Em Cão Sem Plumas, espetáculo anterior de Deborah Colker, baseado no poema homônimo de João Cabral de Melo Neto, ela fala sobre o inadmissível, a raiva e a revolta. Agora, em Cura, estes sentimentos abrem espaço para as dualidades. O grito e o silêncio. A luta e a aceitação. A fé e a ciência. A vida e a morte. E essas contradições estão sendo trazidas pela coreógrafa a Porto Alegre, em duas apresentações no Teatro do Sesi (Av. Assis Brasil, 8.787), na sexta-feira (18), às 21h30min, e no domingo (20), às 19h.
A obra, assim como o seu próprio nome já adianta, é sobre cura. Porém, é sobre a "cura do que não tem cura", em um paralelo direto com a vida pessoal da artista. Deborah, nos últimos anos, dedicou-se a buscar uma solução para a doença genética rara de seu neto Theo, de 12 anos, a epidermólise bolhosa. Foi desta angústia, desta procura incessante, que também passa pelo enfrentamento da discriminação e do preconceito, que surgiu a inspiração para o espetáculo.
— Nessa busca da cura do que não tem cura, encontrei a afirmação de que a cura tem que existir. Se não tem no plano físico, tem no emocional. Se não tem no emocional, tem no intelectual. Se não tem no intelectual, tem no espiritual — destaca a coreógrafa.
Cura, segundo Deborah, é um espetáculo muito visceral e orgânico, onde ela se expõe "em carne viva", demonstrando suas emoções, sentimentos, experiências junto aos seus pensamentos e inquietações. Já em termos estéticos e de movimentação, a coreógrafa procurou misturar estilos e origens de dança:
— Estou buscando danças primitivas, nativas, não só do Brasil, mas do mundo. De onde a dança veio? Quais são os movimentos mais instintivos e intuitivos? Fui me aproximando das danças de rua, de regiões, prestando atenção a isso e misturado com outras estéticas, com a clássica, com a contemporânea. Fui buscar a memória do corpo, do movimento, da construção desse homem que a gente agora é.
De Hawking a Obaluaê
Cura começou a ser concebido em 2017. Porém, é quando Stephen Hawking morre, no começo do ano seguinte, que surge o nome do espetáculo. Deborah, então, parou a construção de sua apresentação, viajou para Moçambique e para Bahia, pesquisando e encontrando maneiras de representar o gesto, o movimento, o corpo que sofre, o espaço da doença e do desiquilíbrio. Ela também incorporou ao espetáculo referências das três religiões monoteístas e elementos de culturas africanas, indígenas e orientais. Mas não somente isso.
Para desenvolver a dramaturgia da peça, a coreógrafa chamou o rabino Nilton Bonder, autor de, entre outros livros, A Alma Imoral. Do autor, por exemplo, veio a afirmação de que "a grande cura é a morte". E isso motivou uma coreografia com dois bailarinos dançando ao som de You Want It Darker, de Leonard Cohen.
Já Carlinhos Brown é o responsável pela trilha sonora original do espetáculo. O músico baiano, no início, havia sido convidado para compor apenas o tema de Obaluaê. Mas acabou criando praticamente toda a trilha. O artista, inclusive, considera esse um trabalho profundo, um "chamado". Ele canta em português, ioruba e até em aramaico. Na visão de Deborah, o cantor criou uma ópera.
Além de Brown, os 14 bailarinos que estarão em cena também cantam, em hebraico e em línguas africanas — um movimento inédito dentro dos 29 anos de história da companhia que leva o nome da própria Deborah. Dentro deste cenário, com muitas referências e histórias, concebido na alma da coreógrafa, extrapolam para o palco diversos personagens, que contam essa trajetória em busca da cura.
— Tenho o Theo, tenho o Obaluaê, que é o orixá da cura e da doença, tenho o Stephen Hawking, que dribla o diagnóstico de uma doença que ele contraria, já que foi dito que ele viveria mais três, quatro anos e ele vive mais 50 iluminados e criativos. Ele encontra a cura do que não tem cura. Tem Jesus, que traz o amor para a civilização, principalmente ocidental. A cura através do amor. É muito bonito isso. E juntamente com ele vem os salmos de Davi. E o meu último personagem, na verdade, é Leonard Cohen. Ele entende profundamente a cura, ele conecta a morte e a vida. Ele entende a morte como a grande cura. A morte faz parte da vida — explica a bailarina.
De volta aos palcos
Quando Cura estava quase pronto, a pandemia assolou o mundo. O espetáculo, inicialmente, iria estrear em Londres, depois ganhou datas no Brasil, no Rio de Janeiro e em São Paulo. No entanto, a covid-19 não permitiu que a apresentação fosse feita perante ao público. Pelo menos, não na época em que Deborah queria. Coube, então, adaptar-se aos tempos de isolamento e escolher outra forma para expressar a arte e mostrar para as pessoas: o streaming. Mais precisamente, o Globoplay. Foi lá que a coreografia foi vista pelo grande público pela primeira vez, em setembro de 2021.
— Cura estreou no Globoplay no momento em que o país estava sendo dilacerado culturalmente, liquidado. Então, o acesso foi aberto a todos, não só aos que tinham assinatura, no mundo inteiro. Gostei muito disso. Foi algo necessário, não foi algo que escolhi. Ia explodir se não estreasse o espetáculo — conta Deborah.
Ela ainda destaca que, apesar do nome, o espetáculo não tem a ver com a covid-19, que tem cura, que é a vacina. Apesar disso, a bailarina pontua que existe a possibilidade de um encontro com o tema:
— Percebo que cada espectador que vê o Cura escolhe o espetáculo que está vendo, constrói o espetáculo para ele. Gosto muito disso. Ele conecta com a dor dele, com a ausência dele, com o luto. É inevitável, as pessoas estão vivendo essas dores muito grandes. Então, essa cura que falo, não é a cura de um vírus, é uma cura da alma humana, da condição humana.
O espetáculo foi aos palcos com plateia pela primeira vez em outubro do ano passado, no Rio de Janeiro, e depois fez turnê por várias cidades do país, até chegar em Porto Alegre, agora. A Capital, por sinal, é muito bem quista pela coreógrafa, que relembra que já estreou vários espetáculos de sua companhia na cidade, incluindo Velox, que teve destaque mundial.
— O povo de Porto Alegre chegar em Cura é muito emblemático. Acho que é um espetáculo que você se conecta de uma maneira muito pessoal. Ele é privado, é de cada um. Conecta emoção e dor. E se aproximar da dor quer dizer celebrar a vida — completa Deborah.
Os ingressos de Cura estão disponíveis na plataforma diskingressos.com.br ou na bilheteria do Teatro Sesi nos dias dos espetáculos. A apresentação tem duração de 1h15min, sem intervalo, e conta com audiodescrição para deficientes visuais. A classificação é livre, e os preços variam de R$ 50 a R$ 160.