Por Nilson Luiz May
Médico e escritor, presidente da Unimed Federação/RS
A crise das democracias tem preocupado intelectuais de diferentes formações e de diversas partes do mundo. Quem costuma frequentar as livrarias já deve ter reparado que o tema se mantém continuamente em voga nas estantes. Como as Democracias Morrem, da dupla de cientistas políticos americanos Daniel Ziblatt e Steven Levitsky; Como a Democracia Chega ao Fim, do historiador britânico David Runciman; e Ruptura: A Crise da Democracia Liberal, do sociólogo espanhol Manuel Castells, são apenas alguns dos títulos que demonstram a amplitude e a variedade do debate.
A discussão alcança um novo patamar a partir de agora com o lançamento de O Descontentamento da Democracia: Uma Nova Abordagem para Tempos Periculosos, do filósofo político Michael Sandel, que estará em Porto Alegre no dia 9 de agosto para o Fronteiras do Pensamento. O livro representa a culminância de um longo processo de maturação que se iniciou há quase 20 anos. Sua primeira edição foi lançada nos EUA em 1996, e agora retorna aos leitores com texto revisado e novos capítulos, dando conta dos acontecimentos sociais e políticos das últimas duas décadas.
Sandel já alertava para os desafios da democracia liberal nos anos 1990. Professor da Harvard, alcançou notoriedade pública ao estimular leitores e espectadores de seus cursos online a repensar valores morais e práticas políticas, questionando abordagens meramente utilitárias ou individualistas nos sistemas de gestão pública e na economia.
O Descontentamento da Democracia é exemplar nesse sentido. O trabalho contextualiza o leitor na história de consolidação da democracia americana, mas também descreve as fragilidades que não foram trabalhadas adequadamente nesse caminho, gerando a atual necessidade de reinvenção. Mais do que apontar diagnósticos convincentes sobre a situação do nosso regime de organização social – o que, por si só, já valeria a leitura do livro –, Sandel é generoso em apontar caminhos para reformular o ideal democrático.
O autor recorre à filosofia clássica para explicar o “descontentamento” que dá título à obra. “Aristóteles ensinou que a política não serve apenas para facilitar o comércio e a troca, mas também para que se tenha uma boa vida”, relembra Sandel. Ou, colocando em termos mais atuais: “Governar a economia requer mais do que descobrir como maximizar o PIB e como distribuir os frutos do crescimento econômico. Requer que reconsideremos a maneira como vivemos uns com os outros e com o mundo natural em que habitamos”. Ou seja, enquanto o Estado democrático não conseguir abarcar uma ampla gama de aspectos que envolvem “uma boa vida”, indo além da economia, o descontentamento se aprofundará.
Nesse sentido, o cooperativismo, modo de organização que rege o Sistema Cooperativo Empresarial Unimed-RS, aparece ao longo do livro como uma alternativa às relações de trabalho dominantes em vários momentos da história, um modo mais horizontal e igualitário de tomar decisões, distribuir funções e repartir os ganhos de uma organização. Como também aponta Sandel, não se pode apenas acreditar nas soluções individuais para uma transformação em direção à boa vida, muito menos esperar que o mercado promova as mudanças necessárias sem o engajamento do debate público.
“O apelo mais profundo dos mercados não é que eles ofereçam eficiência e prosperidade, mas que eles parecem nos poupar da necessidade de realizar debates confusos e contenciosos sobre como avaliar tais questões. Esta é, no final, uma falsa promessa. Banir questões moralmente discutíveis do debate público não as deixa em aberto”, escreve Sandel. Maneiras de estimular o cooperativismo por toda a sociedade e outras relações mais transversais de trabalho são algumas dessas discussões difíceis, mas necessárias, que precisamos abraçar para “reconsiderar a maneira como vivemos uns com os outros”.
Conceituar o que é uma boa vida e definir como alcançá-la não é tarefa simples, porém abandonar esse objetivo é, além de frustrante, perigoso. A chegada de O Descontentamento da Democracia ao Brasil e a vinda de Michael Sandel para o Fronteiras do Pensamento são oportunidades de promover e aprofundar esse debate, afinal, como diz o autor: “Tempos turbulentos nos motivam a lembrar os ideais pelos quais vivemos”.
Nesse contexto, não devemos tratar apenas como uma discussão conceitual ou técnica nossa forma de organização social. Seria de bom alvitre abordar o tema como um convite para reencontrarmos o entusiasmo da convivência em sociedade. Sem tal contentamento, a solução ilusória dos regimes autoritários seguirá ganhando espaço – e viver a “boa vida” será um sonho cada vez mais distante.
Programe-se
- Michael Sandel fará a quarta das seis conferências presenciais da 17ª temporada do Fronteiras do Pensamento. Ele estará na Casa da Ospa (Av. Borges de Medeiros, 1501), em Porto Alegre no próximo dia 9. Depois dele, virão ainda Douglas Rushkoff (em 13/9) e David Wengrow (4/10). Em agosto, serão disponibilizadas mais três conferências online, de Christian Dunker, Eduardo Gianetti e Luc Ferry. Saiba mais em fronteiras.com e confira a cobertura completa de GZH em gzh.rs/Fronteiras.
- O Fronteiras do Pensamento tem patrocínio de Hospital Moinhos de Vento, Sulgás e CMPC, parceria cultural da Casa da Memória Unimed Federação/RS, parceria acadêmica da Unisinos, parceria educacional do Colégio Bertoni Med, parceria institucional da prefeitura de Porto Alegre e do Instituto Unicred, serviço médico Unimed POA, promoção do Grupo RBS e realização da Delos Bureau, uma empresa do Grupo DC Set especializada em entretenimento cultural.