Deborah Colker recorda com carinho as conversas que tinha com a saudosa Eva Sopher, eterna guardiã do Theatro São Pedro (TSP):
— Aprendi tanto com ela porque ela era "chata" (risos). Tomava conta desse teatro. Eu falava para ela: "A senhora acha que é chata? Eu sou muito pior". E ela respondia: "Eu sei! Minha filha, eu reconheço alguém como eu. E você é igual a mim: gente de teatro" (risos).
Nos últimos tempos, Deborah e sua companhia de dança já não vinham mais ao TSP, uma vez que o espaço já tinha ficado pequeno para eles. Porém, no aniversário de 165 anos do teatro, a coreógrafa não poderia deixar de se apresentar neste palco, que ela considera um dos mais importantes do Brasil. E o número, de acordo com a artista, será dedicado a dona Eva.
O espetáculo escolhido para esta celebração é Cão Sem Plumas, baseado no poema homônimo de João Cabral de Melo Neto (1920-1999) e que já esteve em Porto Alegre em 2017, ano do nascimento da montagem, mas no Teatro do Bourbon Country — ou seja, ainda é inédito no palco do TSP. A apresentação ocorre em três dias: nesta quinta-feira (29), na sexta (30) e no sábado (1º de julho), sempre às 20h (veja detalhes sobre ingressos ao final do texto).
A decisão de Deborah de trazer Cão Sem Plumas para celebrar o aniversário do São Pedro vai ao encontro da brasilidade, utilizando um texto que fala do cotidiano de uma parcela da população do país para festejar um palco que é tão importante para o cenário da arte nacional. E o poema, que acompanha o percurso do rio Capibaribe, de Pernambuco, na visão da coreógrafa, segue potente e atual, mesmo tendo sido publicado em 1950.
— O texto do João Cabral é de uma universalidade absurda, porque ele está falando do Capibaribe, mas também de todos os rios do mundo. Ele está falando dos ribeirinhos que vivem lá em Pernambuco, mas também de todos os excluídos, todos os marginalizados. Ele fala do descaso da natureza, do ser humano, da geografia. Esse poema é um manifesto, uma denúncia — ressalta Deborah.
Descendo o rio
Ao deparar com o poema de João Cabral e decidir adaptar o texto em um espetáculo, Deborah também quis mergulhar na vida ao redor do Capibaribe. Foram três anos de estudo, até que ela e toda a sua companhia de dança, durante 24 dias, em 2016, partiram para descer o rio, conhecendo a realidade dos ribeirinhos, dando oficinas, ao mesmo tempo em que aprendiam a cultura daquelas pessoas, desde as suas histórias até as danças típicas, como o maracatu, o caboclinhos e o cavalo-marinho.
E, mesmo com toda essa riqueza cultural, a pobreza da população ribeirinha, o descaso das elites e a vida no mangue, presentes no poema de João Cabral, seguem existindo na localidade, como se os mais de 60 anos que separam o texto e a visita de Deborah ao local pouco tivessem agido:
— O João Cabral e o poema dele foram meus timoneiros nessa viagem. Parecia que ele estava ali, falando aquelas palavras, naquela hora.
O trajeto de Deborah e da companhia de dança foi acompanhado pelo cineasta pernambucano Cláudio Assis (Amarelo Manga), que captou imagens da realidade ribeirinha, e estes registros são projetados no fundo do palco, dialogando com os corpos dos 14 bailarinos em cena. Assim, o espetáculo é uma mescla entre cinema, poesia e, claro, dança, tendo o catador de caranguejo como uma de suas figuras centrais.
— A minha ideia foi, com a dança, poder construir esse homem-caranguejo, esse caranguejo-homem, fazer ele vivenciar esse lugar na dor, na tragédia, mas também na força e até na alegria, porque sem alegria ninguém vive. A gente foi costurando tudo isso, montando esse quebra-cabeça — detalha Deborah.
Começo
Como dito no começo do texto, o envolvimento de Deborah e sua companhia com o Theatro São Pedro e com dona Eva começou há tempos — e tem até uma história curiosa. Velox, espetáculo que inaugura a linguagem ímpar do grupo e ajuda a popularizar essa dança no Brasil, fez sua estreia nacional em 1995, justamente neste templo da cultura gaúcha.
— Se tinha 40 pessoas na plateia era muito (risos). No entanto, tocou um tambor, foi de uma importância... O começo é assim! É que nem o Sex Pistols, banda que mudou a história do punk rock no mundo. Quantas pessoas tinham naquele show? 20 pessoas! É que nem a Santa Ceia: só tinham 13 pessoas, com Jesus (risos).
Por Velox, tempos depois, Deborah foi convidada para o Cirque du Soleil, onde concebeu, em 2009, o espetáculo Ovo. Assim, aquela apresentação com uma plateia minguada há quase 30 anos, no TSP, foi um degrau para que a artista se consagrasse mundialmente. E, por isso, ela acredita que é uma honraria fazer parte da celebração do aniversário do icônico teatro gaúcho, ainda mais que seu grande parceiro de companhia, o diretor executivo João Elias, é de Pelotas.
— O Brasil precisa de memória, comemorar essas datas. A gente precisa lembrar, porque a memória não é uma coisa que te aprisiona, não é nostalgia. É história. Qual é a sua história? De onde você vem? Como a coisa se constrói? E aí você fica mais forte para o futuro, para enlouquecer. E, para isso, eu tenho que ter uma história forte.
Cão Sem Plumas
- Nesta quinta-feira (29), na sexta (30) e no sábado (1º/7), às 20h, no Theatro São Pedro (Praça Mal. Deodoro, s/n°), em Porto Alegre
- Ingressos a partir de R$ 50 (galeria). Ponto de venda sem taxa: bilheteria do Theatro São Pedro. Ponto de venda com taxa: pelo site da instituição
- Duração: 70 minutos. Classificação: livre