Antes mesmo ser um dos principais chefs do Rio Grande do Sul, Carlos Kristensen é, acima de tudo, um inquieto. E talvez essa característica tenha sido essencial para impulsioná-lo a desempenhar um papel de destaque entre os cozinheiros do Estado. Há quase 11 anos à frente do restaurante Hashi, em Porto Alegre, Kristensen assumiu para si a responsabilidade de não ser apenas um chef de cozinha, mas um pesquisador da cultura e da culinária do povo gaúcho.
Moldada pelo tempo e por suas experiências ao redor do mundo, a visão que Kristensen tem da gastronomia engloba o universo da culinária como um todo: a preocupação com o ingrediente começa com a forma e por quem ele é produzido, passa pela maneira de cozinhar e vai até o prato que cada um de seus clientes recebe na mesa.
– O trabalho do cozinheiro também está fora do restaurante. De dentro da cozinha, recebendo tudo de fornecedores, a gente não faz o nosso papel, que é muito mais do que cozinhar um prato bom. Quero saber de onde vêm os ingredientes, participar da origem dos alimentos e servi-los no restaurante – destaca Kristensen.
A fuga do senso comum e da zona de conforto que Kristensen tanto busca em seu trabalho como cozinheiro, começou lá atrás, quando resolveu largar tudo para se dedicar à gastronomia. Na época, há pouco mais de 20 anos, deixou uma promissora carreira de executivo em uma grande empresa para tentar a vida na Austrália, trabalhando de restaurante em restaurante à procura de aprendizado e experiência.
Com essa postura madura e consolidada e com o direcionamento claro que tem sobre sua carreira, Kristensen conseguiu reunir suas principais bandeiras – a importância do pequeno produtor e a valorização do ingrediente local – em um grande projeto chamado Internacionalmente Local. Desde seu lançamento, há quatro anos, o projeto vem se desenvolvendo Brasil afora, tanto nos pratos que Kristensen cria quanto nas palestras que dá.
E TUDO COMEÇOU EM IBIRAQUERA
Em 1995, a viagem de Kristensen à Austrália, programada para durar seis meses, estendeu-se por cinco anos. Ao lado dele, estava a então namorada, Luciane Pacheco, hoje esposa, sócia no restaurante e sua principal apoiadora. Naquele país, Kristensen mergulhou de cabeça na culinária local, trabalhando em restaurantes de gastronomia diversa.
– Minha vontade era conhecer a gastronomia na prática, ao mesmo tempo em que aprendia inglês. Depois de me estabilizar em Sidney, me aventurei a conhecer Singapura, Malásia, Indonésia, Índia e Tailândia, onde morei e também trabalhei em restaurantes – relembra o chef.
Depois desse período, o plano era se estabelecer definitivamente em Melbourne, cidade pela qual Kristensen se apaixonara. Mas uma temporada de verão no Brasil, em 2000, para completar burocracias e matar a saudade da família, trouxe uma nova reviravolta na vida do chef:
– Como estava acostumado a uma rotina intensa, acabei me irritando com a tranquilidade da praia. Estávamos em uma casa que temos em Ibiraquera, Santa Catarina. A partir da sugestão de um amigo para vender comida na beira da praia, aproveitei minha experiência em restaurantes japoneses e desci um dia para o Rosa, onde vendi, em questão de minutos, os sushis que havia feito.
O sucesso dos incomuns sushis na areia foi tão grande que o prato passou a ser oferecido também em eventos, até surgir a oportunidade de abrir o próprio restaurante japonês. Em uma pequena casa de pescador no centro de Garopaba, servindo sushis, sashimis, ceviches e carpaccios para um público que fazia filas para experimentar a novidade, tinha início a primeira versão do Hashi.
– O engraçado é que, desde aquele momento, eu já tinha a preocupação com o ingrediente. Pegávamos o camarão na lagoa de Ibiraquera, o polvo vivo de um cara do costão de Garopaba, o peixe do pescador que estava mais próximo – relembra Kristensen.
O PROJETO INTERNACIONALMENTE LOCAL
Em 2004, a onda de inquietude voltou e Kristensen começou a amadurecer a ideia de sair da rotina de arroz e peixe cru e voltar suas criações para uma cozinha com outros ingredientes. Cheio de ideias na cabeça, era o momento de voltar a Porto Alegre. Assim, no segundo semestre de 2005, um casarão no bairro Bela Vista, em Porto Alegre, começou a se transformar na segunda versão do restaurante Hashi, que trazia uma proposta de gastronomia contemporânea.
– O Hashi criou um momento muito importante na gastronomia da cidade e continua criando. Nosso DNA segue o mesmo, porém estamos sempre experimentando e testando novas possibilidades na cozinha – orgulha-se o chef.
Unindo a proposta da nova casa com o interesse do chef pela origem dos ingredientes, nasceu o projeto Internacionalmente Local, que tem como objetivo principal valorizar a cultura regional, o produtor local e a memória afetiva de quem se conecta com os ingredientes há muito tempo, seja no campo, seja na cozinha. A ideia é aproximar e organizar as cadeias produtivas formadas pela natureza, pelo ingrediente, pelo homem e pela cozinha.
– Nós temos um país dentro do Estado. Era preciso mapear as culturas que temos aqui, saber onde estão os italianos, os alemães, os espanhóis. Onde se fixaram, qual a sua cultura e o que comem. Me coloquei como pesquisador e ser pensante para cruzar todas essas informações e buscar o que interessa: os produtores e seus ingredientes – ressalta Kristensen.
O INGREDIENTE NO FOCO
Em sua busca por produtores locais, Carlos Kristensen conheceu Dona Romilda Grimm Hax, criadora de gansos em Prado Novo, interior do Estado. Vem dela um dos pratos mais famosos de Kristensen, o peito de ganso defumado, e é exatamente ela o case que o chef leva para debates e palestras Brasil afora. Outro ingrediente que está no foco de Kristensen é o queijo serrano, tradicional no interior do Estado mas que tem sua comercialização proibida fora do município onde é produzido. Junto dos produtores, o chef tem lutado pela liberação do produto.
Outro ingrediente que surgiu durante os estudos de Kristensen foi o feijão crioulo – na verdade, suas 40 variedades. Atualmente, ele se programa para levar o ingrediente para o cardápio do Hashi. A intenção é viabilizar a produção, trabalhar com o produtor e identificar o bom produto para quem produz, para quem cozinha e para quem come.
– No Hashi, eu busco a simplicidade de transformar um ingrediente simples em algo muito gostoso de comer. Hoje, sou muito mais orgulhoso de servir uma batata-doce no auge de sua produção do que qualquer trufa ou foie gras – conclui Kristensen.
* Conteúdo produzido por Juliana Palma