Embora não tenha a carga simbólica que o século 20 deu a 2001, muito pelo impacto do filme de Stanley Kubrick e do livro de Arthur C. Clarke, o ano de 2020, com sua atraente recorrência gráfica, já despertou aqui e ali o interesse de ficção especulativa em diversas mídias que tentaram adivinhar o que estaríamos fazendo nesta quadra distante do futuro. Do cinema de várias épocas, que situou nos anos 20 do século 21 obras como Metrópolis (1927), No Mundo de 2020 (1973) e Missão Marte (2000), aos quadrinhos, que nos anos 1990 imaginaram o próximo ano na série Visões de 2020, criada pelo escritor Jamie Delano e ilustrada por quatro artistas diferentes em 1997 e 1998. Cada uma a seu modo, essas obras arriscaram algumas previsões sobre a situação do mundo nestes anos 2020 que se avizinham: superpopulação, totalitarismo, crise global de abastecimento, viagens espaciais como uma realidade e, na maioria dessas criações, uma brutal desigualdade social que não só resistiu ao aprimoramento tecnológico da sociedade como foi intensificada por ele.
Embora a maioria dessas chamadas “profecias” não tenha se realizado plenamente, elas apontam para um ponto em comum com o mundo contemporâneo: muitas dessas questões ainda estão em pauta, mostrando que as obras especulativas não são previsões do futuro, mas diagnósticos de seus respectivos presentes.
– As distopias falam de sociedades do presente projetadas no futuro. A projeção feita pela maioria dessas obras é muito mais um pesadelo do presente do que uma previsão que possa ser comprovada hoje – comenta Rudinei Kopp, professor e pesquisador do Departamento de Comunicação Social da Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc) e autor do estudo sobre distopias Quando o Futuro Morreu? (Ed. Gazeta, 2011).
Tecnicamente, No Mundo de 2020, dirigido por Richard Fleischer e estrelado por Charlton Heston, não se passa em 2020. Um letreiro logo no início do filme situa a história em 2022, em uma Nova York superlotada em que se amontoam 40 milhões de pessoas, em um país em estado de colapso econômico e ambiental. Devido à superpopulação, ao superaquecimento e ao declínio da produção de alimentos, frutas e vegetais frescos são acessíveis apenas aos mais ricos. Cortes de carne são vendidos em butiques com pinta de joalheria. Você precisa ter muita grana para bancar o luxo de um apartamento só seu, e multidões são vistas simplesmente dormindo nas escadarias dos edifícios. O único alimento para consumo de massa é a pasta que dá ao filme seu título original, Soylent Green, supostamente fabricada com plâncton submarino.
Como em muitas distopias, o colapso econômico e social levou a novos arranjos morais que afetam as camadas mais vulneráveis. Em um mundo com gente demais, a eutanásia se tornou permitida, principalmente para os mais velhos e mais pobres. Em um diálogo com temas de uma distopia recentemente resgatada, O Conto da Aia, de Margaret Atwood, no mundo de Soylent as mulheres jovens e bonitas podem morar em bons apartamentos individuais como “mobília” do aposento – propriedade (sexual, inclusive) dos moradores, transferidas de um inquilino para o outro como sofás ou mesinhas de centro.
Missão Marte, rara ficção científica no currículo de Brian de Palma, imaginava, em 2000, o início dos voos tripulados a Marte para 20 anos no futuro, ou seja, para o ano que vem. Gary Sinise, Tim Robbins e Don Cheadle vivem astronautas a bordo das primeiras missões tripuladas a Marte. Depois que a primeira equipe desaparece após o pouso da missão inaugural, um segundo time é enviado para resgatar os demais, descobrindo a misteriosa verdade sobre os desaparecimentos.
Já a série em quadrinhos Visões de 2020 apresenta uma visão pessimista dos Estados Unidos quase duas décadas adiante de sua publicação. A sociedade americana se tornou uma distopia totalitarista em que o desinteresse progressivo pela política fez ascender ao poder uma ditadura feminista radical que implantou uma série de restrições e interdições de caráter moralista – um dos protagonistas, um antigo colecionador de pornografia, sofre até mesmo para conseguir compradores para suas coleções. Em paralelo, uma nova enfermidade chamada “a praga da foda”, altamente contagiosa, torna os infectados obcecados por sexo e enfraquecidos por orgasmos constantes. Para conter a epidemia, o governo totalitário enclausura os doentes em campos de concentração. A desigualdade social ainda é um fato, contudo, com uma comunidade de abonados vivendo numa utopia de cristal futurista, enquanto os pobres agonizam nas velhas cidades decadentes.
Preocupações que persistem
No Mundo de 2020 e Visões de 2020 são bastante contaminados pelas preocupações do tempo em que foram produzidos. O filme com Charlton Heston apresenta uma sociedade tornada distópica pela superpopulação e por um colapso ambiental, temas recorrentes na ficção científica dos anos 1970 (abordada em outras produções como Z.P.G., com Oliver North, ou Running Silent, com Bruce Dern, ambas de 1972).
As distopias falam de sociedades no presente projetadas no futuro.
RUDINEI KOPP
Professor da Unisc
– São filmes contemporâneos ou sucessivos à Conferência de Estocolmo de 1972 e ao Clube de Roma (primeiras iniciativas globais de discussão ambiental). Suas distopias estão muito baseadas numa perspectiva malthusiana e no temor da questão demográfica: o medo da “bomba da população”. No meio científico da época havia o receio de que a expansão populacional pudesse comprometer o abastecimento. Hoje sabemos que não é bem assim. O real problema encontra-se em outro lugar: na distribuição de riquezas – comenta Alfredo Luiz Suppia, professor do Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Concebida em um período em que o uso dos coquetéis antirretrovirais ainda não era amplamente difundido, Visões de 2020 apresenta, em sua praga sexual, reflexos de um momento em que a aids ainda era apresentada como uma ameaça fulminante e associada a estilos de comportamento desviantes da norma, principalmente sexual.
Em ambos os casos, nada tão drástico quanto o que foi previsto de fato aconteceu (ainda). Talvez porque, diferentemente da ficção científica clássica de Júlio Verne, não são as máquinas maravilhosas do futuro o cenário, mas a extrapolação de inquietações sociais mais amplas.
– A questão das distopias é mais interessante do que simplesmente acertar algumas especulações sobre as tecnologias do futuro. O que muitas dessas obras costumam prever é o panorama social, como, por exemplo, a regressão conservadora em questões que se consideravam superadas. Estamos vendo o retornos de visões totalitaristas ao redor do mundo, o que é uma recorrência desse tipo de obra – analisa Adriana Amaral, professora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação na Unisinos.
Desigualdade é tema do futuro
Os danos da superpopulação prevista em obras como No Mundo de 2020 ainda estão em debate para um futuro próximo, mas as estimativas do filme se comprovaram exageradas. Nova York, cenário da produção, é, de fato, a cidade mais densamente povoada dos Estados Unidos, mas sua população ainda está em 8,6 milhões de habitantes, quase cinco vezes menor do que o estimado na produção.
O alarme da “bomba demográfica” foi um tema recorrente não apenas na ficção por aqueles tempos. No livro de ensaios Rumo a 2018, publicado nos Estados Unidos em 1968 com artigos de diversos acadêmicos postulando o panorama do futuro dali a 50 anos (ou seja, no ano passado), um dos principais demógrafos do período, o professor da Universidade de Chicago Philip M. Hauser, projetava em 9,7 bilhões de habitantes a população mundial em 2018 (naquela época, o total global era de 3,7 bilhões).
O cenário ainda não se mostrou tão drástico: o mundo hoje tem 7,7 bilhões de habitantes, e a cifra preocupante de 9,7 bilhões agora é projetada pela ONU para 2050. Sendo assim, as inquietações da ficção científica passaram a se mover para outros tópicos, alguns deles, a bem dizer, presentes desde o início do gênero, como a desigualdade social e os conflitos entre as categorias em que as pessoas se dividem, da nacionalidade à idade.
– A degradação ambiental continua a ser um problema, mas a desigualdade talvez a preceda e, com certeza, tem impacto direto na degradação, na demografia e nas crises de abastecimento. Em tese, a humanidade não corre riscos de desabastecimento a curto prazo. O problema é que, enquanto uma parcela da população mundial consome muito mais do que precisa, uma larga porção do mundo não tem acesso a bens básicos, como água limpa, saneamento etc. – diz Alfredo Suppia.
A questão das distopias é mais interessante do que prever o futuro.
ADRIANA AMARAL
Professora da Unisinos
As formas renovadas com as quais o futuro separa quem tem mais de quem tem menos, para desvantagem e muitas vezes aniquilação dos últimos, são um tema central da ficção científica há muito tempo. Em Metrópolis, tanto o livro de Thea Van Harbour quanto o filme adaptado quase simultaneamente por seu marido Fritz Lang para um clássico do cinema, no mundo de 2026 os pobres trabalham no subterrâneo para garantir a sustentabilidade das ajardinadas residências no alto dos edifícios. Em Visões de 2020, a HQ, uma Nova York em quarentena constante está separada por um muro da futurista cidade da classe alta. Em No Mundo de 2020, o filme, luz elétrica e comida natural são raridades ou até mesmo lendas para a maioria da população, enquanto alguns privilegiados gozam de espaço e alimentação.
Presente na ficção, a discussão de classe havia tido sua importância reduzida nos debates acadêmicos devido à emergência das pautas identitárias, mas mesmo ela voltou a ser uma questão de interesse com a ascensão recente do conservadorismo.
– Houve uma época em que os autores que discutiam o pós-modernismo deixaram a questão de classe em segundo plano, já que, quando há subculturas pelas quais as pessoas transitam, a ideia de classe se perde. Mas, a partir dos anos 2000, começou a discussão sobre a classe dominante do Vale do Silício, e o conceito foi resgatado. E, nos últimos anos, a questão voltou interseccionada com as questões de identidade, de raça e de gênero – observa Adriana Amaral.
Ela aponta outro elemento de desigualdade que talvez venha a ocupar as distopias dos próximos anos: o conflito, com consequências políticas verificáveis, entre os jovens sem perspectivas e os mais velhos que parecem não ter mais espaço na sociedade:
A maioria das distopias tem quase nada de diferente de nossa realidade.
ALFREDO SUPPIA
Professor da Unicamp
– A questão da faixa etária provavelmente é uma categoria de desigualdade que virá a aparecer nas obras do futuro. Já se vê um conflito até no perfil de quem tem ajudado a eleger os conservadores, por exemplo.
A questão ambiental que perturbou a segunda metade do século 20 também deve continuar. Ela perpassa trabalhos como o filme A Estrada (2010), de James Mangold, adaptado da obra de Cormac McCarthy, e é um pano de fundo sempre presente em O Conto da Aia, recente adaptação para a televisão do romance de Margaret Atwood. Mesmo romances muito recentes, como A Morte e o Meteoro, de Joca Reiners Terron, lançado em 2019, já respondem no calor da hora às notícias sobre as queimadas na Amazônia.
– A distopia é um pesadelo do presente elevado à máxima potência. Completaram-se 30 anos do protocolo de Kyoto, e tudo o que se produziu de gases e poluição nesse período é maior do que o que se produziu após a Revolução Industrial. É natural que a gente volte a ter obras distópicas sobre problemas ambientais – diz Kopp.
É sintomático que, entre as ficções especulativas futuristas, as distopias – o avesso da utopia – tenham se tornado mais frequentes, vistas ora como retratos de uma realidade perigosa ora como sinais de alerta para um caminho perigoso.
– Uma coisa em relação às utopias é que elas, seja no cinema ou nos livros, são um sintoma de saúde da sociedade. Só é possível que haja distopia quando ainda há uma possibilidade de pensar o futuro – afirma Kopp.
– Acho que a maioria das distopias, ou daquilo que se vende como distopias, ou ficção científica distópica, na verdade tem muito pouco ou quase nada de diferente de nossa realidade atual. Muitas vezes, o artista consegue, por meio de sua distopia, fazer com que percebamos o quanto aquela peça de ficção já está presente na nossa cultura, no nosso modo de vida, o quanto estamos preparados para aceitar o absurdo muito em breve – contrapõe Suppia.