Por Everton Cardoso
Jornalista e crítico
A mais recente passagem da Companhia de Dança Deborah Colker pelo Rio Grande do Sul foi uma oportunidade de estar em contato não só com o que de melhor se produz em dança no Brasil, mas também com grandes questões da produção cultural de nosso tempo. A obra apresentada nos dias 19 e 20 no Teatro do Sesi, em Porto Alegre, e no dia 22 no Teatro Feevale, em Novo Hamburgo, dura pouco mais de 70 minutos e toma como ponto de partida A Sagração da Primavera, balé musicado por Igor Stravinsky e originalmente coreografado por Vaslav Nijinsky para o Ballets Russes.
Com o subtítulo Quadros da Rússia Pagã em Duas Partes, a obra europeia estreou em maio de 1913 em Paris e causou furor e choque em razão da ruptura e inovação que apresentou na música, na dança e na cena — razão pela qual é considerada paradigmática do século 20. A versão que agora o grupo brasileiro traz em releitura renova esse espírito e o transporta para perto de nós.
Se no espetáculo do século passado o que estava no palco eram ritos e elementos da cultura russa anterior à cristianização, a proposta desta nova leitura trata da relação da humanidade com a natureza a partir de elementos inspirados na estética e na cultura de povos indígenas brasileiros. Ao fazer essa ponte, portanto, se insere em uma tendência em voga no campo artístico: questionar e desafiar uma historiografia que elevou a cânone apenas a produção europeia e eurocêntrica.
Evidência bastante atual desse movimento de transformação é o que estamos vendo acontecer na Bienal de Veneza deste ano. A representação brasileira, por exemplo, renomeou o pavilhão nacional como Hãhãwpuá e elaborou uma mostra que contempla questões históricas e problematiza a perspectiva colonialista que tanto nos determina. Em sua edição número 60, o mais tradicional evento de artes visuais do mundo, aliás, tem sua emblemática fachada ocupada por uma intervenção do coletivo indigena Mahku, do Acre — sem dúvida, muito graças à curadoria de Adriano Pedrosa, diretor artístico do Masp.
Essa mesma tendência tem sido vista em palcos consagrados no Brasil, como o Theatro Municipal de São Paulo. Em maio do ano passado, a montagem da ópera Il Guarany, de Carlos Gomes, contou com contribuições indígenas de peso: Ailton Krenak assinou a concepção geral; Denilson Baniwa fez a codireção artística e elementos de sua estética compuseram a cenografia; David Vera Popygua Ju e Zahy Tentehar interpretaram os protagonistas Peri e Ceci juntamente com cantores líricos; e a Orquestra e Coro Guarani do Jaraguá Kyre'y Kuerye fez participação importante e emocionante. O resultado foi uma ode às ancestralidades indígenas brasileiras que renovou a estética de uma obra que, apesar da temática e da narrativa, bebe da tradição lírica italiana.
Em Porto Alegre, uma evidência dessa onda nos foi apresentada em outubro de 2021, quando duas serpentes coloridas foram instaladas no espelho d'água do Parque da Redenção. A obra, intitulada Entidades, de autoria do artista visual Jaider Esbell, indígena da etnia Makuxi, fazia parte da programação do Porto Alegre em Cena. A passagem da Companhia Deborah Colker pela cidade, por isso, nos insere mais uma vez num movimento vigoroso e potente de lançar luz sobre uma cultura e uma produção estética que estão diantes de nós, mas que nossos olhos, embaçados pela colonialidade, muitas vezes nos fazem ignorar.
Em Sagração, os rituais são claramente brasileiros. Além de haver elementos sonoros que o indiquem — como sons de animais, trechos com percussão, uma fala em língua indígena e a narração de uma lenda —, há nos corpos dos bailarinos algo de muito familiar. Lá estão modos de dançar com o tronco mais curvado para frente, um jeito de caminhar em passos curtos e rápidos e muitos outros elementos que costumamos ver em rituais como o Quarup, homenagem a mortos celebrada por povos da região do Xingu e muitas vezes mostrada pela televisão e pelo cinema. Frequentes são também os gestos que remetem às movimentações características de pajés, xamãs e sacerdotes.
Em termos de imagens cênicas, 'Sagração' difere das últimas duas obras trazidas pela companhia a Porto Alegre.
O espetáculo todo é visualmente organizado por longos bastões, o que dá um sentido de continuidade e estabelece uma linha mais narrativa. Na cena de abertura, é um bastão luminoso manuseado por uma pessoa vestindo um manto com capuz. Depois, aparecem diversos deles ao fundo como se fossem hastes de um leque de grande dimensão, formando um cenário. São também utilizados pelos bailarinos para fazer saltos — ora lembrando os de atletismo, ora os de balé, ora se aproximando até mesmo de pole dance — e chegam a formar uma rampa e uma jangada. Em uma das cenas, são substituídos por paus-de-chuva — instrumento musical que imita o som de chuva, claro — e marcam o ritmo. E no final, em atitude raivosa, os bailarinos jogam todos os bastões ao centro e os amarram, para que sejam alçados. A figura humana que abrira o espetáculo, então, retorna com seu cajado luminoso e encerra a narrativa de modo circular, cíclico.
Em termos de imagens cênicas, Sagração difere das últimas duas obras trazidas pela companhia a Porto Alegre. Pudemos ver em Cão sem Plumas um momento memorável na abertura, quando um bailarino solista dança usando poeira, criando um efeito interessante com a iluminação. Sem dúvida, é algo que permanece como âncora de memória da obra de 2017. Inspirada em um poema de João Cabral de Melo Neto e tratando da vida de populações ribeirinhas de Pernambuco, é marcada pela estética da seca e da vida no mangue.
Já Cura, apresentado no Teatro do Sesi em 2022, mas que estreara no ano anterior, possuía uma cena em que altas colunas de franjas de palha são manipuladas por bailarinos com malhas vermelhas de textura irregular, retomando o mito de Obaluaê, o orixá da doença e da cura, da rejeição e da adoção que tem suas feridas transformadas em pipoca. Muito da surpresa estava em braços e pernas que emergiam desses elementos cênicos de modo inesperado numa montagem que colocava fé e ciência juntas para pensar sobre as ideias de doença e cura.
No espetáculo desta semana, a diferença não foi exatamente em termos qualitativos, afinal é uma grande obra, assim como as duas anteriores. Mas não houve um momento singular de impacto. A opção foi por uma constância, uma permanência daqueles bastões, cujo objetivo parece ter sido nos conduzir e, após o final apoteótico, restar como o que segue nos conduzindo de volta ao belo espetáculo que vimos e ao profundo momento reflexivo gerado por ele. As linhas formadas por esses elementos longos, porém, passaram longe de composições em eixos paralelos tão caras à estética dominante; ao invés, sempre havia certa desordem e instabilidade nelas. Tratava-se, afinal, de falar de uma cultura ancestral que não se pauta pelo domínio da natureza, mas pela aceitação de sua imprevisibilidade como elemento integrante e estruturante do viver.
Uma das versões sobre a inspiração de Stravinsky para A Sagração da Primavera é de que teria surgido de um sonho no qual imaginava uma mulher destinada a ser sacrificada dançando até a morte, segundo declarado pelo compositor em entrevista. Esse elemento é, pois, mais uma conexão interessante com o trabalho da Cia Deborah Colker, já que, como costumam enfatizar intelectuais como Ailton Krenak e Davi Kopenawa, é nos sonhos que se centram muito da cosmovisão das culturas originárias de nosso território.
Sagração, a releitura, também se relaciona com sonhos. Por um lado, por ter sempre algo de onírico nas cenas, distanciando-se de uma organização mais racional. Por outro, é sonho enquanto projeto, já que encarna a utopia de uma existência em que o diferente seja parte de nós, em que a tal brasilidade que tanto buscamos e reivindicamos seja mais plural e diversa e menos exotizada. Fica, depois dessa experiência, a vontade de sonhar mais: quando será que, como cidade e população, abriremos nossos olhos, mentes e corações para kaingags, guaranis, xoklengs e outros grupos indígenas que dividem este espaço conosco?