Quando chegou a Caxias do Sul vindo do interior de Nova Pádua, mais precisamente de uma localidade chamada Travessão Paredes, o empresário e ator Arcângelo Zorzi, conhecido como Maneco, tinha 13 anos e sonhava em ser aluno de um dos mais tradicionais colégios da cidade. Ao finalmente conseguir a façanha – trabalhando todas as noites para pegar a mensalidade da instituição –, teve a ingrata surpresa de conhecer a intolerância cultural. Durante muito tempo, foi motivo de chacota por conta do sotaque e da condição econômica inferior à dos colegas. Mas, ao invés de reprimir a "gringuice" como boa parte dos descendentes de italianos fez em situações parecidas, Maneco partiu daquilo para criar um propósito de vida.
— Fui muito xingado e apanhei, mas foi ali que comecei a valorizar aquilo que eu era. Afinal, eu não podia me transformar em outro ser humano. Pensei: "Vou ser colono sempre, esse sotaque eu vou ter sempre" — lembra, hoje aos 62 anos e reconhecido em Caxias do Sul como dono de livraria e editora.
Essa missão também guiou Maneco na idealização de um dos grupos de teatro mais importantes na preservação da cultura italiana na região, o Miseri Coloni. A formação surgiu depois de uma provocação do amigo Pedro Parenti – artista já falecido que dá nome ao Teatro Municipal de Caxias. Na época, lá por 1980, os dois eram universitários e compartilhavam o gosto pelos diálogos animados no dialeto vêneto.
— Sempre que a gente se encontrava, só conversava em dialeto. Um dia, o Pedro me falou que tínhamos de montar um grupo de teatro. Ele já tinha apresentado algumas peças quando era seminarista. Eu, nunca. Mas logo comecei a lembrar do meu pai, de como ele e outros amigos encenavam histórias cômicas quando um vizinho fazia aniversário. Me dei conta de que aquele bom humor deles já era uma forma de fazer teatro — lembra Maneco.
Com o diferencial de encenar todas as histórias em dialeto vêneto, o Miseri Coloni ganhou notoriedade tanto na cidade quanto nos palcos improvisados das comunidades do Interior. Uma das montagens mais marcantes do grupo foi Nanetto Pipetta, sobre um personagem seminal do humor gringo, algo como um Radicci do início do século 20. Assim como o "filho" de Iotti, essa figura fictícia criada por Frei Aquiles Bernardi ficou conhecida nas páginas de um jornal protagonizando peripécias cômicas de um imigrante italiano no Brasil. Por meio do talento dos integrantes do Miseri Coloni, a peça Nanetto Pipetta permaneceu 14 anos em cartaz e foi um sucesso de público. Em Caxias, há uma estátua representando o personagem nos Pavilhões da Festa da Uva.
— As histórias do Nanetto eram conhecidas por praticamente todos os imigrantes. No Interior, todo mundo lia. Ele trazia todas as questões dos colonos — diz Maneco.
Outro momento importante na história do Miseri foi a adaptação teatral do livro O Quatrilho, de José Clemente Pozenato.
— Na época das filmagens da adaptação cinematográfica (lançada em 1995), apresentamos a peça três vezes para o diretor (Fábio Barreto). Tem pelo menos três cenas do filme que ele fez idênticas ao que encenávamos no teatro — revela.
O Miseri chegou a ter um programa semanal em uma emissora de rádio, no qual o grupo também exaltava a preservação cultural por meio do dialeto e do humor.
— O imigrante veio para cá e sofreu muito. Acho que o humor foi uma maneira de se encontrar, de dar um sentido um pouco mais alegre e humano à vida — reflete o ator.
Atualmente, Maneco não integra mais o grupo, que segue levando adiante a responsabilidade da valorização das raízes culturais por meio da arte. Enquanto novos personagens colonos surgem em plataformas como o YouTube e o WhatsApp, o Miseri mantém a dedicação no contato com as comunidades do Interior, lugares onde o dialeto ainda é mais presente.
Próxima apresentação
No dia 25 de julho, às 20h, o Miseri Coloni apresentará Mitincanto - Aventuras e Desventuras de Nanetto Pipetta no Teatro Pedro Parenti (Rua Dr. Montaury, 1.333), em Caxias do Sul. Com 18 pessoas no elenco, espetáculo mais recente do grupo propõe um olhar aos mitos tradicionais da cultura italiana e envolve música, canto e teatro. A direção cênica é de Camilo de Lélis, com direção musical de Cibele Tedesco. Ingressos custam R$ 30 e R$ 15 (estuda ntes, idosos e classe artística), na Casa da Cultura ou com integrantes do grupo.