Em uma idade em que muitas mulheres estão na faculdade, planejando viagens ou mesmo descobrindo a própria identidade, Nadia Murad foi submetida à mais cruel situação que se pode vivenciar. Tinha 21 anos quando o grupo terrorista Estado Islâmico invadiu seu povoado no norte do Iraque, assassinando alguns de seus familiares, amigos e vizinhos, e fazendo dela e de outras jovens escravas sexuais.
Nadia fez da tragédia uma bandeira para denunciar a violência sexual praticada contra mulheres em guerras e conflitos armados e o massacre de povos com crenças e costumes diferentes do dominante. Pela primeira vez no Brasil, esteve no Teatro Unisinos, em Porto Alegre, na noite desta quarta-feira (21), falando da importância de barrar discursos que incentivam o ódio e a intolerância. Ela foi a segunda conferencista do Fronteiras do Pensamento.
— Cresci em um vilarejo em Sinjar, no norte do Iraque. O meu povo, os yazidis, eram discriminados bem antes de eu nascer. Não havia rastro de nossa presença nos livros de história que estudei na escola. Foi essa falta de empoderamento, a desconfiança sobre nós, que o Estado Islâmico explorou em 2014, desencadeando um genocídio, espalhando-se como veneno. Deixaram um rastro de caos — disse, ao abrir sua fala.
Nadia foi levada pelos terroristas junto com outras mulheres mais novas, sendo mantidas em cativeiro, constantemente abusadas sexualmente. Ela falou sobre a sensação de ser uma prisioneira:
— Viver prisioneiro é viver em estado de constante incerteza. Você não sabe se vai sobreviver, ou que tipos de perigo terá que enfrentar. Não há como sua mente relaxar.
Sua mãe foi morta, incluindo outras integrantes da família, no mesmo dia em que foram levadas embora do povoado pelos criminosos. A partir dessa perda, passou a refletir sobre a condição de ser mulher no Iraque.
— Eu tive minha mãe para tudo o que precisava. Ela era mãe solteira, nunca foi à escola, criou 11 crianças, mas proporcionou o que nós precisávamos. Foram muitos desafios para poder criar 11 filhos. Eu aprendi muito cedo o que significava ser uma mulher, principalmente em um país como o Iraque. Quando ela foi levada, foi morta no mesmo dia, com algumas parentes, de uma só vez. Depois comecei a pensar muito mais no que ela fez por mim. O que significa ser mulher e lutar não apenas pelos outros, mas por si mesma. Eu não tinha consciência antes, mas agora tenho.
Nadia ficou em cativeiro por três meses. Conseguiu escapar do Estado Islâmico, buscando abrigo em um campo de refugiados e, posteriormente, indo viver na Alemanha, onde conseguiu asilo político. Passou a falar das situações das quais foi vítima, juntamente com sua comunidade, e a pedir justiça. Em 2017, lançou o livro Que Eu Seja a Última: Minha História de Cárcere e Luta Contra o Estado Islâmico (publicado no Brasil pela editora Novo Século). E em 2018, ganhou o Prêmio Nobel da Paz.
A iraquiana observou que, embora os homens de sua comunidade tenham sido mortos pelos terroristas, que davam aos capturados a opção de se converterem ao islamismo, às mulheres mais jovens não era dada outra saída a não ser a submissão sexual. Os yazidis compõem um grupo étnico-religioso, sendo considerados "adoradores do diabo" pelo Estado Islâmico.
Vocês podem pensar que o que acontece no Iraque não tem nada a ver com vocês. Mas somos conectados
NADIA MURAD
ativista
— Os meus irmãos tiveram a opção de morrer. A mim essa pergunta não foi feita. Eu simplesmente fui escravizada (sexualmente). O que podemos fazer para evitar que isso aconteça contra as mulheres é ficarmos atentos aos sinais de que algo vai acontecer. Quando o Estado Islâmico estava atacando o Iraque, era possível ver que deveríamos proteger mulheres e meninas, mas nada foi feito para prevenir que milhares de nós se tornassem vítimas da violência sexual — disse.
Sobre ódio e intolerância endereçados a grupos e minorias, alertou para a necessidade de interromper essas manifestações antes que sejam colocadas em prática:
— Os discursos de ódio são perigosos. O Estado Islâmico tomou cidades e fez com que milhares tivessem que fugir. Seja vindo do islã ou de qualquer outra religião, temos que lutar contra os discursos de ódio. Costuma ser através da religião que esses grupos se fortalecem, e vimos isso com o Estado Islâmico. Precisamos agir antes que seja tarde demais.
Pausada e serenamente, Nadia atiçou a plateia do Teatro Unisinos a pensar o quanto conflitos e extermínios travados do outro lado do mundo, com pessoas desconhecidas, também deveriam causar incômodo e revolta a ponto de provocar um engajamento maior.
— Vocês podem pensar que o que acontece no Iraque não tem nada a ver com vocês. Mas somos conectados. A desigualdade afeta você. A violência sexual afeta você. Centenas e milhares de pessoas que vivem em estado de caos e incerteza afetam você. Podemos criar um mundo no qual o caos não exista. Façam contato com seus políticos e digam a eles que vocês querem que ajudem a acabar com a desigualdade no mundo. Ajam, façam algo — pediu.
A primeira convidada do Fronteiras do Pensamento neste ano foi a escritora espanhola Rosa Montero, que veio a Porto Alegre no dia 31 de maio (inscritos podem assistir à gravação da palestra na plataforma do ciclo de conferências). Os próximos convidados serão o neurocientista espanhol Rafael Yuste, tido como um dos cientistas mais influentes do mundo (5 de julho), o filósofo político americano Michael Sandel (9 de agosto), o teórico da mídia norte-americano Douglas Rushkoff (13 de setembro) e o arqueólogo britânico David Wengrow (4 de outubro).
O Fronteiras do Pensamento tem o patrocínio de Hospital Moinhos de Vento, Sulgás e CMPC, parceria cultural da Casa da Memória Unimed Federação/RS, parceria acadêmica da Unisinos, parceria educacional do Colégio Bertoni Med, parceria institucional da prefeitura de Porto Alegre e do Instituto Unicred, serviço médico Unimed Porto Alegre, promoção do Grupo RBS e realização da Delos Bureau, uma empresa do Grupo DC Set especializada em entretenimento cultural.