
É nas folhas do carnê de crediário que um vínculo é construído entre clientes e proprietários de uma loja de roupas no bairro Esplanada, em Caxias do Sul. A fachada da Maria Matos Modas utiliza desse artifício para atrair quem passa pela rua: "Primeiro pagamento direto para 60 dias no crediário", diz o curioso letreiro.
A modalidade de crédito, que permite o parcelamento das compras em carnê e que parece ultrapassada, facilita a organização das contas de Fabiana Lima, 51 anos. A atendente de farmácia já era acostumada a comprar via crediário, por isso, quando viu que podia adquirir produtos perto de casa dessa forma, não pensou duas vezes.

Frequentemente, procura por blusas, vestidos, calças, tênis e, ainda, opções para presentear amigos e família.
— É mais prático, porque sobra limite do cartão de crédito para coisas mais urgentes. Pago em dia, até adiantado, quando dá. Para lojas de bairro funciona bastante, tem aquele clima família, você se sente bem quando vai ao lugar — revela.
O estabelecimento é gerenciado em família por Maria Elinea Soares de Matos, 51, que transformou a experiência de mais de 30 anos atuando como vendedora no comércio em um negócio próprio, em meio à pandemia da covid-19, em maio de 2020.
Em janeiro do ano seguinte, mesmo com o recém-lançado Pix, a comerciante passou a ofertar o crediário, confiando na clientela que reuniu ao longo da carreira e na vizinhança que conheceu em décadas morando no Esplanada.
— Tem Pix, tem cartão, mas o crediário foi o que nos fez crescer. O Pix ajuda muito, mas inibe do cliente vir até a loja. Quando ele paga o carnê na loja, você vende algo a mais. Claro, o crediário também tem a inadimplência, o que nos exige um jogo de cintura para avaliar o crédito do cliente e saber cobrar — confessa Maria Elinea.
Para aplicar a modalidade, ela revela que foi preciso levantar um valor em caixa. Atualmente, a proprietária da Maria Matos Modas contabiliza mais de 800 clientes que retornam todos os meses para quitarem as parcelas e, muitas vezes, acabam adquirindo outras peças.

É o caso de Silvana Cantele, 62, que se desloca do bairro Charqueadas para comprar roupas plus size ao marido.
— Todo mês que eu venho pagar a conta, tem novidade. Eu consigo me orientar melhor economicamente com o carnê do que com a fatura do cartão, sou das antigas — brinca a aposentada, que selecionava camisetas.
Além de pagar 60 dias após a compra, o parcelamento oferecido pela loja é em até cinco vezes sem juros. A abertura do crediário é feita mediante apresentação de documentos: como identidade; indicação de pessoas para referência; e, o principal, a análise de crédito pelo CPF, que vai determinar o valor limite para a compra. Caso a pessoa esteja com o "nome sujo", não é possível utilizar o método por lá, assim como na maioria dos comércios que oferecem a modalidade.
Filho de Maria Elinea, o sócio proprietário da loja, Douglas Pilonetto, 25, garante que a inadimplência é baixa. Ele estima que, nesses três primeiros meses de 2025, o faturamento com crediário tenha sido de em torno de R$ 50 mil.
— Hoje já é uma renda extra. O cliente compra mais e indica mais pessoas, o boca a boca ganha muito aqui no bairro — complementa.

Fidelização do cliente
Nos últimos anos, o crediário acabou escanteado pelos cartões de crédito e de débito, pelo dinheiro e, mais recentemente, pelo Pix. Amostragens pós-vendas das datas comemorativas do ano passado, levantadas pela Câmara de Dirigentes Lojistas (CDL) Caxias, mostram que o carnê foi pouco escolhido.
No Natal, a principal data do varejo, ele representou apenas 2,1% das vendas, muito atrás do Pix (31,9%), dinheiro (27,7%), cartão de crédito (25,5%) e cartão de débito (12,8%). Em outras ocasiões relevantes, o uso também foi escasso: Dia das Crianças (2,6%), Dia dos Pais (1,9%) e Dia das Mães (1,9%).
Uma pesquisa rápida da reportagem com 10 lojas da área central verificou que apenas três ainda oferecem o tradicional carnê. Duas estão ligadas ao ramo do vestuário e uma comercializa joias, relógios e óculos. Outras três, porém, oferecem parcelamento por meio de cartão próprio, um método mais moderno e digitalizado.
Apesar desse cenário, a loja que ainda oferece crediário é beneficiada pelo método de pagamento, segundo a coordenadora de SPC (Serviço de proteção ao crédito) e Cobrança da CDL, Rita Pereira.
Entre os pontos positivos, ela cita a captação de clientes que não possuem cartão de crédito, a concessão de parcelamento estendido, além de um relacionamento mais próximo com o comprador.
— O lojista consegue definir a taxa de juros dele para o crediário, porque, quando ele trabalha apenas com cartão, acaba tendo a taxa que é definida pela operadora, a qual varia conforme a bandeira e o volume de vendas. Ele vai ter um controle maior de todo o processo de recebimento porque define a data dos vencimentos. Mas o mais importante é que fideliza o cliente — argumenta a coordenadora de SPC e Cobrança da CDL.
É preciso, ao mesmo tempo, estabelecer critérios para uma concessão de crédito segura:
— Precisa de uma análise de crédito, entender como que está o comportamento dessa pessoa, trabalhar com uma parcela que caiba no bolso do cliente. Hoje, a CDL tem ferramentas que apoiam toda a decisão do ciclo de negócio do associado.
Apesar da entidade não ter dados específicos do número de estabelecimentos que contam com crediário, Rita Pereira observa que a modalidade é encontrada principalmente no segmento do vestuário.

"Representa 23% do faturamento mensal"
Na Ótica Lauro, o crediário resiste. O motivo é simples, de acordo com a sócia proprietária, Cátia Simone Stédile Silva, 56: a demanda.
— Já pensamos em tirar o crediário, porém, fizemos um levantamento e ele representa 23% do nosso faturamento mensal — revela.
Para mantê-lo de pé, o empreendimento conta com apoio da CDL, com treinamentos de equipe e análise de crédito, e trabalha com cobranças efetivas. Às vésperas do dia do pagamento, o cliente recebe, por WhatsApp, um lembrete sobre a conta.
— Fazemos o crediário dentro daquilo que a CDL estipula. Passamos o histórico da pessoa, através de um cadastro, e eles nos passam um score. Letra F? Não pode vender. Letra A é a melhor pontuação, crédito liberado — explica.
Cátia Simone estima que entre 80 a 100 transações, em torno de 10 são pelo crediário. O cliente também tem a possibilidade de pagar a parcela de casa, por QR Code. A inadimplência está aceitável, conforme ela: de 4% a 5%.

"Inadimplência muito abaixo do mercado"
O crediário é um pilar estratégico para o crescimento da secular Lojas Magnabosco, nas palavras do diretor Pedro Horn Sehbe, 36. O empresário atribui ao carnê um papel de facilitação e de entendimento de hábitos dos clientes para criar soluções personalizadas.
De acordo com o empresário, 22% das vendas da Magnabosco são feitas nesse formato.
— Nossa política de concessão de crédito é criteriosa, focada principalmente em análise de dados e no histórico de relacionamento. A inadimplência é inferior a 0,5%, muito abaixo dos níveis de mercado — garante.
Sehbe também diz que o crediário permite a inclusão de novos públicos e a criação de diferenciais competitivos em meio a empresas que trabalham apenas com sistemas bancários tradicionais.