O sucesso das “profecias” de Júlio Verne, que antecipou em muitos de seus livros coisas como máquinas voadoras, o submarino e a viagem à Lua, criou uma ideia genérica a respeito da ficção científica, a de que seu caráter visionário se restringe a imaginar inovações tecnológicas. Sim, essa é uma de suas facetas, mas o que torna as especulações do gênero tão instigantes é a forma como ele consegue imaginar realidades sociais futuras. Às vezes provocadas por mudanças tecnológicas, claro, mas outras, por simples transformações históricas de mentalidades. E, nesse tópico, uma das autoras de maior impacto na recente história da ficção científica foi a norte-americana Ursula K. Le Guin, morta em 22 de janeiro último.
Californiana de Berkeley, Ursula K. Le Guin (o K. é de seu sobrenome Kroeber; Le Guin era o sobrenome do historiador Charles Le Guin, com quem ela se casou em 1953) começou sua carreira nos anos 1960. Vivia-se ali o auge de um modelo de ficção científica firmemente ancorado em especulações sobre a evolução tecnológica lastreadas nas chamadas “ciências duras”: física, astronomia, química. Foi para longe dessa onda que ela começou a navegar com seus primeiros trabalhos, parte do chamado Ciclo de Hainish, romances cuja vaga interconexão se dá por apresentarem aspectos diversos do mesmo universo futuro em que a Terra se engajou em uma federação planetária chamada Ekumen.
Filha de dois eminentes antropólogos, Le Guin levou para o centro de sua obra considerações etnográficas, antropológicas e sociológicas, enfocando a estranheza do contato entre civilizações, analisando minuciosamente que preconceitos podem corromper as relações entre sociedades, literalmente, de mundos diferentes. É também desse ciclo que faz parte A Mão Esquerda da Escuridão (1968), obra que consolidou seu nome no panorama da narrativa de fantasia e que levantava, há quase cinco décadas, discussões que não só ainda são relevantes como são mais discutidas hoje do que naquela época.
A Mão Esquerda da Escuridão centra-se na figura de um emissário humano enviado ao gélido planeta Gethen com a missão de fazer seus ariscos habitantes aceitarem integrar o Ekumen. Em um mundo de feição mais medieval do que tecnológica, o enviado, Genly Ai, descobre que sua tarefa é mais difícil do que havia pensado porque não consegue compreender a mentalidade dos gethenitas, seres andróginos que podem escolher e trocar seu próprio gênero – e que desafiam as preconcepções de homem heterossexual do emissário.
Sim, literatura de ficção científica discutindo fluidez de gênero há 50 anos: esse é o grau de antevisão de uma escritora como Le Guin. Anarquista e taoísta por escolha, sua obra desde o início trabalhou com alegorias e mitos. Apresentou sua própria visão simbólica dos poderes em disputa na Guerra Fria em Os Despossuídos, também parte do ciclo interplanetário de Hainish. O livro descreve a relação tumultuada entre dois planetas, Urras e Anarres (este último na verdade uma lua do primeiro). Se em Urras as questões geopolíticas são semelhantes às da Terra durante a Guerra Fria, com Estados rivais em uma luta de influências pelo controle político, em Anarres, habitado um século antes por imigrantes vindos de Urras, desenvolveu-se uma sociedade anarquista. O centro do livro é a aventura de Shevek, jovem cientista que decide migrar do anárquico Anarres para o capitalista Urras para tentar estabelecer uma ponte entre a ciência dos dois mundos – na ficção de Le Guin, em que o contato com o diferente é o mote dos conflitos, emissários e visitantes são recorrentes. Ambos os romances foram publicados no Brasil nos últimos anos pela Editora Aleph.
A autora também era famosa por suas abordagens no universo da fantasia, com a série de cinco capítulos Terramar, iniciada em 1968 e concluída em 2001. O primeiro da série, lançado no Brasil pela Arqueiro como O Feiticeiro de Terramar, narra a história de um talentoso órfão enviado para uma escola para aprender magia. Sim, a trama antecipou em muito a série Harry Potter, o que fez Le Guin criticar J.K. Rowling. Não pela semelhança das histórias, mas pela relutância da britânica em admitir que possa ter sido influenciada por autores anteriores.
Le Guin sempre se rebelou contra o que considerava a “ignorância dos críticos” em diminuir gêneros como a fantasia e a ficção científica. Seu trabalho pode ter contribuído para reduzir esse preconceito. Sua tarefa autoproclamada como escritora não era prever que tipo de propulsão alimentaria as naves das futuras viagens interplanetárias, e sim que tipo de pessoas encontraríamos no desembarque.