Escrita e desenhada por Jean-Paul Eid, O Pequeno Astronauta orbita em um universo que tem sido bastante observado nos quadrinhos. É o dos relatos mais ou menos autobiográficos (a chamada autoficção) sobre personagens que, por algum tipo de doença ou deficiência — ou simplesmente por serem "diferentes" —, precisam enfrentar um mundo inóspito.
— Existe um desgaste da ficção — comentou certa vez o psicanalista Mário Corso, ele próprio um leitor de quadrinhos. — A marca do "eu passei por isso", do "eu estive lá", define a prosa do nosso tempo. Como se a marca do vivido sublinhasse o conteúdo.
Preconceito, empatia e inclusão são palavras-chave em obras como A Surda Absurda, na qual a estadunidense Cece Bell reconstitui a sua infância. Quando tinha quatro anos, ela sofreu meningite e perdeu a audição — imaginem o que é, para uma criança que está recém descobrindo as coisas, as pessoas e os sentimentos, e que ainda não lê, ver-se cercada pelo silêncio. Já em Fala, Maria, o mexicano Bernardo Fernández, o Bef, compartilha as angústias, os embaraços e as alegrias surgidas a partir do diagnóstico de autismo de sua filha.
Muitas HQs dessa linha foram publicadas no Brasil pela mesma editora, a Nemo, que tem no currículo Não Era Você Quem Eu Esperava, sobre síndrome de Down, A Diferença Invisível, sobre Asperger, Justin, sobre transexualidade, Duplo Eu, sobre obesidade mórbida e, agora, O Pequeno Astronauta, sobre paralisia cerebral (tradução de Renata Silveira, 152 páginas, R$ 79,80). Na mesma seara dos quadrinhos que mesclam histórias reais com memórias reinventadas, podemos incluir Descontruindo Una (sobre as traumáticas lembranças de uma inglesa que sofreu abuso sexual na infância e na adolescência), Pílulas Azuis (em que o quadrinista suíço Frederik Peeters narra seu romance com uma soropositiva) e Rosalie Lightning (no qual o estadunidense Tom Hart faz o luto da morte de sua filhinha).
— A Nemo busca sempre causar alguma emoção no leitor — afirma Eduardo Soares, editor da Nemo. — É muito improvável que você permaneça indiferente lendo qualquer uma dessas HQs que você citou, e as histórias reais têm o poder de ampliar esse impacto. Achamos importante também respeitar e celebrar a diferença, de preferência através de um olhar que faça sacudir o leitor, levando-o a refletir e a se colocar naquela realidade. Não é um exagero, portanto, dizer que a Nemo se dedica a quadrinhos que favoreçam o entretenimento e que, ao mesmo tempo, propiciem a reflexão, ao tratar de temas complexos e de grande importância social.
O Pequeno Astronauta é exemplar tanto do conceito de autoficção quanto da proposta editorial da Nemo — vale dizer que eu chorei pelo menos três vezes durante a leitura, graças ao "equilíbrio entre delicadeza e dureza", como definiu o tradutor Érico Assis. Nascido no Líbano e radicado no Canadá desde os três anos, Jean-Paul Eid, 58, conta que "essa história, ainda que ficcional, foi inspirada por terapeutas, educadoras, pais, crianças e amigos que talvez se reconheçam. Hoje meu filho tem 20 anos. Ele vive com uma paralisia cerebral. É um garoto feliz. Este livro é dedicado a Mathilde, a irmã mais velha que todos os caçulas desejam ter quando vêm ao mundo".
A trama é narrada pela jovem Juliette, a Giroette, que tem suas memórias despertadas a partir de uma visita fortuita à antiga casa onde ela passou a infância e a adolescência. A viagem no tempo nos leva à época do nascimento prematuro de seu irmãozinho, Tom — batizado assim por causa do personagem da música Space Oddity (1969), de David Bowie, o astronauta Major Tom.
Os pais estranham o lento desenvolvimento do filho — a amamentação é difícil, ele não balbucia, não se mexe, dorme o dia inteiro, diz a mãe. Após uma série de exames, vem o diagnóstico: Tom tem lesões no cérebro.
— Na verdade — explica a médica — a imagem mostra uma atrofia cerebral difusa, especialmente na região frontal. Um DMC, ou déficit motor cerebral.
— O que é isso? — pergunta o pai.
— Bom, é uma... Er..., uma paralisia cerebral.
Um silêncio ensurdecedor e uma tristeza devastadora se abatem sobre a família. Mas a vida precisa continuar, a gente se adapta, e o amor por nossos filhos vai nos fazendo aprender a transformar compreensíveis sentimentos de derrota ou até de vergonha. Os pais de Tom encontram forças para enfrentar as barreiras impostas. São marcantes os monólogos da mãe, que equilibram fúria e sensatez. Como quando, em mais uma tentativa para matricular o filho em uma creche, desabafa depois de a diretora dizer que a escolinha é inclusiva, mas que só pode aceitar os "não tão deficientes":
— Escuta bem aqui. O Tom tem tanto a oferecer à sua creche quanto vocês têm a oferecer a ele. Essa criança ensinaria uma lição para vocês sem dizer uma só palavra, só de olhar no fundo dos seus olhos. Uma lição sobre diferenças e tolerância. Não vim para solicitar um serviço, vim para lhes trazer uma oportunidade. Se acolhessem o Tom, esta creche não seria mais a mesma, seus alunos não seriam mais os mesmos, os pais deles não seriam mais os mesmos... E você, principalmente você, não seria mais essa diretorazinha com coração de pedra. E posso garantir que ao final do tempo dele aqui, talvez ele não ande, talvez não fale, mas é dele que vocês estariam mais orgulhosos.
Oito quadrinhos recomendados
- Aprendendo a Cair, de Mikael Ross: retrata, de forma ficcional, o cotidiano da Neuerkerode, uma vila na Alemanha criada em 1868 para abrigar crianças com deficiência física ou mental. (Editora Nemo)
- A Diferença Invisível, de Julie Dachez e Mademoiselle Caroline: a personagem principal, Marguerite, uma jovem de 27 anos, foi inspirada na vida de Dachez, que descobriu tardiamente ter Asperger. (Nemo)
- Duplo Eu, de Navie e Audrey Laine: a jornada de autoconhecimento sobre a obesidade mórbida aponta desafios genuinamente externos, como a indústria das hipercalorias e a hipocrisia ou a covardia de amigos e colegas. (Nemo)
- Fala, Maria, de Bef: o quadrinista mexicano conta sobre o baque e a adaptação ao diagnóstico de autismo da filha. (Skript)
- Jun, de Keum Seuk Gendry-Kim: reconstitui a história do autista sul-coreano Jun Choi desde o nascimento até se tornar compositor da "música do vento". (Pipoca & Nanquim)
- Justin, de Gauthier: com personagens antropomórficos, aborda a transexualidade, tentando responder "como é ser um menino preso em um corpo de menina?". (Nemo)
- Não Era Você que Eu Esperava, de Fabien Toulmé: casado com uma brasileira, o autor francês desnuda seus sentimentos ao descobrir que Julia, sua segunda filha, nasceu com Down. (Nemo)
- A Surda Absurda, de Cece Bell: a autora rememora como foi sua infância e sua adolescência a partir da perda da audição. (Geektopia)