Houve época em que ninguém se atrevia a tomar mate da porta para fora de casa em Porto Alegre. E quem andasse pilchado seria, na melhor das hipóteses, exposto ao ridículo – além de correr o risco de ser parado pela polícia. Esse era o Rio Grande do Sul antes de Paixão Côrtes. Hoje, quase 70 anos depois de iniciar com amigos o que ficou conhecido como Movimento Tradicionalista Gaúcho, hábitos como tomar chimarrão e vestir bombacha não são mais motivo de vergonha, mas de orgulho.
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Homem de ação, Paixão Côrtes foi o motor da organização que culminaria na fundação do 35 CTG, ao lado de Barbosa Lessa (1929 – 2002) e outros companheiros, em 1948. Era o primeiro dos 4 mil centros de tradições gaúchas que se espraiariam pelo mundo. Natural de Santana do Livramento, onde desde guri participava das lidas diárias do campo, percorreu o Estado documentando as danças, os cantos e as indumentárias tradicionais dos mais diferentes rincões.
Nesta quarta-feira, o folclorista completa 90 anos, mas a comemoração será discreta, em família. Depois de se tornar uma das personalidades mais icônicas do Rio Grande do Sul, servindo de modelo para a estátua do Laçador de Antônio Caringi (1905 – 1981), Paixão se despediu recentemente da vida pública por tempo indefinido para cuidar da saúde. Mas seguirá "organizando e enriquecendo seu extenso acervo documental de pesquisas", conforme carta divulgada pelo filho Carlos Paixão.
– É uma alegria ver que uma ideia que nasceu há 70 anos cresceu, multiplicou-se, deixou de ser um pensamento para ser uma ação humana – celebrou Paixão Côrtes em sua última entrevista, no sábado, no Jornal do Almoço. – A ideia fecundou, e as novas gerações saberão torná-la mais importante ainda.
Entre o "extenso acervo" que o pesquisador deve organizar está um livro sobre danças tradicionais que pode alcançar 700 páginas. No entanto, mesmo sendo o folclorista mais conhecido do Estado, Paixão Côrtes não tem uma obra fácil de acessar. Muitos de seus livros estão esgotados – alguns exemplares raros custam cerca de R$ 100 em sebos da internet.
– Essa ausência de novas edições do Paixão é um dos atestados da nossa minoridade mental. A obra dele devia ser republicada regularmente, não para ser idolatrada como uma bíblia, mas para ser lida, discutida, confrontada. Aliás, assim como Barbosa Lessa, Paixão não buscava estabelecer dogmas, ao contrário, frisava que a palavra "movimento" aponta mudança, transformação – destaca o professor Luís Augusto Fischer.
O folclorista não ajudou apenas a documentar os costumes e a arte do homem do campo, reunindo também material sobre o desenvolvimento da música em Porto Alegre. Seu resgate histórico da Casa Elétrica, gravadora que funcionou na Capital no início do século 20, foi fundamental para pesquisadores de todo o país entenderem como se deu a história do disco no país e na América do Sul.
– Quem descobriu que Porto Alegre teve a segunda gravadora da América Latina, que lançou mil discos, foi Paixão Côrtes. Além disso, foi o primeiro a mapear os quicumbis, os maçambiques, toda a cultura negra do litoral norte do Estado. É um dos maiores pesquisadores do Brasil – avalia o músico e jornalista Arthur de Faria.
Para Paixão, a dedicação ao passado do Rio Grande se justifica ao ver os mais jovens cultivando a ligação com suas raízes:
– O que importa para mim é saber que as novas gerações estão dando continuidade aos valores de seus antepassados.