Um monte de gente comendo bem (rodízio de carboidratos), falando alto (o botão individual do volume costuma vir estragado de fábrica), gesticulando (como se houvesse a necessidade de encenar cada história contada usando as mãos), discutindo (porque quem fala sempre tem razão), xingando (a sentença geralmente começa com um "pórco") e dando uma choradinha sempre que possível (porque o botão das emoções também veio estragado de fábrica). Eis aí a descrição de um almoço típico de famílias de descendentes de italianos espalhadas pelo interior gaúcho. Cheia de clichês, sim, mas causando identificação imediata em quem é ou convive com gringos. É justamente nesse forte poder de identificação que o chamado "humor colono" investe suas fichas.
Fato é que, além das sempre lembradas fé, coragem e resiliência, há outra característica igualmente importante no legado dos italianos que chegaram ao Rio Grande do Sul desde 1875. A capacidade de rir de si mesmos, assim como a gastronomia, talvez seja o traço capaz de renovar com mais eficácia os votos com as novas gerações. Muitas vezes companheira solidária nos percalços dos italianos durante a busca pela tão sonhada "cucagna" (a sorte e a riqueza), a veia cômica se tornou uma característica legítima da cultura herdada dos imigrantes.
O cartunista Carlos Henrique Iotti, pai do Radicci, define em três tópicos os colonos que inspiram a ficção:
— Primeiro, eles sempre têm razão, são cabeças-duras. Outra característica é serem sovinas, pão-duros, o que, acho, tem a ver com a miséria que passaram. E a terceira é ser devoto de uma religião, que é a Nossa Senhora da Comida. Isso tem relação com a fome que nossos antepassados passaram. Talvez essa lista sirva também para os alemães.
Superação de um estigma
Essas características são temperos conhecidos no molho das histórias contadas por personagens que exploram um humor com "sotacón". Caso do contador de causos Badin, por exemplo, fenômeno recente. Há também aqueles gringos que fizeram sucesso com uma graça involuntária, por meio de vídeos virais na web que demonstram outra característica fortemente gringa: a espontaneidade. Um exemplo desse gênero é o veranense (de Veranópolis) Magno Sanches e seu trabalho escolar apresentando os tipos de corrida (leia com um "R" só, por favor).
Difundida pelas redes sociais, a produção do humor que representa o colono cumpre uma função dupla: ao mesmo tempo em que diverte, provoca uma sensação de nostalgia.
— Recebo muita mensagem de pessoas que moram fora do país ou de onde essa cultura não está tão presente dizendo "muito obrigado", que se lembraram do pai, da mãe, da infância. É uma forma de matar a saudade — acredita o humorista Eduardo Gustavo Christ, que interpreta Badin, o Colono.
Para o comediante, esse humor também ajuda na autoestima dos descendentes de imigrantes:
— O jeito de falar é muito marcante, e as pessoas acabam zombando. Recebo direto mensagens de pessoas dizendo que tinham vergonha de serem colonas e, agora, depois dos meus vídeos, têm orgulho.
E não são só os italianos que compõem essa onda. Diego Horbach, que interpreta o alemão Albino Wallsmaia, diz que os descendentes de imigrantes germânicos também se sentem valorizados com seu personagem. Porém, o próprio humorista já chegou a ter vergonha da língua alemã:
— Como o cara era bobo: eu não quis aprender o alemão quando era criança porque quem falava alemão no colégio era tido como colono, todo mundo dava risada da fala errada. Agora me arrependi. Tive de fazer curso de alemão quando podia ter aprendido em casa. Antigamente, o colono se sentia inferior. Hoje, o pessoal fala "sou colono, sou do Interior, tenho orgulho de ser colono".
Além do riso pautado pela identificação e da autoestima construída na valorização das raízes, o humor colono também acaba proporcionando uma aproximação da figura do imigrante com as gerações de seus descendentes. Mudam-se os contextos sociais, mas permanece a capacidade humana de rir de si mesmo.
— Era sempre um herói, altivo, trabalhador, a figura do homem e da mulher que fizeram essa região desbravando matas e construindo cidades. E aí criei um gordinho careca... Tudo para dar nos dedos dessa imagem que o italiano até então tinha — brinca Iotti.
Passado difícil
É preciso lembrar que a veia cômica dos imigrantes tem origem num passado não muito glorioso. Vânia Herédia, doutora em História das Américas pela Universidade de Gênova e professora da Universidade de Caxias do Sul (UCS), detalha que os italianos que vieram para o sul do Brasil tiveram uma vida bem mais difícil do que se propagou no imaginário dos descendentes.
— Muitas vezes conhecemos uma versão equivocada, a do imigrante que deu certo. Muitos tiveram problemas. Nesse sentido, o humor passa a ser uma estratégia.
Há exemplos de humor na literatura da imigração, destaca ela, como a do Frei Paulino de Caxias, nascido Aquiles Bernardi – o criador de Nanetto Pipetta.
— Ali (no trabalho do Frei Paulino) se percebe um certo humor, uma forma de brincar com a vida, mas ao mesmo tempo mostrar as dificuldades que os colonos passaram, principalmente nos momentos iniciais. Mostra um pouco a diferença daquilo que se encontra em uma literatura oficial, que apresenta os imigrantes como exitosos — explica Vânia. — O humor, então, passa a ser quase um instrumento de ligação. Uma maneira de contar as suas próprias histórias.
Ao mesmo tempo em que há a exaltação ao colono, houve momentos em que ele teve de se esconder. Durante o Estado Novo implantado pelo presidente Getúlio Vargas (1937-1945), quando o caráter nacionalista era marcante e os estrangeirismos, perseguidos, o italiano tornou-se uma língua proibida, assim como o alemão – o que gerou consequências sociais.
— Foi um período marcado por medo, resignação, preconceito e uma gradativa tendência ao abandono da fala dialetal italiana. Assim, à medida que os meios de comunicação ampliaram sua influência sobre as comunidades dos imigrantes, a cultura e as tradições italianas ficaram fadadas ao desaparecimento, exacerbando o estigma que começava a cercar a figura do colono italiano. Isso fomentou muita vergonha aos não citadinos, pois ser da colônia era sinônimo de inferioridade — afirma Salete Rosa, doutora e professora da UCS.
Até os anos 1970, ressalta Vânia Herédia, o termo "colono" vinha carregado de estigma:
— Era uma palavra que possuía uma série de preconceitos, vinculada à questão rural e ao trabalho manual, o que era muitas vezes confundido com o do escravo em uma sociedade colonial.
Estigma também foi um dos temas investigados por Vitalina Maria Frosi. Uma pesquisa publicada por ela em 2010 mostrou que os descendentes de italianos entrevistados sobre o tema “linguagem dialetal” relacionavam o termo “vergonha” ao passado e “orgulho” ao presente.
— Houve uma superação desse estigma, desse problema crucial da própria linguagem do ítalo-brasileiro. Há todo um processo em que o descendente do imigrante vai passando de um nível sociolinguístico a outro, até chegar aos dias atuais, em que participa de uma classe média e foi levado a superar problemas alusivos a sua própria condição. Mas, mesmo com essa passagem da vergonha ao orgulho, por que ainda temos de rir da nossa própria linguagem e dos nossos tipos humanos? — provoca a pesquisadora.
Para esmiuçar o papel do humor nesse sentido, ela cita o teórico francês François Grosjean, para quem um aspecto positivo das atitudes linguísticas é a solidariedade entre os elementos do mesmo grupo.
— As pessoas riem porque são cúmplices, porque se entendem. É preciso pertencer ao mesmo grupo étnico para entender esse humor — define Vitalina.
A produção artístico-cultural de Iotti e a caracterização do colono típico do Estado foi objeto de estudo no mestrado de Salete Rosa. Para isso, ela entrevistou pessoas tanto do meio rural quanto do urbano e atestou que a aceitação do personagem Radicci como figura representativa do colono era muito significativa:
— O Radicci influencia positivamente descendentes de imigrantes a manterem o uso da variedade dialetal italiana, como também a buscarem aprender essa língua. Além disso, o autor contribui para a minimização do estigma que cerca a fala e os costumes típicos da região, assim como mostra-se relevante para demarcar um território próprio de um determinado grupo humano ítalo-brasileiro.
Os depoimentos, diz a pesquisadora, enfatizaram a importância do personagem Radicci como um meio de registrar e manter vivas as bases étnicas da região. Trata-se de um humor com uma missão muito maior do que somente fazer rir.