Por Everton Cardoso
Jornalista e crítico
Assistir a um espetáculo como Brenda Lee e o Palácio das Princesas é ter uma prova concreta de que é possível, no palco, tratar de temáticas contemporâneas, apresentando suas múltiplas faces e tocando quem assiste de modo profundo e transformador. Com narrativa precisa e música sensível, a peça trata, por meio da vida da personagem-título, das violências sofridas por pessoas trans e dos preconceitos associados a HIV/aids.
Ganha mais força e relevância ainda se considerarmos o contexto do Brasil, que há uma década e meia carrega a triste marca de ser o país do mundo onde mais se mata pessoas trans. Acrescente-se a isso o fato de o espetáculo ter integrado a programação do sempre qualificado e já consolidado Porto Alegre em Cena, que encerrou no fim de semana a segunda etapa de sua edição de número 30, e ter sido apresentado num espaço tão importante como o Theatro São Pedro.
O roteiro é baseado em Brenda Lee (1948-1996), mulher trans cujo nome social era Caetana, nascida em Pernambuco e que em São Paulo se tornou "anjo da guarda das travestis". Depois de retornar de uma temporada no Exterior, ela decidiu criar o Palácio das Princesas, uma pensão para mulheres trans que, em sua maioria, viviam da prostituição.
Com o surgimento da epidemia de HIV/aids, Brenda se tornou uma ativista conhecida e foi responsável pela criação da casa de apoio que levou seu nome, a primeira para pessoas soropositivas no país quando os tratamentos e as políticas para prevenção ainda eram embrionárias. No musical, a dramaturgia proposta por Fernanda Maia narra essa experiência a partir das vivências de cinco mulheres trans que residem no local.
Dirigido por Zé Henrique de Paula, o espetáculo se inicia com a apresentação dessas personagens e de como seus duros e traumáticos passados as levaram a buscar auxílio nesse lugar que oferecia um conforto diante da realidade de violência que enfrentavam nas ruas. Ali, tinham um lar que representava, acima de tudo, acolhimento — afinal, Caetana lhes fornecia apoio financeiro e suporte emocional e psicológico.
Apresentadas por uma mestra de cerimônias como elenco da boate Medieval, corporificam histórias não muito incomuns entre a comunidade LGBTQIAPN+. Blanche de Niège, interpretada por Leona Jhovs, fugiu de casa quando jovem para escapar da mãe, que tentava matá-la, acabou refém de uma cafetina e do uso de drogas. Tyller Antunes dá vida a Ariela Del Mare, rechaçada e espancada pelo pai pastor, um trauma que a bloqueou para cantar em público. Já Raíssa é vivida em cena por Andrea Rosa Sá e, órfã, foi criada pela madrinha, que a tratava como empregada e a mantinha em cárcere privado. Elix interpreta Isabelle Labete, expulsa de casa pela família e que, mantida por um amante, buscou estudar. Cínthia Minelli, vivida por Olivia Lopes e que nesta cena faz as vezes de apresentadora, vem de uma família rica que não a aceita, mas se torna estilista famosa e rica; busca ajuda de Brenda quando fica doente, com aids.
Identidade de gênero
A protagonista já deixa clara sua visão de mundo logo no início, ao se apresentar: "Meu nome de batismo é… não interessa!". Reivindica, assim, logo de saída, que usar identidade de gênero é uma decisão própria e individual. Ora, se são socialmente aceitas outras mudanças de nome, por que pessoas trans não têm esse mesmo direito? Por que há quem insista em negar essa escolha, mas encare isso de modo natural quando se trata de desportistas, artistas e outras figuras públicas que adotam nomes diferentes daqueles escolhidos pelos pais?
O acolhimento oferecido por Brenda também fica claro quando ela canta sobre como uma pessoa trans percebe a vida. Ela dá abrigo e diz que ninguém mexe com aquelas que ela considera suas filhas: "A rua é mundo cão/ É faca, navalha/ É a cara da morte a todo momento". Enquanto a dramaturgia dá conta dessa "adoção" que compensa a rejeição da família de nascimento e a hostilidade do mundo, a potência do canto desenvolvido por Verónica Valenttino, que interpreta Brenda Lee, torna esse momento pungente.
Uma das canções musicadas por Rafa Miranda nos desafia: "Você não duraria 10 minutos/ Se estivesse em minha pele/ Pelas ruas da cidade".
Ao ouvir, foi impossível não ser remetido às histórias de duas artistas trans porto-alegrenses cujos relatos são prova de que nossa cidade também é ambiente hostil: uma delas foi agredida por um homem que cruzou por ela na rua e que partiu para cima sem motivo algum; e a outra por duas vezes teve seu rosto destruído por agressores na região central de Porto Alegre. Os nomes, claro, preservo para não expô-las a mais violência.
Não pode ser fácil ter essa sensação de violência associada à rua — esse lugar que nos remete a passeio, lazer, vida social, diversão e, claro, ao direito de ir e vir tão fundante de nossa existência em uma sociedade que se pretende democrática. Em um tom de quase enfrentamento, uma das canções musicadas por Rafa Miranda nos desafia: "Você não duraria 10 minutos/ Se estivesse em minha pele/ Pelas ruas da cidade".
Reflexão interessante é trazida pela cena em que Caetana convoca jornalistas para denunciar assassinato de travestis — as outras personagens fazem as vezes de repórteres e empunham seus sapatos como se fossem microfones. Enquanto a voz do jornalista Chico Felitti recita manchetes nas quais travestis são sempre postas como agentes de violência, a personagem contraria reivindicando que, no fundo, são vítimas.
Mas o roteiro vai além do muito necessário relato sobre violência: as filhas sonham encorajadas por Brenda. Talvez o sonho mais poético e ao mesmo tempo mais concreto seja o de Ariela. Num momento intenso, diz que deseja estar num lugar em que possa andar olhando para frente, sem ter de baixar os olhos por medo ou constrangimento.
Momento impactante
Encorajadora também é a postura de Caetana quando realiza o desejo de Cínthia: muito debilitada pela doença, pede que a amiga ligue para seus familiares. Enquanto, a voz da mãe condena as escolhas que a filha fez, Brenda Lee canta confortando, dizendo que a família apenas não pode visitá-la por estar ocupada. Sem dúvida, é um dos momentos mais impactantes e emocionantes do espetáculo e em muito potencializado pelas atuações de Olívia e Verónica. Texto, música e cena também são certeiros ao pegarem um episódio de uma brutalidade enorme, quando uma mãe rejeita a filha doente terminal, e o tornarem sensível, sutil e tocante.
Nesse sentido, os sonhos de Brenda também são retratados de modo muito potente. No início do primeiro ato, ainda quando estão voltados para a pensão, são expressos em forma de canto, descrevendo uma casa de paredes e cômodos coloridos que representa proteção. Já no segundo ato, depois de conhecer o médico que a encoraja e ajuda a fundar a casa de apoio, muda o tom. Ela canta expressando a precariedade do local, mas que será como um "farol": "Quero proteger minhas irmãs/ Juntar os nossos nadas/ Juntar as nossas dores/ E na paz poder cuidar". Almeja, como diz, que seja patrimônio das travestis.
Mas o roteiro vai além do muito necessário relato sobre violência: as filhas sonham encorajadas por Brenda.
Assassinada em maio de 1996 por um funcionário que falsificou um cheque, a personagem surge para a cena final em um vestido longo, preto e de paetês e com a boca marcada por glitter vermelho. Ela canta, perguntando: "O que você quer matar em mim?" A seguir, enumera várias características físicas que a tornam uma pessoa de identificação pública como mulher — e, por isso, alvo de violência. Ao final, indaga novamente e responde: "O que você quer matar em mim? É você!", dirigindo-se ao público. Nesse momento, fica bastante explícito por que Verónica Valenttino conquistou os prêmios Bibi Ferreira e Shell pela atuação nesse papel.
Na cena final, juntamente com Cínthia, as personagens observam os destinos das demais, ainda vivas. Estas, então, dizem que estão bem, apesar da dureza que a vida impõe a elas. Como se estivessem em palco, cantam: Raíssa foi adotada por Cínthia e recebeu um imóvel como herança, onde abriu um salão de beleza; Ariela iniciou o tratamento com antirretroviral, fez cirurgia de transição e voltou a cantar; Blanche superou a dependência química, passou a trabalhar em casas de apoio como a de Brenda e adotou uma menina, tornou-se mãe; e Isabelle Labete lê o título de sua tese de doutoramento em Assistência Social, na qual registra a história de Brenda Lee e de seu pioneiro trabalho em saúde pública.
Encerrado o espetáculo, mais uma vez sonho e acolhimento para fazerem todo mundo que assistiu sair de lá transformado. Depois dos agradecimentos, Verónica — já despida da personagem — deixa um apelo: "Passe por uma travesti na rua e deseje bom dia, boa tarde…"
O espetáculo está disponível no YouTube. Vale a pena conferir — neste caso, uma versão adaptada para vídeo, um pouco diferente dessa levada aos palcos.