“Ele parece o cientista no começo do filme, que anuncia a catástrofe e todo mundo ignora”, apontaram diversos seguidores do biólogo Atila Iamarino sobre seus vídeos no YouTube, em março, nos quais alertava sobre o coronavírus. Foi só mais uma lembrança de como o ano, cada vez mais, parecia com uma trama hollywoodiana de ficção científica.
Um vírus letal, quarentenas obrigatórias, corrida por remédios e vacinas. Quando o prefeito de São Paulo, João Doria, fez um anúncio todo de preto, com uma máscara preta, em frente a um horizonte alaranjado, outra vez retornaram as piadas: “Estamos dentro de uma história cyberpunk”.
Os paralelos com a realidade instigaram o público a procurar mais ficção científica. Em meados de maio, quando a pandemia começava a avançar de forma mais intensa no país, a editora Aleph teve um aumento considerável de vendas. Especializada em obras de ficção científica, o selo emplacou 12 livros na lista de mais vendidos da revista Veja. Sete, entre o top 10.
— Acho que é por um interesse renovado na ciência, por ela ter se tornado um tema tão abordado, mas é também um retorno de busca aos clássicos — afirma o publisher da editora, Daniel Lameira. — As pessoas estão passando por um momento de valorização da própria vida, então, vejo uma busca também em torno dos essenciais.
Figuram na lista grandes autores do gênero, como Philip K. Dick (O Homem do Castelo Alto e Blade Runner), Isaac Asimov (Eu, Robô) e Arthur C. Clarke (O Fim da Infância). Em sexto lugar, Eu Sou a Lenda, de Richard Matheson, apresenta um curioso paralelo com a atualidade: em um futuro próximo, uma impiedosa praga dizima a humanidade. Na ficção, no entanto, os infectados não morrem, apenas se transformam em monstros sedentos por sangue.
Para a escritora Aline Valek, uma das editoras da coletânea de ficção científica feminista Universo Desconstruído, o próprio teor das histórias deste gênero são apropriadas para um momento de crise como a que vivemos.
— Podemos entender como lidar com nossas angústias e medos através das escolhas dos personagens e na forma que eles encontram de sobreviver em mundos autoritários, ou em pandemias, ou em grandes catástrofes. Diante do absurdo, em que nos falta palavras para entender o que está acontecendo, a ficção é o melhor lugar para ir buscá-las.
Ascensão
Conhecida como o “patinho feio” da literatura por muitos anos, a ficção científica já não podia ser relegada ao segundo escalão mesmo antes da pandemia. O israelense Yuval Harari, autor de Sapiens, dedicou um capítulo inteiro ao assunto em seu livro 21 Lições para o Século 21, declarando que é o gênero artístico mais importante da atualidade.
“Muito pouca gente leu os artigos mais recentes nos campos do aprendizado de máquina ou da engenharia genética. Em vez disso, filmes como Matrix e Ela e séries de televisão como Westworld e Black Mirror expressam como as pessoas entendem os mais importantes desenvolvimentos tecnológicos, sociais e econômicos de nossos tempos”, justifica.
O escritor britânico Adam Roberts, que, além de escrever ficção científica, pesquisa o tema e leciona na Royal Holloway, da Universidade de Londres, afirma que o interesse pelo gênero é um reflexo da globalização e dos avanços tecnológico. Para o autor, sci-fi é a combinação de duas coisas: o encontro com o outro, seja um monstro, um alienígena ou um desconhecido, e a imaginação de novas tecnologias e seu impacto no mundo.
— Eu acredito que o que fez a ficção científica particularmente relevante atualmente é a aceleração destes elementos. A internet, o acesso fácil à aviação, a globalização e a formação de uma cultura global significam que estamos constantemente encontrando o “outro” e navegando vidas formatadas por novas tecnologias em um grau nunca visto. Eu acredito que a ficção científica é a forma mais eloquente de falar sobre essas coisas.
Além disto, uma das peculiaridades da ficção científica é voltar o olhar para o futuro. Em um momento de incerteza em inúmeras frentes, da saúde à política, e os novos rumos da tecnologia, com robôs, foguetes e inteligência artificial, há diversos autores no panteão do gênero que já imaginaram o que a humanidade ainda pode enfrentar ou construir.
— Acho que aqui no Brasil às vezes a gente tem um preconceito, mas que é algo muito mais comum, tanto na América do Norte quanto na Europa, ver a ficção científica como esse local onde o nosso lado criativo está explorando as possibilidades de futuro. Sejam as que a gente quer evitar, sejam os que a gente imagina que possa passar — destaca Daniel Lameira.
Em casos como o do escritor Júlio Verne (1828—1905), suas ideais não apenas especularam sobre novas tecnologias, de helicópteros e submarinos, como até inspiraram cientistas e engenheiros a seguir suas descrições. Mesmo invenções modernas, como o iPad, de 2010, é nada mais que uma releitura real do PADD, do seriado Star Trek (1966—1969). A ficção científica pode de fato ditar o que está por vir.
E mesmo traços do gênero que já foram considerados problemáticos, como o seu "escapismo", podem vir a calhar nos próximos anos. Adams retorna à Europa medieval, pós-Peste Negra, para recordar como tais eventos afloraram uma literatura como Decamerão, de Giovanni Boccaccio, e Os Contos de Cantuária, de Geoffrey Chaucer:
— Histórias coloridas e variadas para afastar sua mente das restrições e misérias da vida real. Eu posso imaginar algo como essa cultura definidora daqui para frente, especialmente se levar muito tempo para encontrar uma vacina contra o coronavírus. E a ficção científica pode ser muito boa em contar histórias assim; é a única arte em que podemos escapar do mundo e explorar a galáxia.