*Direto de Tiradentes/MG*
Tiradentes já não é o mais jovem dos festivais de cinema do Brasil, mas é aquele que melhor representa o espírito de invenção praticado pela geração que se lançou à produção neste século 21 – e que é responsável por alguns dos melhores filmes realizados no período no país. Ao completar 20 anos, o evento que toma a histórica cidadezinha mineira de 7 mil habitantes resolveu olhar para trás. Analisando seu passado, acabou refletindo sobre o presente e também o futuro do cinema nacional.
A 20ª Mostra de Tiradentes terminou no sábado à noite, após dezenas de sessões de longas e curtas-metragens, seminários e rodas de conversa, entre os quais mesas sobre diversidade, representação e políticas públicas de fomento à produção. Uma das características mais notáveis do festival, a participação ativa do público nesses encontros garantiu algumas polêmicas (sobre o feminismo enviesado de Subybaya, de Léo Pyrata, por exemplo) e diversos bons momentos, um desses quando, em um seminário com cineastas vencedores de edições passadas, os diretores Thiago B. Mendonça e Pedro Diogenes e o curador Cleber Eduardo demonstraram otimismo com a produção nacional, apesar do temor dos cortes de verbas para a cultura por parte do governo federal.
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– Mesmo que por acaso se acabem todos os editais de financiamento, o cinema nacional não passará novamente pelo que viveu nos anos 1990 (quando o então presidente Fernando Collor extinguiu a Embrafilme e a produção nacional decaiu a quase zero). Muitos filmes exibidos aqui são feitos com baixíssimo orçamento e sem dinheiro público, a partir de uma pulsão dos autores pela realização. Isso continuará existindo. Não há como terminar – comentou, na mesma mesa, o realizador Allan Ribeiro, vencedor de Tiradentes 2015 com o longa Mais do que Eu Possa me Reconhecer.
Outra particularidade da mostra mineira é que, diferentemente de festivais semelhantes (como a Mostra do Filme Livre, no Rio, e o CineEsquemaNovo, em Porto Alegre), Tiradentes criou uma identidade tão marcante que atrai, regularmente e em peso, a chamada grande mídia. O próprio Festival de Brasília, mais antigo do país, com 50 anos a serem completados em 2017, chegou a receber contestações recentes pelo que seria uma "tiradentização" de sua programação – reconhecimento da influência exercida pelas escolhas dos organizadores do festival mineiro.
– Desponta aqui a categoria dos filmes que não têm orçamento; têm, isso sim, desejo. Mas desejo passou a ser um modo de produção nesses últimos anos – observou a pesquisadora brasiliense Dácia Ibiapina no debate sobre o longa Sem Raiz, de Renan Rovida.
Filmes políticos marcaram 20ª edição do festival
Sem Raiz e Subybaya foram exibidos na mostra competitiva Aurora, que nesta edição completou 10 anos e que é a mais valorizada de Tiradentes. Hoje restrita a longas-metragens inéditos no circuito de festivais e assinados por diretores que estão no máximo no terceiro filme, essa mostra já consagrou produções icônicas da geração que permanece pouco conhecida do grande público, mas que com suas propostas estéticas inventivas empurra a linguagem do cinema brasileiro para a frente com tanta força que o crítico argentino Roger Coza, convidado do evento, a comparou ao Cinema Novo dos anos 1960.
– Há muita invenção no atual cinema brasileiro. Enquanto os filmes latino-americanos parecem possuir uma cartilha única de linguagem, o Brasil, de repente, apresenta algo como Branco Sai, Preto Fica (longa com o qual Adirley Queirós venceu o Festival de Brasília de 2014, dois anos após sair consagrado da mostra Aurora com A Cidade É uma Só?). O que é aquele filme? É um espanto – disse Coza em um debate de Tiradentes.
Em 10 edições, a mostra Aurora apresentou menos filmes do eixo Rio-São Paulo (38%, segundo o curador Cleber Eduardo) do que do eixo Minas-Pernambuco-Ceará (43%), o que dá uma dimensão da força da produção desses três Estados e, além disso, escancara a diversificação do cinema nacional. O Rio Grande do Sul teve apenas um título selecionado ao longo destes 10 anos, curiosamente aquele que abriu a primeira edição da mostra, em 2008: Ainda Orangotangos, de Gustavo Spolidoro.
Se nos anos anteriores, no entanto, a Aurora demonstrou força (com vencedores como Meu Nome É Dindi, de Bruno Safadi, e Os Residentes, de Tiago Mata Machado), nesta temporada foi irregular. Entre os destaques de Tiradentes 2017 estão filmes de outras mostras – e realizadores de gerações anteriores, a exemplo de Guerra do Paraguay, de Luiz Rosenberg Filho, e Era o Hotel Cambridge, de Eliane Caffé. O primeiro integrou a outra mostra competitiva de longas de Tiradentes, chamada Olhos Livres e dedicada a todos os outros tipos de filmes que não se enquadram na Aurora. E o segundo, a não competitiva Horizontes, que também exibiu o longa Mulher do Pai, de Cristiane Oliveira, um dos filmes gaúchos de melhor carreira no circuito de festivais nos últimos anos.
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Uma marca de todas as mostras de Tiradentes 2017 foram os filmes políticos – espécie de resposta do cinema nacional ao impeachment de Dilma Rousseff e, além disso, à onda de conservadorismo em escala global.
– Em 2016, já era possível perceber que uma inclinação política nos filmes do festival – relata Cleber Eduardo. – Em 2017, essa percepção aumentou. As produções exibidas em Tiradentes são realizadas rapidamente, com poucos recursos e estrutura simples. Isso faz com que estejam conectadas fortemente ao contexto a que pertencem.
Em um dos seminários do evento, Thiago B. Mendonça, que vencera a mostra Aurora em 2016 com Jovens Infelizes, comparou o atual momento com o surgimento de sua geração, na década passada (ele tem 39 anos):
– Nossa geração, inicialmente, foi muito dócil com o poder. Dez anos atrás, o Andrea Tonacci (veterano cineasta morto no ano passado, meses após ser homenageado em Tiradentes) fazia um filme contundente como Serras da Desordem, mas ele é de outra geração. Nós, que estávamos começando, só nos demos conta de que fazíamos um cinema sem força política ao ver nossos filmes reunidos em Tiradentes. Hoje é mais fácil ter esse olhar panorâmico; Tiradentes é um festival afirmado. E a garotada que está vindo aí é questionadora. Sabe que o momento do país é grave. Acho que vai responder à altura, de maneira radical.
Um festival democrático
Baronesa, de Juliana Antunes, e Corpo Delito, de Pedro Rocha, os dois principais títulos da mostra Aurora deste ano, são filmes irregulares em suas radiografias da periferia das grandes cidades. Tentativa de resposta mais radical, para repetir o termo de Thiago B. Mendonça, Sem Raiz, um mosaico das desventuras de mulheres com dificuldades em seus trabalhos, tem melhores intenções do que o resultado em si. O que não impediu aplausos dos mais de 500 espectadores que lotaram o Cine Tenda, em uma das praças da cidade.
– Os debates sobre certos filmes foram mais interessantes do que os filmes propriamente ditos – avalia Bruno Oliveira, estudante da Universidade Federal de Pelotas (UfPel) que participou da Mostra Jovem com seu primeiro curta-metragem, A Antologia de Antônio. – Tiradentes faz valer o investimento em trazer os realizadores para que eles falem sobre seu trabalho. O lado ruim disso é que parece que, em alguns casos, o discurso vale mais do que a proposta estética de um projeto.
A estrutura onde fica o Cine Tenda tem capacidade para mais de 2 mil pessoas, se contado o espaço do lado de fora da sala de cinema, onde são realizados shows, performances artísticas e rodas de conversa. A Mostra de Tiradentes também tem atividades no centro cultural do município e no chamado Cine Praça, "sala" a céu aberto para centenas de espectadores na qual são realizadas algumas sessões. Em todos esses ambientes, a sensação que se tem é a de um festival democrático – não há atividade paga nos nove dias de programação, e até os cães de rua do lugar são bem-vindos, inclusive nos locais de projeção.
A curadoria está permanentemente em xeque: foram diários os encontros que discutiram as seleções de filmes – só entre os longas, houve 157 inscritos, 78 deles inéditos, com, no total, 34 selecionados. Esses números grandiosos correspondem à infraestrutura invejável de Tiradentes: além de imponente, o Cine Tenda é resistente (escapou sem qualquer abalo de um temporal na noite de quarta-feira), e o catálogo, recheado de textos ensaísticos, um dos melhores do cinema nacional.
Os astros e estrelas da TV também costumam dar as caras. Têm aparecido pouco nos filmes da mostra Aurora, mas marcam presença para receber homenagens ou acompanhar as exibições de títulos de outras mostras. Neste ano, as homenageadas foram Leandra Leal, que comemorou 20 anos de sua estreia no cinema assinando seu primeiro longa-metragem como diretora, Divinas Divas, e Helena Ignez, atriz e musa do Cinema Marginal que se lançou na direção na década passada. Esta última circulou pelas ruas de Tiradentes com Ney Matogrosso, seu ator em Ralé, incluído na programação.
Como qualquer cidade turística, Tiradentes recebe muitos visitantes o tempo todo. Sua integração com o festival de cinema é plena – não fosse por eles, dificilmente as sessões no Cine Tenda atrairiam tanta gente. O (agora nem tão) jovem festival mineiro também é um exemplo disso: é possível não apenas usar o encontro cinéfilo para explorar o turismo, mas se retroalimentar deste, e sem abrir mão de pensar o cinema, inclusive a partir de propostas estéticas experimentais.
*Daniel Feix viajou a convite da organização do festival
Premiados com o troféu Barroco
> Melhor longa/mostra Aurora (entregue pelo júri da crítica): Baronesa (MG), de Juliana Antunes
> Melhor longa/mostra Olhos Livres (entregue pelo júri jovem): Lamparina da Aurora (MA), de Frederico Machado
> Melhor curta/mostra Foco (entregue pelo júri da crítica): Vando Vulgo Vedita (CE), de Andréia Pires e Leonardo Mouramateus
> Melhor longa (júri popular): Pitanga (SP), de Beto Brant e Camila Pitanga
> Melhor curta (júri popular): Procura-se Irenice (SP), de Marcos Escrivão e Thiago B. Mendonça
> Destaque feminino: Fernanda de Sena, diretora de fotografia de Baronesa
> Prêmio Aquisição/Canal Brasil: Vando Vulgo Vedita