Há anos que boa parte dos fãs de Harry Potter se perguntam se a autora da saga, J.K. Rowling, teria se transformado em Você-Sabe-Quem. A escritora britânica tem sido comparada, há um tempo, com o maior vilão da franquia que criou, Lord Voldemort. Na trama, o antagonista queria dizimar todos aqueles que não fossem "sangue-puros", no caso, filhos de bruxos. Esses seriam denominados como "sangue-ruins".
J.K. tem acumulado um histórico de posicionamentos transfóbicos e discriminatórios à população LGBT+. O mais recente foi na segunda-feira (1º), quando ela desafiou a A Lei de Crimes de Ódio e Ordem Pública da Escócia, país onde reside, e voltou a fazer declarações contrárias aos direitos das pessoas transgênero. A autora de Harry Potter ironizou a legislação, afirmando que estava "ansiosa para ser presa" após publicar uma série de postagens no X (Twitter), nas quais descreveu casos em que mulheres transexuais são figuras públicas como homens:
"Se o que escrevi aqui se qualifica como uma ofensa sob os termos da nova lei, estou ansiosa para ser presa quando retornar ao local de nascimento do Iluminismo Escocês", declarou J.K. Ela também defendeu que a "liberdade de expressão e de crença" acabaria caso "a descrição precisa do sexo biológico fosse proibida".
Atitudes reiteradas
J.K. tem sido, ultimamente, mais lembrada por sua transfobia do que por sua obra. Em outubro de 2023, a autora foi questionada por um usuário do X (Twitter) sobre a possibilidade de ser presa por conta da Lei de Crimes de Ódio e Ordem Pública da Escócia, que entrou em vigor em 2024. Ela deu de ombros:
"Aceitaria feliz em cumprir dois anos se a alternativa for o discurso forçado e a negação forçada da realidade e da importância do sexo", escreveu na rede social. Ela acrescentou que um processo judicial seria "mais divertido do que qualquer tapete vermelho".
As falas da autora repercutiram uma matéria do jornal Daily Mail, que, na época, trouxe especialistas discutindo um eventual governo liderado pelo Partido Trabalhista no Reino Unido. Uma das possíveis medidas seria a criminalização dos ataques à identidade de gênero. No mesmo dia, J.K. compartilhou uma imagem dizendo que, em tradução livre, "repita conosco: mulheres trans são mulheres". Só que a escritora escreveu "não" na publicação, ressaltando que, conforme a visão dela, mulheres transexuais não são mulheres.
As atitudes da autora dividem os fãs de Harry Potter há anos, a ponto de alguns leitores e espectadores deixarem de consumir conteúdos relacionados à saga. Atores que atuaram nas adaptações cinematográficas da obra, como Daniel Radcliffe e Emma Watson, já se manifestaram contrários a essa postura.
Por outro lado, em entrevista ao podcast The Witch Trials of J.K. Rowling, publicado em fevereiro deste ano, ela lamentou ser "profundamente incompreendida":
— O que me interessou nos últimos anos, particularmente nas redes sociais, (é quando os fãs dizem) "você estragou seu legado, você poderia ser amada para sempre, mas escolheu dizer isso". E eu penso: "Você não poderia ter me incompreendido mais profundamente".
Em outubro de 2022, J.K. ostentou sua fortuna, estimada em mais de US$ 1,1 bilhão (R$ 5,79 bilhões), ao ser confrontada por um seguidor em relação à sua possível perda de leitores por conta da postura transfóbica. Um fã questionou: "Como você dorme à noite sabendo que perdeu todo um público que poderia comprar seus livros?". Ela respondeu: "Eu leio os meus cheques mais recentes de royalties e vejo o sofrimento ir embora rapidinho".
No mês anterior, a escritora chamou atenção por conta do lançamento de seu novo livro, The Ink Black Heart, que traz uma protagonista com ideias bem parecidas com as suas e tão polêmicas quanto. Na obra, há uma criadora de um famoso desenho animado que passa a ser perseguida e ameaçada por ser considerada transfóbica, racista e capacitista. No desenrolar da trama, a personagem é morta por um de seus críticos. Aliás, outro livro de J.K. também foi apontado como potencialmente transfóbico: Troubled Blood, de 2020, que traz uma travesti assassina em série.
No final de 2021, ela compartilhou uma matéria sobre a decisão da polícia escocesa de permitir que "indivíduos com genitais masculinos" suspeitos de estupro possam se registrar como mulheres, caso "se identifiquem como feminino" e mesmo que não tenham feito a retificação de gênero nos documentos. "Guerra é paz. Liberdade é escravidão. Ignorância é força. O indivíduo com pênis que estuprou você é uma mulher", comentou na ocasião.
Durante a pandemia, em 2020, ela compartilhou o artigo opinativo Creating a more equal post-COVID-19 world for people who menstruate ("Criando um mundo pós-COVID-19 mais igual para as pessoas que menstruam") com uma observação irônica: "'Pessoas que menstruam.’ Eu tenho certeza que costumava existir uma palavra para essas pessoas. Alguém me ajude. Wumben? Wimpund? Woomud?" (em referência à palavra "women", mulheres, em inglês).
Em dezembro de 2019, ela expressou apoio à pesquisadora Maya Forstater, que foi demitida de seu emprego no Centro de Desenvolvimento Global pelo que ela afirmou serem "ideias críticas sobre gênero". Na verdade, Forstater criticou abertamente um projeto do governo britânico que facilitaria a pessoas transgênero mudar seu sexo legalmente.
"Vista-se como quiser. Chame a si mesmo do que quiser. Durma com qualquer adulto que consinta você. Viva sua melhor vida em paz e segurança", publicou Rowling sobre o caso. "Mas forçar as mulheres a deixarem seus empregos por afirmarem que sexo é real? Eu apoio Maya."
J.K Rowling também não deixou de comentar as Olimpíadas em Paris no X (antigo Twitter). Após a luta do boxe feminino entre a argelina Imane Khelif, boxeadora que foi reprovada em teste de gênero pela Associação Internacional de Boxe (IBA), contra a italiana Angela Carini, a escritora chamou Imane de "homem", reforçando que não concorda com essa disputa.
"Assista a isto e depois explique por que você concorda com um homem batendo em uma mulher em público para seu entretenimento. Isso não é esporte. Desde a fraude do bullying em vermelho até os organizadores que permitiram que isso acontecesse, estes são os homens se deleitando com seu poder sobre as mulheres", escreveu J.K. Rowling, compartilhando um vídeo da luta que durou 46 segundos após Angela desistir do combate na primeira rodada da categoria de até 66 quilos no boxe feminino.
Desvinculação
Por conta desses posicionamentos, artistas, escritores e entidades procuraram se desvincular de J.K. nos últimos anos.
Em 2020, funcionários da editora Hachette, responsável por publicar um então lançamento infantil de J.K., The Ickabog, se recusaram a trabalhar com a obra. Em seguida, quatro escritores que eram representados pela mesma agência literária que Rowling decidiram deixar a companhia, uma vez que a Blair Partnership não quis se posicionar sobre as declarações da escritora.
Em 2020, as atitudes de J.K. motivaram mais de 200 escritores britânicos e irlandeses a se manifestaram em apoio à comunidade trans e não binária, afirmando que "vidas não binárias são válidas, mulheres trans são mulheres, homens trans são homens, direitos trans são direitos humanos".
Seguindo seus colegas britânicos, 1.200 escritores dos Estados Unidos e Canadá também assinaram uma carta aberta em apoio à população de gênero trans e não binário, incluindo nomes como Stephen King, Margaret Atwood, Neil Gaiman, John Green, entre outros. O manifesto não cita a autora de Harry Potter diretamente, mas contraria suas falas de que o gênero estaria atrelado ao sexo de nascimento.
A Warner Bros., responsável pela franquia Harry Potter e os derivados Animais Fantásticos no cinema, emitiu um comunicado em meio a uma das polêmicas, destacando que sua posição em relação à inclusão "está bem estabelecida".
"Valorizamos muito nossos contadores de histórias que dão tanto de si para dividir suas criações conosco. Reconhecemos nossa responsabilidade de mostrar empatia e defender a compreensão de todas as comunidades e pessoas, particularmente aquelas com quem trabalhamos e aqueles que alcançamos com nosso conteúdo", ponderou a nota.
Pelo início do ano passado, a escola Boswells School, localizada em Chelmsford, no leste da Inglaterra, retirou o nome da autora de um de seus prédios para rebatizá-lo. A escola optou por essa revisão após inúmeros pedidos de estudantes e funcionários, por conta dos posicionamentos da escritora. Também foi realizada uma votação com a comunidade escolar.
Até os praticantes de quadribol, esporte presente na franquia Harry Potter e disputado por fãs, quiseram se desvincular da escritora. Nos Estados Unidos, o nome foi alterado para "quadball", em julho de 2022.