Em um espaço repleto de livros e documentos antigos que carregam a memória de Porto Alegre, crianças negras estão aprendendo sobre a sua ancestralidade. Entre atividades com nomes que fazem alusão às línguas africanas, os pequenos de até 14 anos descobrem o poder da educação afrocentrada. É o projeto político-pedagógico Kilombinho de Verão, promovido pela Associação Mães Pretas, com apoio da Secretaria de Cultura da Capital, e que ocorre até sexta-feira no Arquivo Histórico Moysés Vellinho.
Lá a brincadeira é garantida, e a reflexão também. Mãos na terra, na massa e no papel marcam as oficinas realizadas pela iniciativa. Já em sua terceira edição, o Kilombinho de Verão tem como objetivo, além de fortalecer vínculos, promover a representatividade, auxiliando na construção da autoestima e identidade racial das crianças, que são filhas de mães da associação.
Eles não vão crescer achando que o negro vale menos, como eu cresci pensando
VERA SANTOS
Arquivista do Arquivo Histórico Moysés Vellinho e apoiadora do projeto.
Essência
É a segunda vez que o projeto é recebido no Arquivo Histórico, e a sua realização teve apoio da arquivista Vera Santos, que entende na pele a importância desse tipo de ação:
— Eu, enquanto criança negra, não tive essa oportunidade. Eles (as crianças) não vão crescer achando que o negro vale menos, como eu cresci pensando, e vão ser disseminadores dessa nova perspectiva.
“Balança, balança, joga o dread, joga o black, joga a trança.” Ao som de Tem Preto no Sul, do coletivo Poetas Vivos, João Henrique, nove anos, e Laura Betina, 14, se divertem enquanto dançam com os amigos. Em outra sala, Beatriz, oito anos, e Nyanga, sete, pintam máscaras africanas.
Beatriz participa do projeto desde a sua primeira edição, que foi realizada no Quilombo do Sopapo, no bairro Cristal, em 2023. Ela relata que a animação é tanta para o início das atividades, que é difícil conter a ansiedade:
— Teve uma vez que eu quase não consegui dormir, porque estava muito ansiosa para vir. Eu tenho muitos amigos aqui e gosto de todas as oficinas. A que eu mais gostei foi a Ajeum.
Ajeum é, na língua iorubá, uma palavra que significa o ato de comer juntos, em comunidade, e foi utilizada para denominar a oficina de culinária. Para a presidente da Associação Mães Pretas e organizadora do projeto, Adriana Centeno, intitular as atividades com palavras de origem africana cria uma atmosfera de representatividade:
– A nomenclatura também traz a centralidade africana. Todas as coisas aqui são interligadas propositalmente, para construir uma teia e mostrar que tudo repercute junto.
Próximos passos
Outra coisa que não é por acaso é a data em que a iniciativa ocorre. Todos os anos, o projeto é realizado em janeiro, no verão, durante as férias escolares, para entreter e, de certa forma, preparar as crianças para os desafios que vão enfrentar nos próximos períodos.
– Ao longo do ano, eles (as crianças) vão enfrentar muitas violências. Muitas vezes, são os únicos negros nos espaços em que ocupam. Então, queremos que eles sejam como pontas de lança para lidar com essas dificuldades e questionar atitudes no cotidiano – explica Adriana.
Por mais que as atividades sejam gratuitas, os profissionais envolvidos no projeto são remunerados. Neste ano, os monitores tiveram três meses de formação para organizar e aprofundar as propostas das ações, além de impulsionar a perspectiva da afro-referência. As inscrições foram realizadas por meio de um edital, disponibilizado para as participantes da Associação Mães Pretas. No ano que vem, uma das vontades das organizadoras é abrir algumas vagas para o público em geral, mas, para isso, vão precisar de mais investimentos.
— Na primeira edição, eram 20 crianças. Nesta de agora, já são 50. Nós sempre pensamos em melhorias e no reconhecimento dos profissionais que se engajam tanto com a proposta. Em 2026, esperamos dar conta das expectativas — diz a organizadora.
A expectativa, que também é alimentada pelas famílias participantes, é de cada vez mais auxiliar crianças negras a serem autoconfiantes e a reconhecerem suas origens. Mas, no fim, o projeto não ajuda só os pequenos. A própria Adriana se sente beneficiada pela iniciativa que, segundo ela, ressignifica sua infância.
– Eu, quando vivencio esse projeto, percebo uma cura da minha criança interior, que não teve essa oportunidade de reflexão – finaliza.
*Produção: Elisa Heinski