Em conversa por telefone com a reportagem, o músico e compositor nativista Bagre Fagundes se surpreende ao descobrir a história:
– Mas ele (Miles Davis) registrou como se fosse dele?
Sim. Assinou como se a música fosse dele e de Gil Evans.
– É muita cara de pau! Se fosse nosso, não teria essa cara de pau. Tinha de ser um gringo. Nunca tinha conhecido um gringo que teve o peito de se arvorar como o dono de Prenda Minha – comenta Bagre.
Com versos que relatam uma despedida e contando com dois acordes em seu acompanhamento, a toada melancólica Prenda Minha atravessou séculos e se tornou uma das canções mais importantes da história do folclore do Rio Grande do Sul. Encantando pela simplicidade, além do teor campeiro e nostálgico, a música foi regravada inúmeras vezes por artistas e grupos dos mais variados estilos e rincões, sejam gaúchos (Osvaldir e Carlos Magrão, Wilson Paim, Araganos, Joca Martins, Kleiton e Kledir, enfim, a lista é extensa) ou de outros Estados (Flávio Venturini, Caetano Veloso, Agnaldo Rayol etc.).
Prenda Minha ainda atravessou as fronteiras nacionais e se tornou do mundo: o trompetista americano Miles Davis, um dos maiores nomes do jazz, gravou a canção no início dos anos 1960. No entanto, apesar de conter a mesma sonoridade da toada original, ele batizou sua versão instrumental como Song No. 2 e assinou a autoria da música em parceria com o pianista e arranjador Gil Evans, um de seus colaboradores mais próximos e constantes. Foi como se o lendário músico, responsável direto pela modernização do gênero do improviso, tivesse surrupiado Prenda Minha.
A histórica canção não tem um autor definido: trata-se de uma música de domínio público que integra o folclore gaúcho. A toada teria origem na imigração açoriana no Estado. Conforme informa Augusto Meyer no livro Cancioneiro Gaúcho (1952), a versão mais antiga de seus versos foi registrada na Gazeta de Pôrto Alegre, em 1880, pelo jornalista e político Carlos von Koseritz – considerado o precursor dos estudos folclóricos no Rio Grande do Sul. Meyer destaca na obra que Prenda Minha traz texto de Chimarrita, canção tradicional portuguesa também agregada ao folclore gaúcho, em sua segunda estrofe: "Chimarrita quando nova/ Uma noite me atentou/ Quando foi de madrugada/ Deu de rédea e me deixou" foi transformada em "Noite escura, noite escura, prenda minha/ Toda noite me atentou/ Quando foi de madrugada, prenda minha/ Foi-se embora e me deixou”. Também há uma variante antiga de Prenda Minha que traz versos de outra canção folclórica de Portugal, O Ladrão do Negro Melro ("O ladrão do negro melro/ Toda noite assobiou/ Pela fresca madrugada/ Bateu as asas, voou").
‘Prenda Minha’ É uma música de uma simplicidade muito grande e que possibilita infinitas maneiras de ser tocada. Nos identifica como povo. Há uma tristeza enorme nela, ao mesmo tempo em que há uma beleza na melodia que te faz bem, te acalma, te relaxa e te remete a uma coisa pensativa. A melodia é algo espetacular. É uma música que norteia minha vida. De tempos em tempos, vou me reencontrando com ela. Pelo jeito vai ser como aconteceu com o Radamés (Gnatalli, que a regravou em diversas versões).
YAMANDU COSTA
Música e compositor
Meyer conta no livro que o escritor porto-alegrense Teodomiro Tostes recolheu a letra e a música de Prenda Minha nos anos 1920, "da boca de um velho gaiteiro". Em seguida, a canção foi registrada no livro Ensaio sobre a Música Brasileira (1928), de Mário de Andrade. A partir dessa menção do folclorista paulista, Barbosa Lessa indicou no livro Nativismo – Um Fenômeno Social Gaúcho (1985) que Prenda Minha se tornou "uma espécie de hino da colônia gaúcha no Rio de Janeiro" naquela época. É justamente carioca a primeira possível gravação da música, realizada em 1935 por Almirante e Paulo Tapajós (ambos nascidos no Rio) pelo selo Victor. A presença gaúcha se deu nos arranjos do registro, que foram feitos pelo maestro porto-alegrense Radamés Gnattali. Aliás, a canção seria uma constante na trajetória de Gnattali.
– Radamés escreveu muitas variações sobre Prenda Minha. Muitas. Desde para piano solo até um dos movimentos do Concerto para Acordeom e Orquestra, de 1976 – sublinha o músico e pesquisador Arthur de Faria.
Em 1940, Ernani Braga publicou Cancioneiro Gaúcho, que continha a partitura para piano e coro de Prenda Minha, que seria incorporada ao repertório de apresentações de orquestras, bandas e corais. Na mesma década, em 1945, Pedro Raymundo, referência precursora do regionalismo gaúcho como o conhecemos hoje, gravou a sua versão. Nascido em Laguna (SC), Raymundo incorporou uma identidade gauchesca, apresentando-se de bombachas, botas e lenço no pescoço, além de mesclar composições originais, como Adeus Mariana, com canções folclóricas. Em sua tese de doutorado, A Invenção de Simões Lopes Neto: Vida Literária e Memória Histórica no Sul do Brasil, o historiador Jocelito Zalla, que pesquisa a construção da identidade e a invenção das tradições gaúchas, assinala o seguinte sobre o sucesso de Raymundo: "Não é absurdo dizer que essa experiência pavimentou o caminho para o Movimento Tradicionalista Gaúcho (MTG). É verdade que a indumentária tradicionalista também passaria por um processo de formalização e investidura simbólica, mas a apropriação intuitiva que Pedro Raymundo fazia das vestes campeiras parece ter ativado predisposições profundas do novo público das rádios locais e nacionais".
Durante a formação do MTG, Prenda Minha foi acolhida pelos folcloristas Barbosa Lessa e João Carlos Paixão Côrtes.
– Prenda Minha, junto com Boi Barroso, formava o pequeno grupo das poucas canções folclóricas do cancioneiro gaúcho que restavam quando iniciamos o movimento, no final da década de 1940 – relata Paixão.
‘Prenda Minha’ transmite a sensibilidade de uma época. Transformou-se em um ícone da alma do gaúcho por sua simplicidade e espontaneidade. Tem uma melodia muito fácil de ser lembrada, e há uma coerência grande entre melodia e texto, que também é simples. O gaúcho se sente representado por ela, pois é a expressão da essência de sua alma. Se surgisse agora, não seria mais. Mas já se consolidou assim, e por isso vai continuar sendo isso.
ANTONIO CARLOS BORGES-CUNHA
Maestro
Com o passar do tempo, a canção ajudaria a consolidar o termo "prenda" como sinônimo de mulher cetegista.
– Quando os tradicionalistas decidiram criar uma ideia de mulher gaúcha que contornasse os preconceitos da "china", lembraram-se do uso metafórico de "prenda" para a amada, tanto nessa música quanto em algumas quadras do cancioneiro popular – afirma Zalla.
Diz Paixão que a palavra "prenda", para designar a mulher gaúcha, não existia antes dos anos 1950.
– O curioso em relação a Prenda Minha é que o sentido da palavra "prenda", no século 19, era de dádiva, penhor, ou de dom natural de educação, ou, ainda, o objeto com que se presenteia alguém, como indica o Dicionário Prosódico de Portugal e Brazil. Chegaram a nós também os Jogos de Prenda, que confirmam esse sentido. Começamos a usar o termo para designar as poucas mulheres que participavam dos atos nos primórdios do tradicionalismo – detalha o folclorista.
A prenda do Farroupilha
Uma das versões mais importantes de Prenda Minha apareceu no LP Gaúchos em HI-FI (1957), gravado pelo Conjunto Farroupilha, pela gravadora Columbia. Criado em 1948, o grupo se apresentava na Rádio Farroupilha e, em sua formação original, era integrado por Inah Vital, Tasso José Bangel, Danilo Vidal, Estrela d'Alva Lopes de Castro e Alfeu de Azevedo. Como destaca a doutora em música Luciana Prass, no artigo Nas Asas da Varig e da Panair: O Conjunto Farroupilha e o Espalhamento da Música Popular Brasileira e Gaúcha nos Anos 50 e 60 do Século XX, o quinteto seria o primeiro conjunto vocal brasileiro a misturar vozes masculinas e femininas.
No começo, o Conjunto Farroupilha trazia em sua sonoridade a influência do jazz das grandes orquestras americanas e do tango dos países do Prata, além de dialogar com grupos vocais do Brasil e dos EUA. Logo, foi procurado por Barbosa Lessa e Paixão Côrtes, que propuseram a divulgação do estilo gaúcho na música, além de introduzir canções folclóricas do Estado – entre as quais estava Prenda Minha –, ao quinteto. O conjunto abraçaria a ideia, vestindo também a indumentária gaúcha em apresentações pelo mundo.
É uma canção seminal. Tem um gaúcho, que é quem canta/narra. E tem uma ilustração da paisagem. Ao mesmo tempo, tem um pouco dessa coisa da distância, do enfrentamento do novo mundo, de criar um novo lar além do Atlântico, com uma aura de nostalgia (referência às raízes portuguesas da canção).
VINÍCIUS BRUM
Músico e compositor
Nos primeiros anos do conjunto, seu carro-chefe seria a música do Estado, como no disco Gaúchos em Hi-Fi, que traz canções folclóricas recolhidas e compostas por Paixão e Lessa, a exemplo de Balaio, Negrinho do Pastoreio, Maçanico e... Prenda Minha.
– Essa música é o hino máximo do Rio Grande do Sul em termos de folclore. Gravamos por causa disso. O disco levava o título de Gaúchos em Hi-Fi, que significa em alta fidelidade. E essa alta fidelidade não poderia deixar de tera mais alta canção do Estado em termos de folclore – afirma o maestro Tasso Bangel, que tocava piano e acordeom no grupo e hoje tem 87 anos.
Apesar de não deixar de lado suas características regionais, o Conjunto Farroupilha diversificou seu repertório em seguida.
– O Farroupilha era moderno em sua estética, com arranjos vocais jazzísticos, independentemente de qual repertório interpretasse. Investiu em performances conectadas à nascente bossa nova – conta Luciana, que é coordenadora do projeto Tasso Bangel e o Aprender Eterno, do Grupo de Estudos Musicais da UFRGS, responsável por catalogar o acervo do maestro.
É uma música com muito sentimento, que vai direto ao coração. E é simples, qualquer principiante de violão pode tocá-la. Por isso que digo: o difícil de fazer é o simples. Com duas notas fazer uma música que seja cantada por um Estado inteiro... isso não é pouca coisa.
LUIZ MARENCO
Músico e compositor
Até 1993, ano de sua dissolução, o conjunto viajou por todo o mundo, realizando um rico intercâmbio musical.
– Foi o grupo escolhido para divulgar a Varig para onde a companhia inaugurava seus voos. Assim, foram para Alemanha, França, Rússia, China, Porto Rico, EUA, Venezuela, para citar alguns países. A cada viagem, traziam canções internacionais em voga à época para seus discos, caso de Liechtensteiner Polka (Kotscher/Lindt) e Clases de Cha-Cha-Cha (Ramo'n Marquez/Sergio Marmolejo), entre tantas outras – informa Luciana.
Entre esses destinos no Exterior estava Nova York, onde o Conjunto Farroupilha ficou em cartaz por várias semanas no Radio Music City Hall, em 1960. Três anos mais tarde, um jazzista norte-americano que viveu naquela grande cidade durante décadas lançaria sua versão de Prenda Minha.
Clássico no trompete
Nascido em Alton, Illinois, Miles Dewey Davis III é um dos músicos mais influentes do século 20. Durante seus 65 anos de vida, entre 1926 e 1991, o trompetista lançou discos históricos como Birth of the Cool (1957), Kind of Blue (1959) e Bitches Brew (1970), além de estar na vanguarda de boa parte dos movimentos que desenvolveram o jazz depois da II Guerra Mundial.
– Miles esteve presente e foi agente de revoluções do jazz e, por consequência, da história da música. Com 19 anos, estava no bebop, junto com Charlie Parker. Era uma figura secundária, mas estava ali. Quatro anos depois, ele criou o cool jazz, que era exatamente a antítese do bebop. No bebop rolava uma liberdade para improvisação, enquanto o cool jazz era mais reflexivo. Nos anos 1950, esteve à frente do hardbop e do jazz modal com Kind of Blue. E, depois, o jazz rock. Ele foi agente de quatro mudanças estéticas do jazz, e cada uma delas revolucionou a história da música. No bebop, ele foi coadjuvante, mas, de resto, foi linha de frente – explica o jornalista Paulo Moreira, coordenador de Música da Secretaria Municipal de Cultura e apresentador do programa Sessão Jazz na rádio FM Cultura.
O trompetista também atuava em colaboração com grandes músicos em seus grupos, como os saxofonistas John Coltrane, Cannonball Adderley e George Coleman, os pianistas Herbie Hancock e Red Garland, o contrabaixista Paul Chambers e o baterista Philly Joe Jones, entre outros.
– Miles sempre soube se cercar de músicos e arranjadores que valorizassem seu trabalho em cada momento da carreira. Individualmente, ele não era dos trompetistas mais virtuosos. Mas soube mais do que qualquer um aproveitar e fazer com que os músicos trabalhassem a seu favor – avalia o saxofonista Sérgio Karam, autor do livro Guia do Jazz (L&PM Editores, 1993).
A forma mais antiga que se conhece de ‘Prenda Minha’ é sobre um peão se despedindo. Ele fala para a prenda que está indo embora, mas ao mesmo tempo já completa dizendo que tem de ‘parar rodeio no campo do bem querer’. É como se dissesse: ‘tenho de arrebanhar mais amores para mim’. Isso pode nem ser a intenção do primeiro cantador; pode ser uma coisa agregada na estrada. Mas é uma canção de amor, uma canção triste. No fundo, a melodia é muito boa, por isso a gente não consegue menti-la: tem a tristeza, tem a dolência, tem a grandeza.
LUIZ CARLOS BORGES
Músico e compositor
Um dos colaboradores mais importantes da trajetória de Miles foi o pianista canadense Gil Evans. Contando com arranjos e orquestração de Evans, o trompetista lançou os discos Miles Ahead (1957), Porgy and Bess (1958) e Sketches of Spain (1960). O quarto registro dessa parceria seria a homenagem à música brasileira e em especial à bossa nova com Quiet Nights, de 1963. Porém, as coisas não saíram como planejado nesse álbum.
– A história do Quiet Nights é complicada. Como no começo da década de 1960 a bossa nova estava bombando, a Columbia foi para cima de Miles e Evans para que eles gravassem um disco do novo gênero brasileiro, naquele formato em que eles haviam feito o Sketches of Spain, que é um disco de música espanhola. Miles ficou meio receoso – explica Moreira.
Conforme Sérgio Karam, Quiet Nights foi um fracasso comercial e artisticamente:
– É um álbum fajuto, se comparado com os outros três realizados com a orquestração de Gil Evans. Miles nunca gostou desse disco, nem Evans. Pelo jeito, a ideia de lançar o Quiet Nights foi muito mais da gravadora, para pegar carona na onda da bossa nova, que estava no auge nos EUA da época.
Quiet Nights começou a ser gravado em julho de 1962. Dois meses antes, o pai do trompetista, Dewey Miles Davis Jr., havia morrido. Em Miles Davis – A Autobiografia (Editora Campus, 1991), o músico relata ter tentado trabalhar para não pensar na perda, além de tocar em boates e ir muito ao ginásio de boxe. Miles admite que não sentia nada em relação à música do Quiet Nights: "Eu sabia que não me empenhava no que fazíamos como antes. Tentamos passar alguma coisa da bossa nova para esse disco".
No livro, Miles expressa seu desejo de que o álbum caísse no esquecimento: “Quanto menos se falar nesse disco, melhor (...). Parecia que tínhamos gasto toda a nossa energia para nada, por isso deixamos para lá. A Columbia lançou mesmo assim, para faturar um pouco, mas, se dependesse de mim e Gil, teríamos deixado ficar no depósito de fitas”.
O lançamento de Quiet Nights estremeceria a relação de Miles com o produtor da Columbia, Teo Macero, com quem ele trabalhava na gravadora. Miles, na verdade, nunca ficou conhecido como um músico que tocasse bossa nova ou valorizasse o gênero brasileiro – ele veio ao país para se apresentar em duas ocasiões, em 1974 e 1986. No disco, a bossa se limitou às faixas Corcovado (de Tom Jobim) e Aos Pés da Cruz (Marino Pinto e José Gonçalves). Completavam o disco músicas como Wait till You See Her (Richard Rodgers e Lorenz Hart) e Once Upon a Summertime (versão de uma canção francesa chamada La Valse des Lilas, composta por Johnny Mercer, Michel Legrand, Eddie Barclay e Eddy Marnay), devidamente creditadas aos seus autores. As únicas faixas assinadas por Miles e Evans na versão original do álbum foram Song No. 1 e Song No. 2. O site oficial de Miles diz que as duas canções “são inspiradas no folclore sul-americano”.
Ela é o referencial de um tempo. Na arte, as coisas acontecem abençoadas por caracterizar o momento. Ela é tão importante porque é uma das primeiras músicas que vêm a pautar a importância da mulher gaúcha, ainda de uma forma meio borboleta, meio esvoaçante, dentro de uma linguagem meiga e açoriana. É uma música que tem origem na delicadeza. os tempos ásperos de hoje já não criam mais nada assim.
LUIZ CORONEL
Poeta e compositor
De acordo com a biografia Milestones: The Music and Times of Miles Davis (1998), de Jack Chambers, a faixa de abertura do disco, Song No. 2, "consiste em uma frase de 12 compassos, que é repetida pela orquestra várias vezes, e Davis, soando pequeno no trompete, toca a mesma frase uma única vez". É inconfundível: trata-se de Prenda Minha.
– As coincidências são muito grandes, Miles Davis faz uma versão para trompete da melodia original de Prenda Minha, sem dúvida – afirma o compositor, historiador e mestre em Literatura Vinícius Brum.
Limites da inspiração
Não há registros sobre menções de Miles Davis a Prenda Minha. Mas como uma canção folclórica gaúcha foi parar em um disco de uma das maiores lendas do jazz?
Em texto publicado no site Sul 21, o produtor cultural e colecionador de discos Zeca Azevedo especula que o trompetista e Evans tenham conhecido a melodia pelo disco Gaúchos em Hi-Fi, do Conjunto Farroupilha. Na época, tanto o grupo montado no sul do Brasil quanto o jazzista residente em Nova York integravam o elenco internacional da gravadora Columbia.
– Cheguei a essa conclusão por causa do selo do álbum do Conjunto Farroupilha e do fato de o Quiet Nights ter um tema "brasileiro". Imagino que Miles ou Evans tivessem pedido para alguém da gravadora selecionar LPs de música brasileira para escolherem o repertório de Quiet Nights. Entre esses discos, o pessoal da Columbia deve ter incluído o do grupo gaúcho. Não posso afirmar que isso (o pedido para selecionarem discos brasileiros) aconteceu com certeza, mas é muito plausível. Estou certo, no entanto, de que Miles e Evans conheceram Prenda Minha pelo LP do Conjunto Farroupilha – argumenta Azevedo.
Apesar de citar uma versão diferente da história, Paulo Moreira corrobora com a hipótese de Miles ter conhecido Prenda Minha pelo Conjunto Farroupilha:
– Tem uma hipótese que não é confirmada: a de que, no final da década de 1950 e no começo dos anos 1960, a gravação de Prenda Minha pelo Conjunto Farroupilha fez muito sucesso, não só no Brasil, mas no Exterior, e Miles teria ouvido essa versão, comprado o disco e o levado para o estúdio.
Sérgio Karam faz ressalvas:
– Tu consegues imaginar Miles ouvindo um disco do Conjunto Farroupilha? Eu não sei...
Para Karam, a versão de Prenda Minha teria partido de Evans, que é o arranjador do álbum.
‘Prenda Minha’ tem uma melodia linda dentro da sua simplicidade, que te encanta já na primeira audição. é uma música completa. Tem lirismo, tem uma parte que é muito doce, e, ao mesmo tempo, tem um trecho bastante vigoroso, forte. Acho que isso reflete o espírito no Rio Grande do Sul, a nossa forma de ser. Se alguém fosse me perguntar qual é a música mais representativa do Estado, eu não pensaria duas vezes: ‘Prenda Minha’.
RENATO BORGHETTI
Músico
– Dá a impressão de que caiu nas mãos do Evans um disco de folclore brasileiro. Algo assim. Na verdade, pode ser até um troço meio inconsciente, o cara ouviu aquilo e ficou na cabeça dele. Eu apostaria mais no arranjador como quem "ficou" com a música na cabeça. Ele tinha feito os outros três discos para o Miles para tocar fosse o que fosse. Era para usar as melodias como solista – especula Karam.
Já Luciana Prass levanta outra hipótese. Segundo a professora de Música da UFRGS, o Conjunto Farroupilha teve uma forte influência no espalhamento da bossa nova no mundo, antes mesmo dos próprios integrantes do movimento.
– O grupo carregava em sua forma de arranjar sonoridades jazzísticas e bossanovísticas que compunham seu imaginário a partir da avalanche de música norte-americana que invadia as rádios brasileiras no período do pós-II Guerra. Tanto que fizeram a primeira gravação de Samba de uma Nota Só, a pedido do próprio Tom Jobim. Então temos versões de Piazito Carreteiro e Prenda Minha que, em termos estéticos, são altamente jazzísticas. E aí está o ponto que possivelmente nos conecte a Miles Davis – argumenta Luciana.
Ela lembra que o Conjunto Farroupilha esteve em cartaz por várias semanas no Radio Music City Hall em Nova York, em 1960:
– Miles Davis poderia ter ouvido falar ou mesmo assistido aos Farroupilhas, e então decidido gravar Prenda Minha dois anos depois? O potencial jazzístico da canção estava dado desde a gravação de 1957.
O maestro Tasso Bangel, que integrou o Farroupilha, conjectura:
– Pode ser que Miles tenha se encantado com o nosso instrumental, especialmente com essa primeira frase, que parecia um jazzeado. Só que a melodia não era do Miles, e sim do folclore gaúcho. Isso ele deveria ter mencionado. Ou não, pois era uma explicação muito longa para alguém que fazia música popular contar uma história que ninguém iria entender. Como era do folclore, ele não roubou nada de ninguém, mas usou algo que era de domínio público.
Segunda apropriação
De qualquer maneira, não seria a última vez que o trompetista assinaria alguma música brasileira indevidamente. No álbum Live-Evil, de 1971, as composições das faixas Little Church (“igrejinha”), Nem um Talvez e Selim seriam atribuídas ao trompetista. Mas, na verdade, as músicas foram criadas pelo multi-instrumentista Hermeto Pascoal, que, inclusive, as toca no disco. A autoria das faixas seria corrigida em tiragens posteriores.
– Miles Davis era um gênio mau-caráter. Não foi a primeira nem a última vez que ele roubou uma música. Há uma faixa no disco Kind of Blue chamada Blue in Green, que foi composta pelo pianista Bill Evans, mas, nesse disco, foi assinada como dele – expõe Moreira.
Para o músico regionalista Luiz Carlos Borges, Miles pode não ter tido a intenção de plagiar.
– Quem sabe, ao ouvir uma vez alguém tocando a Prenda Minha, ele se agarrou tanto a essa construção melódica que tentou não copiar nem agredir com plágio, mas quis fazer uma releitura – supõe o compositor.
- Eu me criei escutando e cantando 'Prenda Minha' lá na fronteira, era bastante cantada pela minha família. A música traduz a mágoa de um gaúcho que, pelo que entendi, vai embora, mas vai ficar com saudade de certa prenda. A prenda o dispensou, sei lá o que teria dito. E aí ele fez isso aí (a canção) que passou de boca em boca no povo, que chegou ao meu tempo de guri.
BAGRE FAGUNDES
Músico e compositor
Refletindo sobre o caso, o violonista Yamandu Costa ressalta que a música é "maior do que tudo":
– Claro que existe esse lado do plágio. Tem gente que faz mal intencionado, querendo roubar uma canção ou outra. Isso é comum. Mas a música, de uma forma geral, consegue ser muito mais importante do que isso. Consegue sobreviver independentemente de autoria. São várias as ideias que se repetem às vezes, sem mesmo a gente se dar conta. Você pode fazer um plágio sem perceber. Os momentos de inspiração podem suscitar cópias naturais. Há sete notas musicais disponíveis para todo mundo usar. De vez em quando, acontece, sim, de existir uma repetição natural das coisas nesse universo.
Vinícius Brum acentua as qualidades da música folclórica em geral – que por suas características "ficam na cabeça das pessoas".
– Vamos dizer que Miles tenha recebido Prenda Minha como inspiração: isso demonstra um vigor estético da melodia, que é absolutamente simples. Em qualquer lugar do mundo em que você assobiar essa música, as pessoas poderão não saber que ela tem uma localização temporal e espacial, mas vão se identificar, pois se trata de uma melodia com uma peculiaridade e uma singeleza que fazem com que ela permaneça – diz Brum.
O depoimento do maestro Antonio Carlos Borges-Cunha vai ao encontro desse raciocínio:
– Se Miles Davis aproveitou essa música como base de uma criação, ele percebeu com sua sensibilidade artística que essa é uma manifestação da alma de um povo – diz Cunha.
Luiz Marenco arremata:
– Para tu veres como essa gauchada é forte. Até os gringos imitam a gente!
A LETRA
Vou-me embora, vou-me embora,
prenda minha,
tenho muito que fazer.
Tenho de ir parar rodeio, prenda minha,
no campo do bem-querer.
Noite escura, noite escura,
prenda minha,
toda noite me atentou.
Quando foi de madrugada, prenda minha,
foi-se embora e me deixou.
Troncos secos deram frutos,
prenda minha,
coração reverdeceu.
Riu-se a própria natureza, prenda minha,
no dia em que o amor nasceu.
Também são conhecidas ao menos duas variações da letra original:
Chimarrita, quando nova, uma noite
me atentou.
Quando foi de madrugada,
deu de rédea e me deixou.
O ladrão do negro melro, toda noite,
assobiou.
Pela fresca madrugada,
bateu as asas e voou. .