Especialista em vício, a psiquiatra norte-americana Anna Lembke construiu uma carreira dedicada ao estudo e tratamento de dependentes químicos, tornando-se referência em meio à epidemia de opioides nos EUA. Com a popularização da internet e das redes sociais, ampliou seu escopo para além da dependência em substâncias e medicamentos, aprofundando-se na compreensão da adicção no que ela chama de “drogas digitais”. A renomada psiquiatra, professora na Universidade Stanford e autora do best-seller Nação Dopamina (2022), além de Nação Tarja Preta (2023) e outros, será uma das conferencistas do Fronteiras do Pensamento 2024 (leia mais sobre o evento abaixo) Nesta entrevista, fala sobre os impactos da alta disponibilidade de dopamina, o papel das redes sociais e da internet nesse cenário, o panorama da dependência de medicamentos, a crise dos opioides e seu posicionamento em relação à descriminalização da maconha.
Por que internet, tecnologia e redes sociais são viciantes?
Qualquer coisa que libere dopamina na via de recompensa do cérebro tem potencial para viciar. E, dependendo da pessoa e da droga de sua escolha específica, isso pode ser qualquer coisa mesmo, de drogas tradicionais e álcool até pornografia, jogos de azar, TikTok, compras, estímulos potencialmente dolorosos como exercícios ou o trabalho.
Por que você acredita que a busca incessante pelo prazer gera mais sofrimento do que felicidade?
O que sabemos sobre o cérebro é que o prazer e a dor estão colocalizados e funcionam como lados opostos de uma balança, o que significa que todo prazer é seguido pelo seu oposto, algum grau de dor. Às vezes estamos cientes disso, como em uma forte ressaca depois de uma noite de bebedeira, mas, às vezes, está fora da percepção consciente, como a maneira como nos sentimos logo depois de assistir ao nosso programa favorito à noite e ter vontade de assistir a mais um episódio, embora disséssemos a nós mesmos que iríamos dormir. Essa dor, saudade e desejo fugazes ou persistentes é exatamente como nosso cérebro nos faz repetir esse comportamento continuamente. É algo que é vantajoso em um mundo no qual as recompensas são poucas e raras, mas prejudicial em um mundo no qual nem precisamos nos levantar do sofá para encontrar coisas altamente gratificantes e potencialmente viciantes.
Você sustenta que vivemos em uma sociedade de abundância. como isso nos afeta?
Nossos cérebros evoluíram ao longo de milhões de anos em um mundo de escassez. A dopamina tornou-se uma substância química cerebral importante para a sobrevivência, encorajando-nos a fazer as coisas que precisamos para sobreviver. Isto é, encontrar comida, roupas e abrigo. Isso significa que, a priori ou pelo seu propósito fundamental, a dopamina está envolvida em qualquer comportamento que exija algum tipo de trabalho para obter uma recompensa. A dopamina é o neurotransmissor não apenas do prazer, da recompensa e da motivação, mas também da sobrevivência. Diz que isso é algo que precisamos fazer para sobreviver. O problema é que, no nosso ecossistema moderno, já não vivemos em um mundo de escassez. Não estávamos preparados para a abundância. Portanto, viver em um mundo de abundância significa que há uma incompatibilidade inerente entre a nossa antiga ligação neurológica cerebral e o nosso ambiente. E essa incompatibilidade significa que somos obrigados a consumir o máximo possível dos tipos de coisas gratificantes que encontramos sempre que as encontramos. Mas, em um mundo em que o acesso e a quantidade são praticamente infinitos, esta é uma responsabilidade grave. Porque o que isso significa é que estamos expondo nossos cérebros a uma mangueira de incêndio constante de dopamina, nosso neurotransmissor de recompensa, exigindo que nosso cérebro compense ou se adapte neurologicamente a isso, regulando negativamente nossa própria produção e transmissão de dopamina, o que, em última análise, nos coloca em uma situação difícil de estado crônico de déficit de dopamina como forma de compensar. Esse estado é semelhante à depressão ou à ansiedade, até à anedonia, que é a incapacidade de sentir prazer.
Você também argumenta que vivemos em uma sociedade que evita a monotonia e a dor, recorrendo a medicamentos. Quais problemas isso gera?
Com o nosso ecossistema em mudança, com a superabundância, que causa verdadeiros estressores fisiológicos, também desenvolvemos uma interessante narrativa co-ocorrente sobre prazer e dor. Ela efetivamente diz que, se estamos experimentando qualquer tipo de dor, devemos estar mentalmente doentes, ou algo está errado com a nossa vida. Há essa ideia de que todos temos de estar em um estado constante de êxtase, que esse é o normal, que devemos esperar ser felizes. É fascinante como os nossos tropos culturais mudaram com o nosso acesso a esses potentes bens de prazer para nos encorajar ainda mais a consumir. Você poderia pensar que teria havido algum tipo de dialética, eventualmente – talvez estejamos chegando lá agora –, nos fazendo perceber que todo esse excesso, abundância e prazeres fáceis são ruins para nós. Mas, na verdade, aconteceu o contrário. E agora estamos com medo da dor. E a sociedade nos encoraja a procurar mais conforto e prazer, além de evitar a dor, e que se estamos a sentir dor, deve haver algo de errado conosco.
Fomos feitos para estar em um estado de déficit e trabalhar para obter uma recompensa e então sentir o alívio, ao contrário do que acontece agora, em que não sentimos dor e expomos nossos cérebros a muita recompensa de uma só vez.
Por que a dor é importante para nós?
Ela nos torna mais saudáveis. Quando o corpo sente alguma forma de dor física, emocional ou psicológica, ele na verdade regula positivamente ou aumenta a produção de neurotransmissores de bem-estar como a dopamina, mas também a serotonina, a noradrenalina, nossos canabinoides endógenos, nossos opioides endógenos, de modo que obtemos nossa dopamina indiretamente por pagamento adiantado. E é assim que deveríamos obter a nossa dopamina. Fomos feitos para estar em um estado de déficit e trabalhar para obter uma recompensa e então sentir o alívio, ao contrário do que acontece agora, em que não sentimos nenhuma dor e então expomos nossos cérebros a muita recompensa de uma só vez. A dor estimula o corpo a regular positivamente esses neurotransmissores do bem-estar. E há todo um ramo da ciência que estuda isso chamado hormese. Hormese é uma palavra grega, significa colocar em movimento. É o ramo que demonstrou que, quando um organismo é exposto a doses leves a moderadas de estímulos tóxicos ou nocivos, isso na verdade torna o organismo mais saudável, mais resistente, mais ágil. Precisamos começar a aplicar isso às nossas vidas e nos expor a dificuldades físicas e mentais como forma de construir nossos calos mentais e redefinir nosso ponto de equilíbrio hedônico ou de alegria.
Há estudos que indicam que vídeos curtos, cada vez mais difundidos, podem anestesiar mentalmente o cérebro. Qual é o papel dos algoritmos no vício?
Acho importante compreender que as telas em si são reforçadoras no cérebro humano, e um vídeo em movimento é altamente reforçador, libera dopamina na mesma parte do caminho de recompensa do cérebro que as drogas e o álcool. Portanto, o meio do vídeo em movimento é muito potente, poderoso e atraente. Então, se você pegar esse meio e aprimorá-lo, torná-lo mais potente, e também torná-lo de duração muito curta, muito rápida, você pegou o que já era altamente estimulante e o transformou basicamente em um estímulo reforçador ainda mais potente, ou seja, uma droga. O problema com as mídias sociais e com esses tipos de plataformas é que os algoritmos aprendem o que gostamos antes e nos enviam intencionalmente conteúdo que é semelhante, mas ligeiramente novo, o que cria uma interface que não é apenas um consumo passivo de conteúdo, mas especialmente adaptado aos nossos gostos e desgostos únicos. E tudo isso leva à aceleração dessa narrativa do vício.
Quais são os perigos do vício na internet?
Os mesmos do vício em drogas e no álcool. As consequências em decorrência do consumo são graves, físicas e, emocionais. Há um enorme custo de oportunidade, outras coisas que as pessoas poderiam estar fazendo e não estão porque passam muito tempo online, com a tecnologia. Isso inclui coisas como fazer conexões com pessoas em suas vidas reais, estudar e aprender, cuidar do corpo, ir ao banheiro quando o corpo pede, fazer exercícios, dormir o suficiente. O sono é um grande mediador, ou a falta dele é um dos danos causados pelo envolvimento excessivo com a internet. As intervenções que estamos fazendo com o consumo compulsivo da internet são iguais às intervenções que fazemos para pessoas viciadas em drogas e álcool. Primeiro, há o gerenciamento da abstinência; depois, a fase de manutenção, que consiste na abstinência contínua ou em algum tipo de plano de moderação. E, claro, com a tecnologia, essa questão da moderação torna-se urgente, porque a maioria de nós não pode simplesmente desligar-se da internet, por causa do trabalho ou outras circunstâncias. Temos que estar online, por isso, encontrar uma relação saudável com a internet, especialmente para as crianças, é muito importante. É uma questão premente e urgente para o futuro.
Quais são os sinais de alerta?
São os mesmos das drogas e do álcool. Você pode pensar nos três Cs: controle (comprometer-se a uma certa quantidade e falhar em parar), compulsão (grande parte do espaço mental ocupado pensando em usar a droga e um nível de automatismo) e consequências (biológicas, psicológicas, sociais, espirituais, morais), especialmente no uso continuado. Outros sinais de alerta são a tolerância, necessitando de formas mais potentes para obter o mesmo efeito. Seriam coisas como formas cada vez mais desviantes de pornografia online ou quantias mais elevadas de dinheiro apostadas em sites de apostas online, ou, ainda, comportamentos extremos em redes sociais a fim de obter um certo tipo de resposta. E também a retirada, quando tentamos parar ou reduzir. E os sintomas universais de abstinência de qualquer substância viciante são ansiedade, irritabilidade, insônia, disforia e desejo. As pessoas também podem ter abstinência física de vícios comportamentais, incluindo a internet, como dores de cabeça, tonturas, cólicas estomacais e suores. E alguns sinais leves de problemas são coisas como mentir sobre o uso, o que, às vezes, chamamos de vida dupla, uma espécie de uso secreto, criando diferentes maneiras de esconder o consumo das pessoas ao nosso redor, que se preocupam conosco.
Como livrar-se dos vícios? Qual é a solução?
Não é uma única coisa e não acontece em um dia. É uma jornada. E é uma questão de experimentar o que funciona. Mas a pedra angular da intervenção é o que chamamos de jejum de dopamina, em que nos comprometemos. Primeiro identificamos qual é a droga que consumimos em excesso, e então nos comprometemos a abster-nos dessa droga por quatro semanas. Por que quatro semanas? Essa é geralmente a quantidade de tempo que as pessoas conseguem mentalmente pensar e se comprometer. É também, em média, a quantidade de tempo que leva para começar a redefinir os caminhos da recompensa e para que as pessoas se sintam melhor. Mas sempre avisamos as pessoas que elas vão se sentir pior antes de se sentirem melhor. A abstinência aguda dura cerca de 10 a 14 dias, mas, se as pessoas conseguirem continuar, muitas relatam sentir-se melhores nas semanas três e quatro, e não apenas melhor do que nas primeiras duas semanas, mas, em muitos casos, do que por muitos meses ou anos, à medida que começam a perceber o impacto deletério do vício em suas vidas, o que é difícil de perceber quando você está nele.
Em Nação Tarja Preta (2023), você afirma que estamos diante de uma epidemia de medicamentos prescritos. Qual é o cerne do problema?
É multifacetado e complexo, mas pelo menos nos EUA temos um sistema de saúde que incentiva os médicos a prescrever comprimidos e realizar procedimentos em vez de medicina lenta, que envolve educação e práticas de estilo de vida saudáveis. É o caminho mais fácil para os médicos. E, no curto prazo, isso deixa os clientes satisfeitos. E parte do nosso sistema médico é baseado em clientes satisfeitos. Nossos pacientes são nossos clientes. Há muita competição entre médicos e unidades de saúde. Então isso é realmente um problema, assim como o fato de que realmente faltam estudos de longo prazo sobre eficácia. Em média, esses estudos duram de seis a 12 semanas, alguns um pouco menos. Não é tempo suficiente para avaliarmos os efeitos adversos, especialmente o potencial viciante de muitas dessas drogas. Além disso, as empresas que fabricam e lucram com esses medicamentos têm interesse em infiltrar-se e adulterar a literatura médica. Então é difícil encontrar boa ciência. E mesmo o que parece ser um estudo legítimo pode ser da autoria de alguém que recebe dinheiro de uma empresa farmacêutica. Há estudos inerentemente tendenciosos.
O Brasil ainda não chegou lá, mas deveria estar vigilante para não seguir os EUA nesse fenômeno que é basicamente de imprudência (a epidemia de opioides).
Como está o cenário atual da epidemia de opioides nos eua?
Estamos no que é conhecido como a terceira onda da epidemia. A primeira, entre 1999 e cerca de 2010, deveu-se ao excesso de oferta de opioides prescritos. Então, por volta de 2010, quando a prescrição começou a diminuir à medida que as pessoas se conscientizaram dos danos, e quando regulamentações foram implementadas para diminuir a prescrição, as pessoas que já haviam se viciado ou adquirido gosto por opioides recorreram a fontes ilícitas, como heroína e fentanil ilícito, sendo o fentanil uma forma muito mais potente, mortal e perigosa de opioides. Então passamos dos opioides prescritos para uma maioria das pessoas morrendo por causa da heroína, o que durou de 2013 a 2015. Desde então, estamos na era do fentanil, onde cerca de dois terços das mortes por overdose relacionadas aos opioides hoje estão relacionadas a essa substância. O fentanil é um opioide 50 a cem vezes mais potente que a heroína. Inicialmente, é muito barato de fazer. Você não precisa de um precursor de planta, pode fabricá-lo de forma barata em laboratório. E, inicialmente, foi usado simplesmente para cortar ou adulterar o fornecimento de heroína. Muitas pessoas morreram sem nem saber que estavam tomando fentanil.
Há potencial de se alastrar para o Brasil?
Sim, absolutamente. Olhando para o fato de tudo ter começado com a prescrição excessiva de opiáceos para condições de dor ligeira e crônica, o Brasil ainda não chegou lá, mas deveria estar vigilante para não seguir os EUA nesse fenômeno que é basicamente de imprudência. Cada vez mais dados estão sendo divulgados de que não apenas os opioides não funcionam para a dor crônica a longo prazo, mas também não são bons para a dor aguda. E estão associados a todos os tipos de consequências adversas. Mas também, obviamente, existe o comércio ilícito. E um dos maiores fatores de risco para o vício é o simples acesso à droga. Portanto, é preciso garantir que o Brasil possa fazer o que puder para reforçar as suas fronteiras contra a importação ilícita de fentanil e heroína.
Você tem ressalvas quanto à legalização da maconha e dos psicodélicos, um debate que tem agitado o Brasil. Na sua opinião, qual é a abordagem adequada para a questão?
Temos de lembrar que um fator de risco para a dependência é o acesso. E, quando descriminalizamos, aumentamos o acesso. É verdade que a forma como a aplicação da lei se cruzou com o problema das drogas nem sempre foi bem sucedida, mas também é verdade que a aplicação da lei tem um papel importante porque as pessoas que ficam viciadas, muitas vezes, também se envolvem em atividades criminosas. O Estado do Oregon (EUA) é um bom conto de advertência. Descriminalizaram a posse de todas as drogas e assistiram a um aumento nas mortes por overdose, muito além do que poderia ser explicado pela infiltração de fentanil e muito além do que há na Califórnia. Agora estão revertendo essas políticas. Fala-se de Portugal, onde menos pessoas ficaram viciadas e mais pessoas se recuperaram. Mas o que o que funciona em um país não vai necessariamente funcionar em outro, porque os ecossistemas são diferentes. Portugal construiu uma infraestrutura de tratamento robusta e envolveu o sistema de justiça criminal para deter quem perturba a paz ou envolve-se em atividades ilegais. Não é que, em Portugal, seja liberado sem restrições, o que tem acontecido em cidades dos EUA que tentam uma abordagem mais liberalizada.
O Fronteiras do Pensamento 2024
- Nesta edição, o evento tem como tema a pergunta “Quem está no controle?”. Serão realizados seis encontros presenciais em Porto Alegre, todos entre a próxima terça-feira e o dia 30 de outubro, no Teatro Unisinos (Av. Nilo Peçanha, 1.600).
- Além de Anna Lembke, que fará conferência em 18 de setembro, estarão presentes Stuart Russell (o primeiro conferencista, nesta terça-feira), Muriel Barbery, Yascha Mounk, Nouriel Roubini e Simon Sebag Montefiore.
- Saiba outros detalhes do evento em fronteiras.com, e acompanhe a cobertura de GZH em gzh.rs/Fronteiras.
- O projeto tem patrocínio de Unimed, Sulgás e Banco Topázio, patrocínio acadêmico da Unisinos, parceria institucional de Instituto Unicred, Fractal Educação, Hospital Moinhos de Vento, Icatu Seguros e prefeitura de Porto Alegre, neutralização de carbono Greener, promoção do Grupo RBS e realização da Delos Bureau, uma empresa DC Set Group.