Acabar com o clichê de que os povos mais primitivos viviam em estado de inocência, rusticidade e certa ignorância até o surgimento da agricultura, que teria revolucionado e trazido sofisticação para os modos de vida, foi o principal objetivo da fala do antropólogo e arqueólogo britânico David Wengrow na noite desta quarta-feira (4), no Teatro Unisinos, em Porto Alegre, na última conferência deste ano do Fronteiras do Pensamentos.
Coautor do livro O Despertar de Tudo: Uma Nova História da Humanidade, em parceria com o já falecido antropólogo americano David Graeber, Wengrow citou civilizações antigas que construíram cidades ricas mesmo antes do que se chama de revolução agrícola, assim como agrupamentos que tinham complexas estruturas de organização para variar entre períodos com liderança e períodos de completa igualdade entre seus participantes.
— Em cidades antigas como Moenjodaro e Harapa (atual Paquistão) não há evidência de rainhas ou reis, mas está claro que suas populações viveram em residências de excelente qualidade, inclusive com saneamento. A Amazônia é um caso incrível. Sabemos que, no início da Era Cristã, toda a região da grande Amazônia já estava coberta com vias de transporte, áreas de agricultura e monumentos.
Segundo Wengrow, existe uma ideia consolidada de que habitantes de civilizações muito antigas eram simples coletores-caçadores, mas evidências conhecidas nos estudos de antropologia e arqueologia mostram que eram indivíduos que conseguiam projetar formas de vida bastante avançadas.
— Temos evidências de um mundo muito anterior à agricultura que não era um mundo de nomadismo, de caçadores, mas um mundo de vilas, de santuários monumentais e grandes riquezas. Parece que essas sociedades se alternavam entre arranjos mais e menos igualitários, intercalando temporadas de abundância e escassez.
Sobre as formas como essas civilizações se organizavam social e politicamente, Wengrow disse que seus habitantes tinham flexibilidade para variar entre diferente formatos, em conformidade com as estações do ano e do que necessitavam para subsistir.
— Os antigos inuit tinham formas de sociedades durante o verão e durante o inverno. No verão, se dividiam em bandos patriarcais e iam buscar peixes. Durante o longo inverno, a estrutura social já era totalmente diferente. Havia altruísmo e a vida coletiva prevalecia. A comida era compartilhada, até os parceiros sexuais eram compartilhados. No Brasil, os nhambiquaras (indígenas) tinham líderes durante a temporada mais seca, que davam ordens e comportavam-se de forma autoritária. Já na temporada úmida, atraíam as pessoas para construírem jardins, cuidavam uns dos outros, sem imposição. O antropólogo Claude Levi-Strauss observou que essas formas de vida dos nhambiquara é uma alternância sofisticada de realidade sociais bastante diferentes.
Finalizou sua palestra com um questionamento instigante:
— Talvez a pergunta não seja como voltar para um estado original de igualdade, mas nós, homo sapiens, esquecemos como mudar as regras do jogo?