Por Bruno L'Astorina
Professor do Fronteiras Educação
Quando acompanhamos a história das ideias humanas, vemos que as culturas passam, de tempos em tempos, por períodos de crise e insegurança. Esses períodos surgem associados a mudanças aceleradas ou rupturas, em que se enfraquece a confiança nas instituições, nos valores ou em outros elementos que “asseguram” o futuro. Foi assim nos anos 1920, com a Grande Guerra e a Revolução Russa; antes dela, foi assim na década de 1870, com o que hoje chamamos de segunda revolução industrial. Podemos também citar o início do século 16, na transformação de visão de mundo da época de Galileu e Kepler, ou um século antes, no início da Era das Navegações; ou na época da chegada dos textos gregos e árabes na Europa medieval, ou nas transformações das noções de mundo e de vida espiritual na Cristandade no século 20 (época da separação entre a Igreja Católica e a Ortodoxa, entre outras), e podemos multiplicar os exemplos.
A crise específica do nosso tempo vem sendo mapeada por vários autores. Do fim das utopias ao fim da história, passando pela sociedade líquida, os sonhos da chamada sociedade moderna – incluindo a ideia de progresso a partir do planejamento e das instituições racionais, que levaria a um bem-estar perene – aparece mais e mais como um pesadelo.
O crescimento da desigualdade e da concentração de recursos e a volta das guerras convencionais que, agora fica mais claro, nunca foram embora de verdade, aprofundam a falta de confiança no Estado moderno e nas empresas privadas. Tudo isso é somado a uma crise ecológica sem paralelos, conectada ao próprio abuso da ideia de tratar a biosfera como “recurso”, ameaça minar as próprias condições de existência dos seres humanos. Esse contexto de insegurança social parece ser uma importante raiz para as polarizações políticas, por um lado, e para a descrença crescente na própria política institucional.
Esse momento de incertezas reacende debates como o do controle e da agência humana sobre suas próprias ações – tema que estará evidência nesta temporada do Fronteiras do Pensamento. Mesmo a palavra controle é interessante porque revela os hábitos mentais da modernidade: a promessa do homem racional, que entende as leis da natureza e da sociedade e, através de planejamento e ação coordenada, controlaria as condições da própria existência. Um contraponto a essa ideia, que especialmente nossos povos nativos têm trazido, é que precisamos nos lembrar, enquanto cultura, que não são só os indivíduos humanos que possuem agência e inteligência.
Por um lado, a própria crise ambiental nos convida a esse olhar: não só os animais e plantas têm cada vez mais mostrado capacidades sofisticadas de comunicação, memória e ação coordenada, mas também os fluxos de larga escala da biosfera mostram um equilíbrio delicado na interação entre biomas, terra, águas e atmosfera, de uma maneira muito mais complexa do que a nossa possibilidade de prever – e menos ainda controlar – conseguiria dar conta. Por outro, mesmo no nível individual, vivemos um processo de descentramento de nós mesmos. Desde o surgimento da noção de inconsciente até os estudos atuais de ciências cognitivas, vemos que existem diversas camadas de inteligências metacognitivas, emocionais, somáticas, e também coletivas, operando ao mesmo tempo em nós, e muitas delas passam ao largo da nossa capacidade consciente de tomar decisões. Ou seja, boa parte do que fazemos enquanto indivíduos não é claramente controlado, nem visto, por nós mesmos.
Essa perspectiva global é importante para encararmos o debate tecnológico sobre o controle. Passamos boa parte do tempo na nossa solidão da vida atomizada, em que os aparatos eletrônicos se tornaram nossos amigos mais fiéis. Assim, não é surpreendente o choque ao percebermos que esses nossos amigos também estão sendo munidos de inteligências artificiais, que funcionam de uma maneira além de ordens diretas, que não podem ser descritas apenas por algoritmos causais (que tem uma caixa preta inviolável por princípio), que estão além do nosso controle direto. É claro que tudo isso traz questões éticas e legais, porque afinal, se elas não estão inteiramente sob nossa agência, quem pode ser responsabilizado por elas? Esse choque e esse debate são fundamentais; no entanto, é importante contextualizá-lo nos dizer às IAs: bem vindas ao clube de todas as outras condições que os humanos modernos achavam que controlavam mas, na verdade, não. Entender como navegar esse mundo de máquinas, seres biológicos e de nós mesmos fora do nosso próprio controle, é talvez a tarefa mais importante que temos pela frente.
O Fronteiras do Pensamento 2024
- O ciclo de conferências, que tem como tema a pergunta “Quem está no controle?”, realizará seis encontros presenciais em Porto Alegre, todos entre 30 de abril e 30 de outubro, no Teatro Unisinos (Av. Nilo Peçanha, 1.600). Os conferencistas são Stuart Russell, Muriel Barbery, Yascha Mounk, Nouriel Roubini, Anna Lembke e Simon Sebag Montefiore.
- As inscrições estão abertas em fronteiras.com, e a cbertura de GZH pode ser acessada em gzh.rs/Fronteiras.
- O projeto tem patrocínio de Unimed, Sulgás, Banco Topázio e Fractal Educação, parceria acadêmica da Unisinos, parceria institucional do Instituto Unicred e prefeitura de Porto Alegre, promoção do Grupo RBS e realização da Delos Bureau, uma empresa DC Set Group.