perco. Preciso melhorar quase tudo: minha abertura, meu meio de jogo e meu final de jogo. Tenho que cuidar minhas trocas, cuidar meus lances — descreve a menina.
Presença feminina
Depois que foi ao ar, em 2020, a série O Gambito da Rainha, Manuela percebe que o interesse feminino no jogo aumentou.
— Antes, mal iam gurias nos torneios. Iam duas gurias para uns 30 guris. Agora, já vão mais, de todas as escolas — observa a estudante.
O professor e idealizador do projeto que apresentou Manuela ao esporte, Fábio Vinícius da Silva, também chama a atenção para o crescimento da participação das garotas nas aulas e nos torneios – hoje, elas são até maioria.
— No ano passado, nós tivemos uma competição em Capão da Canoa e fomos com 23 alunos: 18 meninas e cinco meninos. Geralmente, nas competições de xadrez há uma premiação destaque para o feminino, porque, como tem poucas meninas que jogam, elas são destaque. Mas, aqui, é o contrário — destaca o docente, que considera que, lá, a influência foi menos da série e mais da adesão inicial de uma aluna, que incentivou outras a iniciarem as aulas.
Amor iniciado no colégio
O amor de Manuela pelo xadrez começou quando o projeto de Fábio foi oferecido na Escola Municipal Antônio de Godoy, em Alvorada, onde estuda. Hoje, o professor já não ministra suas aulas na instituição, mas a adolescente fez questão de seguir com as atividades na Escola Municipal Emilia de Oliveira, no mesmo município.
A iniciativa de Fábio deu tão certo que, hoje, já não ministra, em suas 40 horas semanais na rede municipal, as aulas de História que foi contratado inicialmente para ministrar: ocupa todas com o ensino do xadrez na Emilia de Oliveira e na Escola Municipal Alcides Maia.
— Começamos com poucos alunos em um horário fora do período de aula, e foi aumentando o interesse. A direção, na época, viu a possibilidade de termos um horário fixo para isso, e disponibilizou. Foi melhorando, até que, hoje, a gente consegue atender em sala de aula os estudantes a partir do 2º ano do Fundamental. Até o 5º ano, eles têm um horário de xadrez por semana. Do 6º ao 9º, eles têm dois horários disponíveis, antes de começar a aula e ao meio-dia — recorda o educador.
Desde 2018, em torno de 300 estudantes já participaram ativamente de competições, para as quais as direções das escolas e a Secretaria de Educação de Alvorada disponibilizam transporte, e muitos mais acompanharam as aulas na escola. O docente considera que a prática traz melhorias consideráveis na concentração das crianças.
— Vai ajudar na matemática? Pode ajudar. Mas a questão da concentração é algo que vai ser usado em todas as disciplinas e todas as profissões, porque todas as profissões exigem algum nível de concentração. É um trabalho de longo prazo: nas turmas que agora estão no 5º ano aqui e começaram a ter xadrez no 3º, o tempo de concentração na leitura e na explicação do professor é maior do que o de turmas que não tinham xadrez — relata Fábio.
Além dos ganhos intelectuais, o docente celebra o fato de o investimento no esporte vir acompanhado de viagens, nas quais crianças e adolescentes que, às vezes, só conhecem a sua região, descobrem outros espaços no Estado e no Brasil.
O desafio no tabuleiro
Estudante da Fundação Escola Técnica Liberato Salzano Vieira da Cunha, em Novo Hamburgo, Fernanda Luise Silver, 16 anos, ficou em primeiro lugar na etapa estadual dos JEBs – Manuela ficou em segundo – e vai estrear na competição. O envolvimento com o xadrez, porém, não é de hoje: começou em 2019, quando estudava em uma instituição de São Leopoldo que oferecia xadrez aos alunos.
Desde então, participou de um torneio em Campo Bom, outro em São Leopoldo e dos Jogos Escolares do Rio Grande do Sul (Jergs), quando alcançou a primeira colocação. Em Santa Catarina, competiu duas vezes no Floripa Chess Open. O que mais lhe interessou no xadrez, desde o início, foi o desafio.
— É um jogo muito difícil, com tanta coisa para se pensar. Tem táticas, estratégias das finais, das aberturas. É uma coisa que abre pra muitas outras coisas, sabe? Então, nunca acaba: a pessoa nunca vai ficar 100% boa. Acho que é uma coisa que tem que ir estudando mais e mais. E é muito legal ganhar também — acrescenta, rindo.
É um jogo muito difícil, com tanta coisa para se pensar. Tem táticas, estratégias das finais, das aberturas. É uma coisa que abre pra muitas outras coisas.
FERNANDA LUISE SILVER
Estudante
O ideal seria ter uma rotina permanente de treino, mas Fernanda nem sempre consegue, porque sente que, hoje, precisa focar mais nos estudos para o Ensino Médio. No entanto, quando uma competição se aproxima, procura dar um “gás”.
— Eu tento ler um livro de estratégia e treinar táticas, a parte estratégica do jogo, porque isso é boa parte (do desafio). Na categoria estadual, eu ganhei todas as partidas, mas ganhei porque as meninas entregavam alguma coisa, tipo um peão, alguma coisa assim. Só que vai chegar um momento em que o adversário não vai entregar nada e eu vou ter que construir alguma coisa no meio da partida. É isso que eu estou estudando agora, para começar a construir uma vantagem posicional — comenta a jovem.
Esta será a primeira vez que Fernanda fará uma viagem com tudo pago, sem precisar fazer rifas e juntar dinheiro. Nesse caso, quem arca com custos como passagem aérea, hotel e alimentação é a Federação do Desporto Escolar do Rio Grande do Sul.