Para o filósofo político americano Michael Sandel, a polarização política é resultado de uma profunda desigualdade social que dificilmente será superada pelo esforço individual, como defende o discurso neoliberal da meritocracia. Convidado do Fronteiras do Pensamento, o professor de Harvard esteve em Porto Alegre na noite desta quarta-feira (9) e, para uma Casa da Ospa lotada, tratou a ascensão pelo mérito como uma promessa falsa.
Sandel entende que a meritocracia só seria válida se todos partissem de iguais condições de vida, o que não acontece.
— A meritocracia diz que, desde que as oportunidades sejam iguais, os vencedores merecem suas vitórias. Mas as oportunidades em nossa sociedade não são iguais. As pessoas não começam a corrida no mesmo local de partida. As crianças que nascem em famílias de baixa renda permanecem pobres na maioria das vezes — falou o filósofo, que mais cedo esteve no Morro da Cruz, periferia de Porto Alegre, conversando com líderes comunitários e alunos da Escola Estadual Doutor Martins Costa Junior.
Interagindo com a plateia, ele perguntou se, em uma corrida hipotética, com todos os atletas em condições iguais, os vencedores, nesse caso, mereceriam a vitória. Um homem chamado Arthur disse que não:
— Acho que nem todos nascem com a mesma genética — opinou.
Já um rapaz chamado Gustavo defendeu que sim:
— Uma vez que a corrida começou, houve critérios para a vitória e o vencedor atendeu a esses critérios, por isso mereceu a vitória — disse.
Sandel citou o caso do jogador Cristiano Ronaldo, que ganha milhões de dólares por ano — algo muito distante do salário de um professor de escola. Ele observou que o atleta não recebe a gorda quantia por mérito, mas porque teve a sorte de viver em um tempo em que craques de futebol são supervalorizados:
— Viver em uma sociedade com demanda imensa pelo futebol não é uma autoria do Cristiano Ronaldo. Se Cristiano Ronaldo tivesse vivido na Renascença italiana... naquela época, não estavam nem aí para o futebol. Ele teve sorte de viver em uma sociedade onde seus talentos são valorizados.
Para Sandel, o discurso neoliberal que diz que as classes baixas irão conseguir vencer na vida caso trabalharem e estudarem bastante, despendendo muito esforço nessa missão, soa como uma espécie de insulto:
— Mesmo com as desigualdades aumentando devido à globalização, os principais partidos políticos dizem: "Se quiser competir e vencer, faça faculdade, você consegue se você tentar". Ou seja, a resposta à desigualdade social é melhorar você mesmo. Há um insulto implícito nesse conselho, que diz "o seu fracasso é culpa sua, afinal, nós explicamos que a economia premia quem tem diploma".
Para ser um cidadão democrático de fato, devemos ser um tanto quanto filósofos
MICHAEL SANDEL
filósofo político
Na década de 1990, quando líderes mundiais das principais potências começaram a falar em globalização, a mudança era tratada como algo inevitável, que não poderia ser barrado. No entendimento de Sandel, isso impediu que as pessoas debatessem os rumos da economia, o que as apartou dos debates públicos. Isso resultou no ódio contra políticos.
— Nos foi dito que essa versão neoliberal de globalização era tão inevitável quanto o tempo. Isso deixou os cidadãos comuns sem poder. E a sensação de que a nossa voz não importa está no cerne da revolta contra os políticos dos principais partidos. Toni Blair (ex-primeiro-ministro britânico) fez piada sobre debater a globalização — observou.
Lançando seu mais novo livro, Tirania do Mérito: O que Aconteceu com o Bem Comum? (2020), Sandel defendeu que os cidadãos voltem a participar do discurso público, engajando-se em grandes debates com o devido respeito a opiniões contrárias.
— O que me dá esperança é que, a todos os lugares onde vou, existe a vontade de se engajar no debate de grandes questões, principalmente entre jovens. Temos que aprender como fazer isso, com civilidade e respeito mútuo. É por isso que a filosofia pertence aos rumos de uma cidade. A filosofia traz questões de valores à esfera pública. Para ser um cidadão democrático de fato, devemos ser um tanto quanto filósofos — defendeu.