Leda Maria Ozório, 74 anos, planejava morar em alguma praia do Nordeste quando se aposentasse para aproveitar o tempo de descanso. Só que, aos 51 anos, se tornou avó – e tudo mudou. Passou a conviver diariamente com a neta, Júlia: desenvolveu um vínculo tão forte com a menina que ir para longe daqui não fazia mais sentido. Pouco tempo depois, nasceu sua segunda neta, Laura. E a ideia de rumar para outro Estado foi, de fato, riscada da lista de desejos para o futuro. Leda se deu conta de que tinha pela frente duas grandes oportunidades: ser uma avó presente na vida das netas, algo que sua própria mãe não conseguiu por motivos de saúde, e experimentar uma relação com as meninas bem diferente da que construiu com seus filhos.
— Temos uma ligação única, especial. Conviver tão perto delas desde os primeiros dias de vida é um privilégio. Quando eu falava em ir para o Nordeste era meio sério, meio em tom de brincadeira, mas, de qualquer forma, decidi ficar perto delas e valeu a pena. Não trocaria por nada — conta a aposentada. — Fiz o que não tinha tempo para fazer com os meus filhos, me dediquei com mais tranquilidade, sem correria. Curti das pequenas às grandes coisas do dia a dia.
Assim como Leda, muitas avós querem aproveitar a relação com os netos para agir diferente do que com seus filhos. Seja para recuperar o tempo das brincadeiras sem preocupação com a agenda de compromissos, dar conselhos certeiros sobre diferentes assuntos com a experiência que têm hoje, apostar na flexibilidade como um ponto primordial no dia a dia ou até fazer uma cabaninha com os netos e dormir todo mundo junto na cama apenas porque é divertido e aconchegante.
Para marcar o Dia dos Avós, celebrado no dia 26 de julho, Donna convidou Leda e mais duas mulheres para revelar quais caminhos escolheram para desenvolver um relacionamento íntimo, de parceria e muito amor com seus netos. As aposentadas Myriam Iris Moreira Santana, avó de quatro crianças entre dois e 10 anos, e Mirian Inês Trelles, que tem dois netos de três e seis anos, também encararam essa fase da vida como oportunidade de rever alguns posicionamentos enquanto mães e construir um vínculo firme com seus netos.
Tempo de brincar
Leda trabalhava em um banco e tinha pouca ajuda do marido na rotina com os três filhos, já que ele viajava muito por causa da profissão. Para dar conta do recado, babás e empregadas domésticas se tornaram braço direito. Ela lembra que nem sobrava tempo para levar os filhos na escola, que dirá disposição para brincar ou esticar um fim de semana na praia. Mãe solteira, Mirian encarava a mesma rotina puxada: contava com a ajuda de familiares para cuidar da única filha enquanto trabalhava como servidora pública e, à noite, ainda complementava a renda com artesanato. Já Myriam era professora e mãe de três. O marido trabalhava em home office alguns dias, ela tinha uma babá para dar um auxílio em outro e, mesmo com rede de apoio, a sensação é que mal dava para cumprir o básico. A rotina de trabalho, escola, casa, banho, janta e cama a deixava exaurida.
— Eu trabalhava muito fora e também em casa, porque professora faz muita correção (fora do horário de trabalho), avaliação, essas coisas. Mesmo com ajuda e organização, estávamos sempre correndo — conta Myriam, de 71 anos. — Sinto que meus netos são os filhos que não pude curtir porque não deu tempo. Brincar, rir, aproveitar sem tanto estresse, faço tudo com mais calma e tranquilidade. Pego na escola, levo para comer pipoca no Parcão, levo na praça.
Essa vontade de querer recuperar o tempo e fazer o que não foi possível curtir com os filhos é frequente entre os avós, explica a psiquiatra e terapeuta familiar Olga Falceto. Acaba sendo uma resposta para sua versão mãe que estava na batalha do dia a dia e, muitas vezes, pode carregar um sentimento de culpa por não ter sido tão presente. Coordenadora do Instituto da Família de Porto Alegre, Olga acredita que a relação com os netos traz mais leveza para a maturidade, porém, é preciso atenção para não confundir papéis:
— Os netos reintroduzem o prazer de brincar, ajudam as pessoas a ver a realidade com outros olhos, trazem renovação essa fase da vida e isso faz bem. O que eu sempre indico é que os avós precisam se ver como facilitadores para mães e pais poderem curtir seus filhos. Sim, podem ajudar com os cuidados, mas não abraçar toda a responsabilidade. É prazeroso, claro, mas trabalhoso também. Pai e mãe devem cuidar e curtir, e os avós apoiar e aproveitar também.
Mais flexível
Myriam nunca se considerou uma mãe rígida, embora se cobrasse muito para manter a rédea curta e ser firme na educação pensando no futuro dos filhos. Era uma preocupação constante, lembra:
— Acho que entendia meu papel social assim, era outra época, tínhamos menos informação, menos experiência. A gente se preocupa com quem nossos filhos vão se tornar, com a educação. Agora, entendo meu papel diferente, é mais leve, livre, é mais amável, curtir e aproveitar, não só educar.
Com os netos, conquistou o respeito pela parceria. E confessa: na casa da avó, a bagunça é liberada. Querem fazer festa do pijama e dormir todo mundo abraçado na cama da vó? Tudo bem! Querem fazer sessão de pipoca em dia de semana? Tudo certo também.
— Temos cumplicidade, nosso vínculo, nossos segredos, as coisas que gostamos de fazer juntos. Se ficar tudo uma zona, não me importo. Com os meus filhos, era "cuidado com isso, com aquilo, tira isso do chão" — descreve Myriam.
Quem também assumiu uma versão "light" foi a aposentada Leda, inclusive na vida adulta das netas, já que elas estão na faixa dos 20 anos. Tanto é que, até hoje, o lema do trio está gravado numa placa na casa da aposentada: "O que acontece na vó, fica na vó". Na mesma pegada de liberdade e apoio incondicional, Mirian se tornou o "ferrolho" dos netos. Há mais de um ano, todos moram no mesmo condomínio de casas. Quando eles passam perrengue, correm para o colo da aposentada.
— Eu era muito rígida com a minha filha. Quando me tornei avó, fiquei mais flexível, muito mais boba. É um amor diferente. Com 63 anos, fico no chão e eles fazem cavalinho em mim. Me dou conta hoje de que é isso que vale a pena, não se ele se sujou ou não, se fez isso ou aquilo, sabe? — reflete.
A psicóloga e gerontóloga Simone Bracht Burmeister explica que, muitas vezes, é essa relação próxima com os avós que marca o primeiro rompimento de vínculo exclusivo com os pais. As crianças sabem que podem confiar, que seus avós também são porto seguro. Essa flexibilidade nas atitudes e na relação faz parte do processo.
— Os avós ajudam a mostrar que é possível se adaptar. Que na casa da avó pode algumas coisas, mas, na da mãe, não. Na escola algumas coisas podem, outras, não. São as regras do ambiente, é um lugar de fazer mais bagunça. E muitos (avós e netos) constroem memórias das "primeiras vezes": a primeira vez que levou no futebol, na praça, que cozinhou junto. Fortalecer esse vínculo traz benefícios para ambos — diz Simone, que também é coordenadora do Núcleo de Envelhecimento do Centro de Estudos da Família e do Indivíduo de Porto Alegre.
Experiência de vida
Assim como aprenderam a ser flexíveis, as avós também sabem em quais situações vale a pena bater pé com as crianças. Leda nunca abriu mão de passar para as netas o que acredita ser essencial para sua formação enquanto cidadãs, da mesma forma que fez com as filhas. Indicou livros, filmes imperdíveis, peças de teatro – como a gaúcha Bailei na Curva, tudo para elas entenderem que precisam conhecer o mundo em que vivem para poder transformá-lo.
— Se elas são politizadas, sei que têm minha influência direta. Passei isso para meus filhos e netos, a importância da mobilização, de lutar pelo que se acredita. Esses dias, as minhas netas estavam falando de política e disseram que sou um "exemplo" para a forma que elas veem o mundo. Foi um elogio — conta Leda.
Mirian, por sua vez, não abre mão de manter o estudo como prioridade. Na pandemia, ela acompanhou o neto mais velho, Arthur, em suas aulas online – ele reveza os formatos presencial e a distância. A avó exigia dedicação mesmo a contragosto do neto:
— Aula, para mim, é sagrado. Sentar direito, prestar atenção, dessa rigidez eu não abro mão.
Quando precisa dar alguma bronca nos netos, Myriam não se esquiva. Prefere resolver os conflitos sem envolver as filhas. Até porque, ela lembra, os quatro netos têm pouca diferença de idade e agem como irmãos. Ou seja: brincam muito, mas brigam também.
— Se precisa dar alguma dura, digo na hora, explico e eles me respeitam. Adoro receber todos aqui em casa. Vou administrando, mas o mais legal é ver o quanto eles me obedecem. É um vínculo baseado no respeito e na cumplicidade — conta Myriam.
Apesar das diferenças, as três avós concordam: a experiência de vida e a maturidade que têm hoje fazem toda a diferença para a construção dessa relação com os netos. O envelhecimento por si só costuma oportunizar esses momentos de autocrítica sobre a criação dos filhos, explica a psicóloga e gerontóloga Simone, e isso pode impactar a forma como os avós se relacionam com os netos:
— Os avós geralmente são sinônimo de tolerância e de paciência porque já têm uma longa estrada. Os netos se sentem acolhidos. Muitas vezes, são o ponto de equilíbrio para os pais e mães que, naturalmente, tentam ser mais rígidos.
Apoio da família
Enquanto Leda e Myriam não tiveram as mães tão presentes na criação de seus filhos – seja pela distância ou por limitações físicas em razão da saúde –, Mirian teve uma experiência bem diferente. Mãe solo no fim dos anos 1970, ela engravidou durante a faculdade e decidiu não se casar. Foi acolhida pela mãe e pela avó em Osório, onde criou a única filha, Melania, batizada em homenagem justamente à sua avó. As quatro moraram juntas quando a menina era pequena.
Para seguir trabalhando, Mirian contou com o auxílio da mãe, que virou uma importante referência para a filha. Mas morar junto sob o mesmo teto foi um desafio: elas precisaram ter conversas recorrentes para alinhar qual papel cada uma deveria ter na vida da menina. Mesmo não morando junto da filha, Mirian percebeu que, muitas vezes, era tão dominadora quanto a mãe. E decidiu que iria se esforçar para não repetir as atitudes que a incomodavam:
Avós são o lugar de acolhimento e de segurança, mas sem substituir a referência dos pais e mães. Precisa estabelecer um lugar importante na vida da criança, mas não de substituição
OLGA FALCETO
psiquiatra e terapeuta familiar
— Criticava muito a minha mãe e me dei conta de que estava fazendo igual. Queria dominar todas as tarefas, dar banho nas crianças, ajudar a arrotar, deixar sempre no meu colo. Eu tive apoio incondicional da minha família e quero ser esse porto seguro para os meus netos, mas preciso entender o meu lugar. Sou avó e ponto.
A psiquiatra e terapeuta familiar Olga acredita que, morando ou não sob o mesmo teto, estabelecer limites e regras é essencial para a relação entre mãe e avó ser saudável – e isso impacta diretamente no relacionamento com os netos. Mas acertar as pontas nem sempre é uma tarefa fácil, ressalta a especialista:
— Vejo os avós como aqueles que carregam a história e que significam segurança e estabilidade. São o lugar de acolhimento e de segurança, mas sem substituir a referência dos pais e mães. Precisa estabelecer um lugar importante na vida da criança, mas não de substituição. Esse diálogo precisa ser aberto, franco e frequente.
Parceria para o futuro
Com a pandemia, a importância desse vínculo entre avós e netos ficou ainda mais em voga. Myriam lembra, em lágrimas, quando via as crianças pela janela de casa ou na vez que sua neta mais velha apareceu de máscara na porta de seu apartamento e ambas choraram por não poder se abraçar:
— Nenhuma de nós falou nada, só choramos. Foi muito difícil mesmo, uma situação que me marcou. Me emociono só de lembrar. Ver uma criança emocionada corta o coração.
Agora, eles já se veem semanalmente respeitando os protocolos e planejam o futuro. Querem voltar a viajar em família – Myriam já foi até para a Disney com as crianças – e curtir as datas comemorativas lado a lado.
A avó quer aproveitar cada momento para fortalecer a ligação com os netos – seu desejo é que, quando eles chegarem na adolescência, ela possa ser uma grande parceira para eles, mais do que foi com os próprios filhos.
— Quero experimentar a cumplicidade, que eles tenham confiança em mim para ser aquele colo, sabe? Ainda mais na adolescência e na juventude, que são fases complicadas – confessa Myriam.
Os avós geralmente são sinônimo de tolerância e de paciência porque já têm uma longa estrada. Os netos se sentem acolhidos. Muitas vezes, são o ponto de equilíbrio para os pais e mães que, naturalmente, tentam ser mais rígidos
SIMONE BRACHT BURMEISTER
psicóloga e gerontóloga
Avó de Arthur e Alanna, Mirian quer valorizar cada vez mais aquelas atividades que não conseguiu fazer com a própria filha, mas que ama se aventurar com os netos, como cozinhar em família. Se ficam poucos dias afastados, os netos chegam correndo no condomínio, batem à porta da avó e se agarram nas pernas de Mirian gritando: "Vovó, que saudade".
— Tudo é marcante com eles, mas esses pequenos carinhos enchem meu coração. Quero ter cada vez mais experiências que nos conectem. Hoje, penso: como nunca cozinhei ao lado da minha filha quando ela era criança? A idade faz a gente olhar para esses momentos com outros olhos — reflete Mirian.
Já Leda está em outra fase: a de curtir as netas na vida adulta. Assim que a pandemia der uma trégua, quer retomar os passeios, almoços e até o chope com as gurias. Ela também conta que não há idade para pedir o colo da vó. Tanto é que, mesmo morando a poucas quadras de distância, até hoje as duas netas querem passar férias no apartamento de Leda.
— Elas ficavam duas semanas, 10 dias, e isso já mais velhas, não crianças. A gente faz doce juntas, vemos filme, rimos. Tem coisa melhor do que dar risada com os netos? — afirma.