Retratar a vida da classe operária é algo perseguido historicamente pelos cineastas brasileiros, mas não são muitos os filmes que conseguem resultados tão significativos quanto Arábia. O longa de Affonso Uchôa e João Dumans, que chega nesta quinta-feira (5/4) ao CineBancários e ao Espaço Itaú, em Porto Alegre, após exibições em mais de 40 festivais ao redor do mundo (venceu o 50º Festival de Brasília, entre outros prêmios conquistados), é o exemplo mais bem acabado da excelência atingida pelo núcleo de produção localizado entre as mineiras Contagem e Belo Horizonte, cujos profissionais se alternam em títulos relevantes na cinematografia nacional recente, a exemplo de A Vizinhança do Tigre (2014), Ela Volta na Quinta (2014) e A Cidade Onde Envelheço (2016).
Uchôa dirigiu A Vizinhança do Tigre (e ainda o bom Mulher à Tarde, de 2012), e Dumans roteirizou A Cidade Onde Envelheço e coescreveu e montou A Vizinhança do Tigre. Em Arábia, eles viajam por Minas Gerais acompanhando a história de Cristiano (Aristides de Souza), que é o protagonista mas só aparece, a rigor, no segundo ato da trama. No início, os realizadores tratam de mostrar Ouro Preto por trás de seus cartões postais, acompanhando a vida pacata do adolescente André (Murilo Caliari).
É muito instigante a maneira como a narrativa muda radicalmente, alternando o ponto de vista de André para a visão pessoal de Cristiano sobre sua própria trajetória – a transformação se dá quando o primeiro vai até a casa do segundo e lá encontra um diário; é a leitura dessas anotações, com a voz em off de Cristiano, que guia o espectador por sua jornada errática desde o flerte com a delinquência juvenil até uma série de empregos e subempregos que vão culminar com a chegada a uma fábrica de alumínio de Ouro Preto.
A proximidade dessa mesma fábrica causa problemas respiratórios ao irmão de André, o que sugere mais uma conexão entre essas duas partes (nem tão) distintas de Arábia. Mas o foco de Uchôa e Dumans é Cristiano. Suas experiências no mercado profissional, algumas informais, outras na lavoura, a maior parte na indústria, aceitando condições precárias, sugerem uma incapacidade de estabilização típica da geração que cresceu desassistida pelo Estado, sobretudo em sua formação educacional. Faz sentido vislumbrar também uma crítica à reforma trabalhista recentemente aprovada no país, que flexibilizou as relações entre assalariados, como Cristiano, e seus empregadores.
Uma sensação de melancolia perpassa todo o filme, dos gestos e dos escritos do protagonista à própria câmera empunhada pelo diretor de fotografia Leonardo Feliciano. Seus planos longos e suas imagens repletas de características documentais motivam uma subjetivação das mais ricas, pautada pela associação ao real propriamente dito – um recurso cada vez mais comum no melhor cinema brasileiro contemporâneo desde pelo menos Viajo Porque Preciso, Volto Porque te Amo (de Karim Aïnouz e Marcelo Gomes, 2009), outro diário filmado notadamente melancólico.
Não é correto dizer, no entanto, que Arábia representa uma tendência pessimista da produção nacional. Mesmo a melancolia sugere criatividade – é historicamente (desde Aristóteles) um estado de espírito associado aos poetas e artistas em geral. O que Uchôa e Dumans fazem, lançando um olhar cheio de afeto para esse personagem tão significativo do Brasil atual, é sintetizar o processo de transformação da sensação de negatividade, advinda de tantos ambientes hostis, em pura beleza poética.
A trilha sonora (um deleite em si) é ela própria essa mesma síntese, com canções como Raízes, do mineiro Renato Teixeira, Maria Bethânia interpretando Três Apitos, de Noel Rosa, sobre a espera do amor por parte do operário de uma fábrica, além de um medley do clássico sertanejo Caminheiro com Tim Maia e Racionais MC's.
Se você for ao cinema, a chance de sentir-se positivamente confortado por este filmaço é grande.
ARÁBIA
De Affonso Uchôa e João Dumans
Com Aristides de Sousa, Murilo Caliari, Glaucia Vandeveld, Renata Cabral, Renato Novaes, Wederson Neguinho, Adriano Araújo e Renan Rovida.
Drama, Brasil, 2017, 94min.
Estreia nesta quinta-feira (5/4) no CineBancários e no Espaço Itaú, em Porto Alegre.
Cotação: ótimo.