Por Fernanda Frizzo Bragato
Professora no Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq
Em 2003, os Estados Unidos da América invadem o Iraque. O ditador Saddam Hussein é deposto e, com ele, seu grupo político. Outros grupos assumem o poder junto aos norte-americanos. Um país rico em petróleo, dividido em várias etnias e religiões. No terreno fértil dos ressentimentos e no vácuo deixado pela primeira retirada das tropas norte-americanas do Iraque, em 2013, nasce o grupo terrorista Estado Islâmico.
Com o caos gerado pela Guerra da Síria, o grupo passa a ocupar cada vez mais espaços e a controlar vassas áreas deste país e do Iraque. Perto da fronteira com a Síria, vive, desde tempos imemoriais, o povo Iazidi. Nem muçulmanos, nem cristãos, os Iazidi professam uma religião própria hostilizada por seus vizinhos, o que resultou em mais de 70 genocídios ao longo da história. Com o Estado Islâmico não foi diferente.
Rotulados pelos fundamentalistas islâmicos como infiéis e adoradores do demônio, tornaram-se alvos de um plano de destruição que culminou com a tomada da região de Sinjar em agosto de 2014. Na total ausência de forças de segurança para protegê-los, o Estado Islâmico assassinou milhares de homens e de mulheres mais velhas, capturou meninos e os doutrinou para engrossar as fileiras de combatentes e sequestrou, converteu à força ao Islã e escravizou sexualmente milhares de meninas e jovens mulheres Iazidi.
Os terroristas chamavam suas prisioneiras Iazidi de sabaya. Assassinar membros do grupo alvo não é a única forma de cometer genocídio. Esterilização forçada e violência sexual, geralmente após os assassinatos em massa dos homens, costumam ser sistematicamente usadas como estratégia genocida e de guerra para aniquilar todo o grupo. Entre os Iazidi, não é permitido casar com pessoas fora da comunidade, de modo que a violação sexual de mulheres pode resultar em sua rejeição social, assim como a dos filhos que não raro são fruto dessas violações.
Nadia Murad, então com 21 anos, foi uma das milhares de jovens Iazidi sequestradas pelo Estado Islâmico após terem dizimado Kocho, sua aldeia natal. Vendida várias vezes de um terrorista a outro, foi obrigada a se converter ao Islã e passou a ser sistematicamente estuprada e submetida a tratamentos desumanos e degradantes.
Depois de três meses de cativeiro e quase sem forças, Nadia conseguiu escapar, com ajuda de uma família árabe, para um campo de deslocados no Curdistão. De lá, mudou-se para a Alemanha, onde vive como refugiada sob os auspícios de um programa do governo para mulheres Iazidi, vítimas do Estado Islâmico, e tornou-se uma ativista de direitos humanos. Em 2016, foi nomeada embaixadora da boa vontade para a dignidade dos sobreviventes de tráfico humano das Nações Unidas. Em 2017, escreveu o livro Que Eu Seja a Última e, em 2018, ganhou o Prêmio Nobel da Paz em virtude de sua luta contra o uso da violência sexual e a exploração de mulheres como arma de guerra e de conflito armado.
Poucas mulheres receberam o Nobel da Paz. Poucos têm capacidade de se reconstruir após um trauma brutal e, ainda, se engajar numa luta tão importante como dolorosa, porque reativa o trauma indefinidamente. Poucos refugiados conseguem atualmente se estabelecer em um país seguro para reconstruir suas vidas, já que a Europa fechou-lhes as fronteiras. Pouco se faz para prevenir atrocidades, cujos sinais não são difíceis de detectar.
Nadia Murad, hoje com 30 anos, tem muito a nos ensinar.
Vivemos em um mundo cada vez mais perigoso e instável, em que condições normais podem se deteriorar rapidamente. Nós, mulheres, somos particularmente vulneráveis não somente em tempos de conflito armado, mas de instabilidade política e, por isso, devemos estar vigilantes para que a democracia e o Estado de Direito nunca sejam sufocados.
Em um mundo onde a paz parece cada vez mais distante, Nadia escancara o quanto as mulheres necessitam de proteção especial, porque serão elas, usadas como arma de guerra, as que sofrerão as piores e mais humilhantes violações. Sua história é também um alerta sobre os perigos do fundamentalismo religioso, que incita o ódio contra seguidores de outras religiões e crenças ou ameaça quem simplesmente pratica um estilo de vida condenado por leituras deturpadas dos textos religiosos.
A principal lição de Nadia é a força da solidariedade, da qual ela nutriu a sua resiliência e a qual, expondo suas dores e humilhações, ela oferece a todas mulheres na esperança de, assim, ter sido a última.
O Fronteiras do Pensamento 2023
- A 17ª temporada do Fronteiras do Pensamento terá a segunda de suas seis conferências presencias, com Nadia Murad, às 20h da quarta-feira (21/7), no Teatro da Unisinos (Av. Nilo Peçanha, 1.600), em Porto Alegre (a primeira foi a de Rosa Montero). Até o fim do ano, ainda estarão em Porto Alegre David Eagleman (em 5/7), Michael Sandel (9/8), Douglas Rushkoff (13/9) e David Wengrow (4/10). Em agosto, serão disponibilizadas mais três conferências online, de Christian Dunker, Eduardo Gianetti e Luc Ferry. Saiba mais em fronteiras.com e confira a cobertura completa de GZH em gzh.rs/Fronteiras.
- O Fronteiras do Pensamento tem patrocínio de Hospital Moinhos de Vento, Sulgás e CMPC, parceria cultural da Casa da Memória Unimed Federação/RS, parceria acadêmica da Unisinos, parceria educacional do Colégio Bertoni Med, parceria institucional da prefeitura de Porto Alegre e do Instituto Unicred, serviço médico Unimed POA, promoção do Grupo RBS e realização da Delos Bureau, uma empresa do Grupo DC Set especializada em entretenimento cultural.