Eduardo Vandré Lema Garcia estava deitado no sofá de casa, mexendo no celular, quando a filha Maria Eduarda se aproximou perguntando o que ele fazia. Jogando xadrez, respondeu o pai à menina, na época com apenas quatro anos, ao que ela retrucou:
— Então me ensina.
Ele montou uma mesa de xadrez no celular mesmo, para que ela entendesse a funcionalidade das peças: os peões na frente, as torres nas laterais e a dama ao fundo, bem protegida. Partiram para um dos seis tabuleiros espalhados entre a sala de jantar e o escritório da casa com piscina em um condomínio de Santa Cruz do Sul, no Vale do Rio Pardo.
Desembargador federal, Eduardo estuda xadrez desde os 12 anos, quando aprendeu o jogo com um amigo. Sempre teve verdadeiro fascínio pelo esporte que exige grande esforço intelectual. Quando enxergou a possibilidade de ensinar tudo o que sabia à sua única filha, fruto do casamento com a servidora pública Tiana Tischler, 44 anos, não poupou esforços.
Passou a jogar diariamente com a menina. Quis mostrá-la o jogo sério, com todos os fundamentos, e evitou os atalhos. Antes de ensinar o xeque-mate, lance final que leva à vitória, encurralando o rei, ensinou como se faz uma boa abertura, conquistando o centro do tabuleiro e colocando o rei em segurança.
— Fazendo uma comparação com futebol, seria como se, ao invés de deixar a criança brincar com a bola de um lado para o outro, a gente ensinasse ela a cabecear, a conduzir a bola, a fazer um passe e depois chutar a gol. Ensinei as aberturas do xadrez à Maria, a desenvolver o meio do jogo, essas coisas — conta Eduardo, 54 anos.
Ainda que o xadrez seja considerado difícil, Maria Eduarda manteve-se firme. Hoje com oito anos, é vista como uma promessa entre crianças da sua idade. Faz um ano que participou de seu primeiro campeonato, o Floripa Chess Open, em janeiro de 2022, e se deu bem logo de início: ficou em quarto lugar na categoria sub-8 absoluto, disputada entre meninos e meninas de até oito anos. Em maio, tornou-se campeã do sub-8 feminino do Campeonato Brasileiro de Xadrez, realizado em Natal, no Rio Grande do Norte.
Não demorou para se destacar em torneios internacionais. Em junho do mesmo ano, jogou no Panamericano de Xadrez no Uruguai, onde conquistou o quinto lugar no sub-8 feminino. Sentiu o gosto de uma grande vitória em dezembro, quando participou do Sul-Americano de Xadrez, no Paraguai, também no sub-8 feminino, tornando-se a primeira brasileira campeã nessa categoria.
Suas medalhas e troféus estão acomodados em uma prateleira da estante de livros do escritório da família, onde dividem espaço com clássicos da literatura. Antigamente, Eduardo deixava que ela ganhasse todas as partidas, até para que aprendesse os diferentes tipos de xeque-mate. Agora, a menina é tão craque no jogo que, para o pai, tornou-se difícil superar a filha. Mesmo querendo.
— Quando foi a última vez que tu me ganhou, pai? — questiona Maria Eduarda, olhando carinhosamente para o genitor.
Segundo Eduardo, a menina tem certa dificuldade em encarar uma derrota. Quando isso acontece, vai para um canto e precisa ficar quietinha, mas logo se recupera. Segundo ela própria, uma disputa no tabuleiro não deve virar inimizade. Quando encerra a partida, vai brincar com seu rival.
— Quando a gente está no jogo, é um jogo. Quando terminamos o jogo, vamos brincar de pega-pega — garante a menina.
Foco
Eduardo diz que sucesso no xadrez não é talento, é estudo. Maria Eduarda se debruça sobre o tabuleiro três horas por dia, duas com o pai e uma com o Grande Mestre Internacional André Diamant, cearense que lhe dá aulas virtuais e, assim como ela, aprendeu o xadrez aos quatro anos.
— A Maria sempre está buscando fazer o simples, e fazer o simples, no xadrez, é o mais difícil. Ela não joga em cima de linhas decoradas. Sempre busca posições únicas. E comete poucos erros comparado as outras meninas — diz o mestre.
No clube de xadrez do Colégio Mauá, onde cursa o Ensino Fundamental, Maria Eduarda já ultrapassou as crianças da sua idade. Foi convidada a integrar a equipe de competição, sendo a mais nova do grupo. Mas não se dedica só ao esporte: também faz aulas de ginástica rítmica, dança, violino e piano. Tudo porque quer, garante a mãe.
Quando a gente está no jogo, é um jogo. Quando terminamos o jogo, vamos brincar de pega-pega
MARIA EDUARDA TISCHLER
OITO ANOS, PROMESSA DO XADREZ
— Por ela, o dia teria 48 horas — diz Tiana, que organiza a rotina e as viagens da filha para os campeonatos.
Incentivar uma criança a jogar xadrez é algo positivo, avalia a psicóloga Andréia Mendes dos Santos, pesquisadora do Laboratório das Infâncias da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), mas é importante que haja momentos de pura brincadeira.
— É muito legal que uma criança esteja usufruindo dessas possibilidades no xadrez, mas a grande questão é não tornar o jogo um peso para ela. Nós dizemos que brincar é o trabalho da criança. Quando a criança brinca, ela coloca em jogo suas hipóteses sobre a vida, testa possibilidades — observa a especialista.
Maria Eduarda brinca. Tem uma mesinha própria no escritório dos pais, repleta de papéis, canetinhas e materiais de decoração, onde confecciona bonecos e outros brinquedos. Nos campeonatos, arrasta de um lado para o outro uma boneca Baby Alive, e até a leva consigo para as partidas. Não vê muita graça quando as amigas pedem que lhes ensine o xadrez, porque sempre acaba ganhando, mas gosta de pega-pega, pular corda, correr e de ir no parquinho.
Quando fala sobre uma brincadeira que recém aprendeu, conta no detalhe suas regras, quem ganha e quem perde. Com frequência usa o termo "tecnicamente" para frisar sua explicação.
— Sardinha enlatada, por exemplo: uma pessoa se esconde em qualquer lugar. Aí, a outra pessoa, quando achar, em vez de dizer "encontrei", ela também deve se esconder junto. E a última pessoa que sobrar é a sardinha estragada, que não conseguiu chegar antes do prazo de validade. Tecnicamente, é isso — diz.
Autonomia
Entender o jogo é fundamental no xadrez, diz Maria Eduarda, porque há momentos em que o adversário oferece o empate. Pode ser que os dois estejam realmente iguais na partida, mas também pode ser uma estratégia do rival que sabe que está perdendo. Se não tiver consciência do próprio jogo, há o risco de aceitar o empate, mesmo com chances de ganhar.
— E não tem para quem perguntar se eu estou empatada, se estou perdida ou se estou ganhando. Se eu estou ganhando, não aceito o empate. Se eu estou perdida, aí aceito. Então é sempre bom estar entendendo o jogo — argumenta a menina.
De acordo com o presidente da Confederação Brasileira de Xadrez (CBX), Máximo Igor Macedo, as crianças são cada vez mais estimuladas a participarem dos campeonatos. Neles, podem até disputar contra adultos, o que as faz desenvolver ainda mais certas habilidades.
— A primeira habilidade conferida pelo xadrez é a concentração, já que um pequeno momento de desatenção pode levar à derrota. E o xadrez trabalha muito bem o ganhar e perder. Depois de cada partida, nós sempre analisamos os erros e os acertos. É muito importante que as crianças aprendam com os erros — diz Macedo, que também foi introduzido aos campeonatos de xadrez na infância.
Futuro
Embora seja um amante do xadrez, Eduardo nunca disputou um campeonato. Deslumbra-se ao ver a filha como um talento no esporte que ele tanto admira. Admite a possibilidade de a menina mudar de rumo, mas gostaria que ela se tornasse uma grande mestre do xadrez, titulação dada aos profissionais mais fortes e com alta pontuação na Federação Internacional de Xadrez (Fide).
— Talvez eu me surpreenda e encare com naturalidade se ela desistir do xadrez, mas acho que eu ficaria triste. Mas me vigio bastante para que ela realize os sonhos dela, e não os meus — diz.
Maria Eduarda garante que joga xadrez porque gosta, e não só porque o pai a incentiva. Tem sonhos próprios e projeta o futuro com o mesmo olhar estratégico que dirige a um tabuleiro.
— Quero ser grande mestre do xadrez, mas também vou fazer faculdade. Vou continuar jogando até eu ter um bom dinheiro. Não quero ter um lugar para morar realmente, porque vou estar sempre viajando. Depois vou fazer medicina e virar pediatra, e quero ter um filho, ou uma filha, ou os dois, não importa. É isso o que pretendo, dando o melhor para os meus filhos — planeja a menina.
Uma vida comum, tecnicamente.