O Canto alegretense é considerado um hino gaudério nos quatro cantos do Estado, mas nem todos gaúchos sabem o que é "flor de tuna" ou "camoatim de mel campeiro". Hits como De chão batido, famoso na interpretação dos Serranos, também fazem multidões cantarem, no refrão, coisas como "atávico surungo", às vezes sem fazer ideia do que significa.
Com expressões rebuscadas e regionais, não seria uma má ideia que os CDs de músicas gaúchas viessem com um dicionário. João Luiz Corrêa, que teve em Um bagual corcoveador um dos maiores sucessos dos 13 discos gravados, diz que já cansou de receber ligações de curiosos e locutores de rádio perguntando o significado do título.
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Até para quem já está no ramo desde o berço, pode surgir uma palavra que pareça de outra língua. O músico Neto Fagundes, a quem a reportagem recorreu para ajudar na "tradução" de alguns trechos (confira abaixo), precisou buscar o significado do verbo "tironear", que já tinha ouvido várias vezes. Apesar do nível de dificuldade do vocabulário – que sofreu influências de povos guaranis, uruguaios, argentinos, entre outros –, ele destaca que o gaúcho tem orgulho do seu linguajar, e que "guarda ele como relíquia".
De Tauro a Zaino
Nós pedimos que alguns frequentadores do Acampamento Farroupilha, evento que segue até o dia 20 no Parque da Harmonia, lessem e interpretassem algumas músicas com termos como "tauro", "zaino", "xucrismo" e "terrunho". Com a letra de Pelos nas mãos, Ivan Dias Saldanha, 18 anos, até identificou que falava da lida de um domador, mas quase terminou o desafio com um nó na língua.
– É difícil até de ler – admitiu.
A paranaense Carla Graminho, turista no Acampamento, admitiu que não se vê cantando "em gauchês". Só dançando – até porque, ainda melhor que entender a letra é curtir a música.
Com a ajuda do músico Neto Fagundes e do poeta Albeni Carmo de Oliveira (locutor da rádio do Acampamento), além de consultas ao Dicionário gaúcho, de Alberto Juvenal Oliveira, Zero Hora traduziu alguns trechos nos quais o compositor não facilitou a vida de peões e prendas de primeira viagem:
Gritos de Liberdade
Grupo Rodeio
Minuano tironeando a venta dos tauras *** O vento minuano batendo forte no rosto do gaúcho valente (tironear: dar o puxão nas rédeas do cavalo; venta: narinas; taura: homem valente)
Relincho de baguais faíscas ao vento *** Cavalos relinchando e gerando faíscas ao bater a ferradura no chão
O brado terrunho do punho farrapo *** O grito do homem da terra representando um guerreiro da Revolução Farroupilha
Num bate cascos medonho ao relento *** Gerando um som assustador ao bater os cascos dos cavalos ao relento
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De chão batido
Pedro Neves / João Alberto Pretto / Martin Agnoletto
Atávico surungo de chão batido *** Grande baile de arrasta-pé em pista de chão batido
Xucrismo curtido na tarca do tempo *** Regionalismo admirado ao longo do tempo (tarca: pedaço de pau ou de couro em que se anota, com pequenos cortes, o número de animais marcados durante o dia)
E encilha a vida no lombo do vento *** E coloca a vida sobre o lombo do vento, fazendo analogia em que o vento é um cavalo
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Canto alegretense
Os Fagundes
Flor de tuna, camoatim de mel campeiro *** Flor de aroma suave que brota em uma planta de cacto comum na Fronteira; camoatim: pequeno inseto, da família das vespas, que produz um mel silvestre, ou campeiro
Pedra moura das quebradas do Inhanduí *** Pedra escura da área do Inhanduí, rio da região que também dá nome ao subdistrito de Alegrete que é local de origem da família Fagundes
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Pelos
José Claudio Machado
Entre potros que amansei *** Entre os cavalos novos que domei
Que sentei meu lombilho *** Em que coloquei a minha sela
Foram baios e ruanos, sebrunos e douradilhos *** Baio: cavalo com pelo amarelo; ruano: cavalo com pelo amarelo com a crina e a cola brancas ou amarelas, sebruno: cavalo que tem pelo cor de chumbo; douradilho: cavalo de pelo amarelado, com reflexos dourados quando exposto ao sol
Já quebrei muitos tubianos, alazão, preto e tordilho *** Quebrar: domar; tubiano: cavalo que apresenta manchas brancas em fundo escuro; alazão: cavalo com pelo cor de canela, amarelo-avermelhado; tordilho: cavalo com pelos salpicados de preto e branco
Gateados e lobunos, zainos também domei *** Gateado: cavalo com pelo amarelo-avermelhado; lobuno: cavalo de pelo escuro, acinzentado; zaino: cavalo castanho-escuro, sem manchas
Um rosilho prateado em malacaras andei *** Rosilho prateado: cavalo de pelo vermelho salpicado de poucos fios brancos; malacara: equino que, não sendo totalmente escuro, tem uma lista branca na testa, que vai desde o focinho até o alto da cabeça
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Um bagual corcoveador
João Sampaio, Quide Grande e Whalter Moraes
A tropa vinha estendida pastando no corredor *** Vários cavalos se deslocavam juntos, avançando
Eu empurrava culatra e também fazia fiador *** Eu cuidava da retaguarda da tropa e também fazia o papel de peão que vai à frente
Num bagual gordo e delgado arisco e corcoveador *** Bagual: cavalo arisco; Corcoveador: cavalo que dá saltos arqueando o lombo e tentando livrar-se do cavaleiro
Que se assustava da estaca e da sombra do maneador *** Que se assustava ao ver a estaca onde se amarra os cavalos e também com a sombra da correia de couro usada no freio do cavalo.
É brabo a vida de um taura que só trabalha de peão *** É difícil a vida de um gaúcho valente que só trabalha de peão
Nisso uma lebre dispara debaixo de um macegão *** Nisso uma lebre dispara debaixo do capim alto
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Bochincho
Jayme Caetano Braun
E eu sou louco por fandango *** Fandango é o baile popular, especialmente rural
Que nem pinto por quirera *** Quirera é o milho quebrado que se dá aos pintos
Atei meu zaino - longito *** Amarrei o meu cavalo - bem longe
Num galho de guamirim *** Guamirim: Arbusto de pequeno porte