Don Cheadle não tinha a intenção de interpretar Miles Davis. Já tinha feito cinebiografias antes, encarnando Sammy Davis Jr. em "Os Maiorais" (1998), que lhe rendeu um Globo de Ouro, e o hotelier e assistente humanitário acidental Paul Rusesabagina em "Hotel Ruanda", em 2004, papel pelo qual foi indicado ao Oscar. Também já tinha interpretado o astro das quadras Earl Manigault, também conhecido como Goat, em "Doping" e o radialista Petey Greene em "Fale Comigo".
E descobriu que essas biografias hollywoodianas eram, no máximo, aproximações. – Eu me sentava ao lado de Paul Rusesabagina durante as filmagens de 'Hotel Ruanda', olhava para ele e perguntava: 'Foi assim mesmo?'; e ele respondia: 'Na verdade, não. Mas quase'.
Em abril, Cheadle chega aos cinemas dos EUA com "Miles Ahead", um filme decididamente não-biográfico sobre o trompetista e compositor. Bem diferente da narrativa linear típica, na qual um grande nome do jazz inevitavelmente é derrubado, quase sempre de vez, pela bebida ou pelas drogas (como em "Bird", "Por Volta da Meia-Noite", "Let's Get Lost" ou "O Ocaso de uma Estrela"), ele se concentra no final da década de 70, quando Davis não estava se apresentando. – Adorei esse paradoxo, essa coisa de ele ser um músico e não tocar.
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Desde a pré-estreia, em outubro passado, no Festival de Nova York, o longa vem ganhando elogios pelo retrato pouco convencional que faz do ícone. David Rooney, do Hollywood Reporter, o descreveu como "a representação ousada, mergulhada em música, de um dos maiores nomes do gênero"; já A. O. Scott, do New York Times, escreveu: "Quem quiser se adiantar e saber quais serão os possíveis candidatos ao Oscar de 2017 deve ver esse filme".
No início de março, Cheadle esteve no Four Seasons de Beverly Hills, na Califórnia, para explicar como não só se envolveu na interpretação de Miles Davis como também acabou dirigindo o filme e escrevendo o roteiro com Steven Baigelman. De jeans escuros e camiseta preta, o ator chegou de moto e, pouco depois, pediu uma tigela de aveia pura. ("Sou pré-pré-diabético", explicou.) Passou a maior parte do tempo contando histórias engraçadas sobre o músico, imitando sua voz rouca, comentando os álbuns de jazz que ouvia quando era garoto (como o clássico "Kind of Blue" e "Julian Cannonball Adderley and Strings") e cantarolando trechinhos das canções do álbum de 1973 de Herbie Hancock, "Head Hunters".
Seu envolvimento com o filme começou com um único pronunciamento ousado de alguém que nem conhecia: quando Davis, morto em 1991, entrou para o Hall da Fama do Rock and Roll, em 2006, perguntaram a Vince Wilburn, sobrinho do músico, se sairia um filme sobre a vida dele, ao que respondeu: – Claro que vai. E Don Cheadle é que vai interpretá-lo'.
A afirmação pegou o ator de surpresa, mas depois de alguns telefonemas acabou se vendo lentamente envolvido no projeto. Leu alguns roteiros, mas detestou todos. E se perguntou: que tipo de filme Davis haveria de querer fazer? Ali estava um sujeito cujo amor desmedido por carrões, armas, mulheres e cocaína fazia parte do folclore musical norte-americano, um cara que conquistou status de astro de rock tocando jazz no trompete. – Se for fazer um filme sobre Miles Davis, tem que ser um lance gângster; tem que ser sobre assalto, tem que ser maluco, tão criativo, variado e visceral como a música dele, afirma.
Não havia um roteiro com essas características, por isso Cheadle se dispôs a ajudar a fazer um com Baigelman. Para se preparar para o papel, aprendeu a imitar o sussurro tradicional da voz de Davis e assistiu a várias gravações dele trabalhando e tocando – e embora nunca tivesse dirigido um longa antes, tinha uma visão bem clara do que queria.
– Mas na hora de fazer o trabalho, ele deixa a gente voar sozinho, o que é muito libertador. Muito parecido com o que Miles fazia com os colegas da banda. Ele não gostava de ensaios; queria as coisas puras, ali, na hora. É assim que o Don trabalha, conta Emayatzy Corinealdi, que encarna a primeira mulher de Davis, Frances Taylor.
Às vezes, ele até dirigia como Miles. – Eu não chegava falando: 'Ninguém me chama de Don, hoje eu sou Miles o dia todo', mas procurava ficar o mais próximo possível do personagem, revela Cheadle, irônico.
Essa proximidade se estendeu aos números musicais. Cheadle, que tocava sax alto no colégio, aprendeu a tocar trompete com a ajuda do vencedor do Grammy e velho amigo, Wynton Marsalis.
Kristen Bell, colega de Cheadle em "House of Lies", a comédia do Showtime sobre consultores de gestão, conta que ele já estava trabalhando no projeto desde que se conheceram, há seis anos. "Eu o via voltar para o trailer praticamente entre todas as tomadas para praticar o trompete", diz ela.
Ewan McGregor é um jornalista curioso que quer entrevistar o músico recluso. Em entrevista durante o Festival de Cinema de Berlim, Cheadle afirmou: – Ter um ator branco nesse filme acabou se tornando uma obrigação financeira, comentário que gerou polêmica – mas não surpresa, principalmente durante a temporada do #OscarsSoWhite.
– Ninguém chegou a ponto de dizer que eu tinha que contratar esse ou aquele ator para fazer com que a coisa rolasse. É bem provável que chamasse um ator japonês famoso se quisesse rodá-lo no Japão, mas tinha meio que uma lista de nomes que facilitaria a entrada da grana, esclareceu ele mais tarde.
– Então não foi tipo, "Tenho que contratar o Ewan McGregor?".
– Tá certo, como se isso fosse uma coisa ruim, retruca ele, rindo.
Os próximos dois meses serão corridos para o astro: "House of Lies" volta para a quinta temporada, no dia dez de abril. O relacionamento entre seu personagem e o de Kristen Bell é considerado um dos mais disfuncionais e encantadores da TV. – Parece que estamos tirando uma partida de tênis de mesa no escuro, mas adoramos. Com certeza ele é uma das minhas pessoas favoritas habitando o planeta atualmente, elogia ela, por telefone.
Em maio, reprisará o papel de Máquina de Combate em "Capitão América: Guerra Civil", filme de que está proibido de falar, segundo as ordens da Marvel. – Os caras me acompanham em todo lugar. Se começo a falar, já vejo aparecerem pontinhos vermelhos no peito.
Em relação a "Miles Ahead", ele espera que o filme permita ao público ver o músico em toda a sua complexidade. – Ele era muito sensível e criou uma persona para se proteger. Então, lembrando-se do que um companheiro de banda de Davis comentou, acrescenta: – É o cara que você acha o mais descolado do mundo e, no entanto, não sabia se seria legal acompanhar o ritmo com o pé ou fazer isso só dentro do sapato, para ninguém ver. Tony Williams conta que ele vomitava antes de todas as apresentações que fizeram juntos e não era por que estava alto.