É uma coincidência que dois filmes mineiros, ambos rodados na região de Contagem, Grande Belo Horizonte, estreiem juntos nos cinemas de Porto Alegre. Não é por acaso, no entanto, que ambos se enquadrem em uma corrente bastante difundida do chamado novíssimo cinema brasileiro, que se apoia no real para criar ficções cruas cujo impacto é potencializado pela estética naturalista: vêm de Minas Gerais – onde é realizado o Festival de Tiradentes, palco nobre desse movimento informal da cinematografia nacional – algumas de suas gemas, incluindo o referencial O Céu sobre os Ombros (2010), de Sergio Borges.
As duas estreias da semana na capital gaúcha são Ela Volta na Quinta, em cartaz no CineBancários e na Sala Norberto Lubisco, e A Vizinhança do Tigre, no CineBancários. Assim como em O Céu sobre os Ombros, vê-se nos dois novos longas atores não profissionais assumindo identidades inspiradas em suas próprias personalidades – e, talvez, especialmente em A Vizinhança do Tigre, reencenando acontecimentos de suas vidas reais.
A Vizinhança... é o segundo longa de Affonso Uchoa, que já havia trazido seu bom Mulher à Tarde (2009) ao CineEsquemaNovo, em Porto Alegre. Foi rodado ao longo de cinco anos, nos quais o realizador acompanhou a rotina de cinco jovens do bairro Nacional, em Contagem, onde o próprio Uchoa vive – de algum modo próximo aos intérpretes, ao que consta.
Não há um tema específico a conduzir a ação, o que a torna um tanto difusa, distante dos modelos narrativos que apostam em curvas dramáticas mais tradicionais. A recompensa ao espectador que dedica seu tempo a entender a vida daqueles adolescentes vem em uma sucessão de sequências marcantes que abordam seu amadurecimento em meio ao apelo das drogas, à proximidade da violência e à necessidade de afeto – tudo ao mesmo tempo, como a vida realmente é nas periferias das grandes cidades.
O "tigre" do título não é o animal místico do clássico contemporâneo Mal dos Trópicos (2004), mas, como acontece no filme de Apichatpong Weerasethakul, parece espreitar todas as ações do quinteto, onipresença que leva a crer que a fera está, na verdade, dentro de cada um deles – embora pautada, em grande parte, pelos estímulos externos. Domá-la, ou melhor, conviver com ela, é o seu desafio.
Ela Volta na Quinta, pode-se dizer, é um projeto ainda mais pessoal, como é de praxe na carreira do premiado diretor de curtas-metragens André Novais Oliveira. O cenário e os atores do filme são os mesmos, por exemplo, do curta Quintal (2014): seus pais e a casa em que eles moram. Norberto e Maria José Novais Oliveira interpretam, em Ela Volta na Quinta, um casal de rotina pacata que, lá pelas tantas, percebe-se, vivenciam uma crise conjugal. Ela também parece doente, mas tudo na trama é apresentado de maneira discreta, como uma pequena parte de uma grande e complexa engrenagem – a vida na condição social em que se encontra o casal.
Maria José está mesmo doente? Norberto é feliz no casamento? O que planejam o próprio André e seu irmão Renato, jovens adultos em momentos definidores de seu futuro? Da mesma forma que A Vizinhança do Tigre, mais do que buscar respostas exatas a essas questões, Ela Volta na Quinta quer aproximar o espectador desses conflitos para que este faça seu juízo – ou, melhor ainda, conheça bem as vidas desses personagens tão próximos do real em vez de julgá-los.
Novais Oliveira gosta de planos longos, como se com eles buscasse a maior atenção do público para com esses personagens. A certa altura, André e Renato conversam enquanto o computador de um deles carrega um vídeo de YouTube – e a conexão parece ser lenta. Durante todo o tempo, a câmera do diretor de fotografia Gabriel Martins não sai do rosto de um deles. O resultado é que, menos do que o diálogo, que como qualquer encontro cotidiano de dois irmãos contém banalidades, o que se depreende dali é sua maneira espontânea de agir – e não o seu comportamento social, com as devidas maquiagens às quais estamos todos acostumados.
Em um mundo voyerístico, cada vez mais fascinado pela imagem real, verídica, mas que no cinema estranha e até mesmo rejeita propostas que fujam à estética artificalizada vigente (ditada em parte por Hollywood, noutra pelas telenovelas globais), trata-se de um posicionamento político.
Contundente e impactante.
Ela Volta na Quinta
De André Novais Oliveira
Drama, Brasil, 2014, 108min.
Em cartaz no CineBancários e na Sala Norberto Lubisco.
Cotação: 4 estrelas (de 5).
A Vizinhança do Tigre
De Affonso Uchoa
Drama, Brasil, 2014, 95min.
Em cartaz no CineBancários.
Cotação: 4 estrelas (de 5).