Danificadas pelas enchentes, uma em cada cinco escolas estaduais gaúchas não têm previsão de retornar às atividades. As 452 instituições ainda inativas e sem data para abrir as portas, em balanço deste domingo (19), atendem 178.027 alunos, que representam 24% do total de matriculados na rede que, hoje, não sabem quando voltarão às salas de aula. O total de estabelecimentos estaduais afetados, o que reúne também aqueles que hoje servem de abrigo ou enfrentam problemas no transporte e no acesso, é bem maior: chega a 1.058, quase metade da rede.
A situação se repete nas escolas particulares e nas municipais espalhadas pelo Rio Grande do Sul. Entre as privadas, o Sindicato do Ensino Privado do Rio Grande do Sul (Sinepe/RS) apurou que 26 estabelecimentos, que atendem quase 11 mil alunos, foram atingidos pelas cheias. Em 18 (69,2%) deles, a inundação alcançou altura superior a 1 metro. Dez (38,4%) tiveram 100% de seu espaço físico atingido pela enchente.
Nas redes municipais, levantamento geral feito pela União dos Dirigentes Municipais de Educação no RS (Undime-RS) e respondido por 376 dos 497 municípios apontou 843 escolas danificadas, o que representa 22,5% dos 3.745 estabelecimentos existentes nessas cidades.
Nas instituições vinculadas à prefeitura de Porto Alegre, 36 escolas retomam as aulas nesta semana, 18 delas nesta segunda-feira (20). Praticamente todas as 99 escolas próprias e as 219 parceirizadas do município foram atingidas. Destas, 14 próprias e 12 conveniadas ficaram total ou parcialmente inundadas e com grande perda de infraestrutura.
Observando esse cenário, o Ministério da Educação (MEC) autorizou a flexibilização do calendário escolar no Estado. As regras para isso foram publicadas na segunda-feira (13) pelo Conselho Nacional de Educação: as instituições de Educação Básica e Ensino Superior foram dispensadas, durante o período de vigência do estado de calamidade pública no RS, de oferecer o número mínimo de horas e dias de aula previstos em lei. A carga horária poderá ser recuperada no ano seguinte, inclusive com a adoção de um currículo ininterrupto de duas séries. Além disso, atividades não presenciais ou em locais alternativos poderão ser computadas para compensação das horas/aula.
Na terça-feira (14), nota conjunta assinada por membros da Secretaria Estadual de Educação, do Ministério Público de Contas, do Tribunal de Contas do Estado (TCE-RS), do Ministério Público do Rio Grande do Sul (MPRS), da Federação das Associações de Municípios do Rio Grande do Sul (Famurs), da Undime-RS, do Conselho Estadual de Educação, da União Nacional dos Conselhos Municipais de Educação do RS (Uncme-RS) e do Sinepe, instituiu um grupo de trabalho para pensar a educação pós-cheias. O documento sinaliza a importância de apoio e repasses de recursos imediatamente, ações específicas de combate à evasão escolar e da criação de instrumentos que permitam agilidade de medidas para solucionar os danos.
Presidente da Undime-RS e secretária de Educação de Novo Hamburgo, Maristela Guasselli trabalha em duas frentes, neste momento: enquanto gestora da pasta, procura encontrar alternativas para as 11 instituições municipais afetadas na cidade, que envolvem a instalação de banheiros químicos, aluguel de prédios, em outros. A realidade de cada local e sua comunidade, como o número de alunos e servidores desalojados e a infraestrutura danificada, está sendo mapeada, para entender os desafios físicos e emocionais existentes.
Enquanto presidente da entidade que representa as redes municipais gaúchas, Maristela dialoga junto ao MEC no planejamento da reconstrução de escolas. Dentro do sistema do Plano de Ações Articuladas, as prefeituras já podem apresentar suas demandas e apontar se será necessário refazer toda a instituição ou parte dela, o que será analisado pela pasta.
— Há municípios em que há a alternativa de alugar um prédio para que a escola funcione, mas, em outros, não tem nem igreja ou salão de festas para que ela opere. Cada município está buscando alternativas. Uma possibilidade é o uso de escolas modulares, que têm uma construção muito rápida — relata a presidente da Undime-RS.
A possibilidade de fazer atividades remotas tem um desafio: equipamentos como computadores, tablets e celulares foram perdidos por muitas escolas e famílias. Por isso, a compreensão é de que é preciso estudar caso a caso e mapear as diferentes realidades existentes nessa tragédia, a fim de pensar em soluções personalizadas.
O efeito das escolas fechadas
As portas fechadas das escolas remetem quase que imediatamente ao cenário vivido durante a pandemia: com a necessidade de isolamento social, muitas instituições permaneceram mais de um ano sem atividades presenciais, enquanto estudantes e professores exerciam suas funções nos seus lares. O resultado foi uma perda de aprendizagem ainda combatida pelos sistemas de ensino. A diferença, agora, é que, para mais de 600 mil pessoas no RS, hoje a casa não serve para proteger, e há escolas que não estão esperando pelos seus alunos.
— Se eu penso na metáfora do lar, sendo a casa e a escola os dois patrimônios culturais da construção da identidade de uma criança, ambos estão afetados, e isso muda radicalmente o que vamos falar sobre aprendizagem — adverte a professora Cristiane Schnack, gerente de Desenvolvimento de Ensino da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos).
Cristiane conta que percebe na sua própria casa a dificuldade da filha, que tem atuado junto com a docente no abrigo montado pela Unisinos, em seguir estudando para o seu curso técnico, em meio à calamidade instaurada.
— Ela (a filha) dizia: “Eu fico na aula olhando aqueles conteúdos teóricos e penso, isso não faz sentido nenhum, eu não quero estar aqui. Para que aprender isso tudo, quando a necessidade básica de tantas pessoas não está sendo atendida?”. É um pouco esse paradoxo: a gente não pode deixar de aprender esses conteúdos, mas parece que eles perderam o sentido, quando agora a prioridade é o atendimento às necessidades básicas — pontua a gerente.
Quando as aulas voltarem nas escolas, Cristiane entende que será necessário pensar em como atender essas necessidades básicas das crianças, reconstruir a estrutura física de alunos, professores e funcionários afetados e retomar o senso de comunidade.
A escola tem um papel fundamental de enxugar as lágrimas e acolher, mas precisa fazer isso também olhando para frente, para encontrar caminhos de esperança.
CRISTIANE SCHNACK
Gerente de Desenvolvimento de Ensino da Unisinos
— A escola precisa ser um lugar que mostre para a criança que a gente vai seguir, que a gente vai reorganizar a sociedade, que ela pode acreditar e que a gente vai fazer juntos. A escola tem um papel fundamental de enxugar as lágrimas e acolher, mas precisa fazer isso também olhando para frente, para encontrar caminhos de esperança. Porque a volta para as casas de quem está em abrigos, vai ser muito triste. Então, a escola precisa encontrar os caminhos para auxiliar as crianças a encontrarem um lugar de futuro, e se reconhecerem pertencentes ao mundo — resume a professora.
Professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e coordenadora do Grupo de Estudos de Políticas Públicas para o Ensino Médio (Geppem), Patrícia Souza Marchand avalia que o período de fechamento das escolas será menor do que o registrado durante a pandemia, mas que qualquer tempo não planejado de falta de atividades acarreta prejuízos para a aprendizagem dos estudantes.
— Assim como na pandemia, as escolas terão que readequar, reorganizar seus planejamentos e calendários para que possam cumprir com o estabelecido para cada um dos anos e etapas da Educação Básica. A reabertura precisa estar vinculada a condições adequadas de retomada das aulas: reabrir de forma precária e improvisada acarretará mais problemas não somente para os estudantes, mas para os professores e funcionários também atingidos por esta enchente — ressalta Patrícia.
A docente observa que a enchente traz impactos na saúde mental, nas condições habitacionais da comunidade escolar, problemas econômicos, na estrutura das escolas e nas condições de transporte das cidades, entre outros – e que tudo isso trará dificuldades na retomada do processo educacional.
A cultura, a identidade destas comunidades, suas práticas culturais, vivências, relações estabelecidas, saberes já constituídos integram o currículo das escolas destas comunidades, suas crenças e valores foram atingidos com esta situação que assola o RS.
PATRÍCIA SOUZA MARCHAND
Coordenadora do Grupo de Estudos de Políticas Públicas para o Ensino Médio da UFRGS
— A questão territorial, de constituição das comunidades escolares, foi atingida. Muitos municípios e bairros foram completamente destruídos, incluindo suas escolas. A cultura, a identidade destas comunidades, suas práticas culturais, vivências, relações estabelecidas, saberes já constituídos integram o currículo das escolas destas comunidades, suas crenças e valores foram atingidos com esta situação que assola o RS. Com isto, a educação terá sim impactos — analisa.
Entre os estudantes de Ensino Médio, a preocupação é que muito assumam responsabilidades adicionais para ajudar suas famílias na reconstrução de suas casas e na recuperação financeira, o que pode resultar em uma carga maior de trabalho e menos tempo para se dedicar aos estudos.
— Isto poderá elevar taxas de evasão e abandono escolar impactando na continuidade de seus estudos. O trabalho de acompanhamento e monitoramento dos órgãos responsáveis com estes estudantes será muito importante nesta retomada — projeta a professora da UFRGS.
Outro alerta de Patrícia é que famílias terão dificuldades financeiras inclusive para garantir o transporte para a escola, o que já aconteceu durante a pandemia. Por isso, políticas públicas de transporte escolar precisarão ser pensadas. Na área da saúde mental, adolescentes podem ser particularmente afetados, adianta a pesquisadora, e poderão manifestar isso com crises de ansiedade e depressão, necessitando de acompanhamento adequado.